O peixe que nadou contra o cardume

Enquanto todos iam adiante, Eric Dier deu meia volta

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readJun 24, 2019

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Não há como me convencer de que você nunca se apaixonou por Eric Dier. Não importa o que você use como argumento: ou você está mentindo, ou está errado.

O zagueiro de £4m que fala português e veio para jogar de volante estreou na lateral fazendo o gol da vitória driblando o goleiro rival num clássico fora de casa. Nos meses seguintes, para quem se revezava entre Stambouli, Capoue e Bentaleb tentando imitar um camisa 5, ver a tenacidade de Eric em campo foi revigorante.

Junto com Dele e Kane, o camisa 15 foi pivô do movimento que deixou o brilho em nossos olhos um pouco mais concisos depois da chegada de Mauricio Pochettino. Em seus primeiros momentos vestindo lilywhite, o polivalente defensor muito lembrava um Ryan Mason mais forte, mais alto, mais jovem, mais maduro e com mais potencial. O argentino tinha em suas mãos um talento pronto para encabeçar seu esquadrão.

Da gaguejada aliviante no frio de Birmingham em 2014 até a agachada melancólica sob o céu limpo de Madrid cinco anos depois, pinta-se claramente o maior mérito do trabalho de Mauricio no comando do clube: aperfeiçoar seu material humano de forma orgânica, explorando virtudes e blindando deficiências para fazer atletas mudarem da água para o vinho com nada além do próprio esforço.

Todos os jovens talentos que faziam parte do elenco em meados de 2016 sofreram uma transformação assombrosa que não só os tornaram indispensáveis para a equipe depois de períodos de contestação e irregularidade, mas também os fizeram cobiçados pela elite do continente. Até mesmo Dembélé, um dos mais velhos atletas do plantel, estava a poucos passos do futebol italiano quando se tornou um dos melhores centro campistas da Europa sob a tutela do argentino.

Eric fez parte desse grupo que foi do inferno ao céu pelas mãos de Poch, mas enquanto todos saíam de fases transicionais para se estabelecerem como pilares importantes do grupo, ele estranhamente foi o único que regrediu com o passar do tempo.

Na última temporada, Moussa Sissoko foi a grande síntese da obra do argentino. Como um jogador que parecia incapaz de fardar no Anapolina se tornou o maior sustentáculo de um time finalista da Champions League?

Configuro este caso como um fenômeno justamente porque, entre todos os diamantes que garimpamos, Dier naturalmente parecia ser um dos mais lapidados. Era inteligente, veloz e marrento, tinha presença física, ótimo passe, técnica de desarme apurada e astúcia tática.

Além da supracitada pequena epopeia em sua estreia no finado Boleyn Ground, Eric colecionou boas atuações com bloqueios cruciais, assistências formidáveis e um e outro pontapé bem dado em Diego Costa. Com 22 anos recém completados, foi o grande destaque positivo da horrível campanha inglesa na Euro 2016 e por incontáveis vezes foi cotado — por imprensa, colegas e torcida — como o próximo dono da faixa de capitão da seleção.

Até o meio de 2017, Dier ainda tinha uma posição de muito prestígio no elenco (e no mercado), mas foi justamente a partir do término da temporada que arrancou os últimos pedaços de grama do antigo White Hart Lane que o Tottenham se viu obrigado a virar a chave — e o jovem inglês não engatou a próxima marcha. Kane virou artilheiro máximo do ano, Dele redescobriu seu espectro de craque, Lloris levantou a taça do mundo e Wanyama emergiu como uma evolução ainda maior do que Eric se mostrava ser.

Ao perder o status de intocável na cancha para o queniano, o camisa 15 não se reinventou para retomar espaço em outra função. Com o tempo, se tornou terceira opção para o miolo de zaga (Sánchez é o substituto que deve herdar a vaga), passou a ser preterido por Winks (e Skipp!!!) na primeira linha do meio de campo e sequer voltou a ser cogitado para a ala direita, onde Trippier, Aurier, KWP e até Sissoko se revezavam sem oferecer soluções ideais.

Nos últimos dois anos, conto nos dedos de uma só mão os jogos nos quais Dier teve um desempenho pouco melhor que medíocre, mas preciso de ajuda para não me esquecer de nenhuma das partidas tenebrosas que fez e dos pontos que essas nos custaram. Mesmo assim, o time corria em seu contrafluxo, superando expectativas apesar da presença cada vez mais calamitosa do defensor.

Enquanto todo o elenco evoluía a trancos e barrancos, aquele que outrora parecia ser o mais maduro dos frutos se afogou em suas próprias fraquezas, fazendo o caminho inverso do grupo que um dia lhe tenha sido indicado para liderar. Eric protagonizou a grande involução no meio do sonho, um delicado anti-clímax desenrolado por entre os capítulos primordiais da nossa melhor narrativa.

A gente não vai esquecer, mas a despedida é mais do que necessária

Digo, é que nunca se esperou grande merda de Trippier, por exemplo, por mais que sua primavera na Rússia tenha invocado nele uma passageira reencarnação de David Beckham. Não é justo julgar como retrocesso algo que nunca foi grande para além de nossos olhos carentes e ressentidos. Pontualmente, Kieran só superou expectativas; o horror que estamos acostumados a ver é o que de fato se espera dele. Por isso é que Dier é nosso mais grave declínio.

A proposta de quarenta milhões do United já passou faz anos, mas ainda há tempo (e mercado) para se livrar desse peso — o que ainda me é um pouco doloroso de dizer, já que guardo com carinho algumas memórias que Eric me deu. Só que não há mais espaço na locomotiva para quem desaprendeu a jogar carvão na fornalha. Que vá e tenha sorte — mas vá, antes de tudo.

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