O Tottenham é um time em constante involução

Quase uma década de projeto está sendo dissolvida dia após dia

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
6 min readSep 21, 2021

--

O Tottenham é uma revolução. Você já sabe o refrão: time mais novo, mas sólido, mais ativo; melhor defesa, melhor banco, melhor rotação, melhor técnico. Todos os times na Premier League estão e deveriam estar nos assistindo. Eu não ficaria surpreso se, dentro de alguns anos, os times se parecessem com este Tottenham.

“A igreja do Tottenham”, fevereiro de 2016

Já faz cinco anos que a gente meteu aquele 2–1 contra o Manchester City no Etihad. E esse jogo aqui, da temporada seguinte, acabou de completar cinco anos também. Ou seja, já faz cinco anos que você achou que *ia dar* pra ser campeão inglês sem que a sua consciência pesasse.

Pois bem, vou abrir a narrativa te trazendo sete dados sobre a temporada que, pra mim e pra muitos, foi o auge da equipe de Pochettino.

Tottenham 16/17 (Premier League)

1º — gols
1º — chutes por jogo
4º — chutes concedidos por jogo
2º — xG
3º — posse de bola
5º— % desarmes certos
5º — % dribles certos

Tá certo que o contexto era outro. Os super times da Premier League não eram tão super assim — Guardiola tinha acabado de chegar em Manchester, Ragnar Klavan (!) tinha sido contratado pra resolver os problemas da zaga do Liverpool e o Chelsea foi campeão com Victor Moses sendo titular incontestável — , mas falar sobre o quanto aquele time de Pochettino era eficiente e mágico é chover no molhado.

Os times que competem lá em cima realmente ficaram cada vez mais parecidos com aquele Tottenham (laterais infernais, pressão alta e constante, força nas diagonais, nove saindo da área…) e, como é da natureza de tudo, evoluíram. O detalhe inconveniente é que o próprio Tottenham ficou cada vez menos parecido com aquele Tottenham. Um pouco menos a cada dia, um pouco menos a cada dia, até sermos encaixados de volta na base da cadeia alimentar.

A crise não é de agora, você sabe. Até Pochettino provou do próprio veneno antes de ser ceifado. Mourinho nos inundou num coquetel de pós-verdade que afogaria qualquer desgraçado que viesse a tomar seu lugar.

Nuno Espírito Santo foi o “escolhido” (se eu passar meu número pra vinte mulheres e só uma mandar mensagem, ela é a minha escolhida?) e, apesar dos nossos esforços completamente irracionais em torná-lo algo além de um capachinho do Jorge Mendes, a verdade é que tem tudo pra dar muito errado.

Ok, sinais precoces são sinais precoces. O alarde (ainda) não deve ser nada muito grande. Mas como a Wanda disse ao BoJack, “quando você olha pra alguém através de óculos de lentes avermelhadas, todas as bandeiras vermelhas são só bandeiras”. Então, tire os óculos.

Tottenham 21/22 (Premier League)

17º — gols
19º — chutes por jogo
18º — chutes concedidos por jogo
19º — xG
15º — posse de bola
19º — % desarmes certos
18º — % dribles certos

Sério. Como foi que a coisa chegou aqui?

O colapso em Madrid, que já completou dois anos, é justificativa pra muita coisa, mas não pra isso. Não há uma coisa específica que resume esse caos que o Tottenham vive tão profundamente em seu espírito. O que explica é uma sucessão de péssimas decisões e diarreias mentais dentro e fora de campo (e que, ao que tudo indica, ainda não chegou ao fim).

Os últimos dias de Mauricio Pochettino, apesar da melancolia da despedida, foram cruciais pros alicerces se despedaçarem — e não pela falta de brio ou pelos maus resultados em si, mas por terem provocado o esgotamento total, mental e físico, de uma equipe que entregara 150% da sua capacidade.

José Mourinho, cuja passagem soa cada dia mais como uma bad trip de ácido, tentou pegar a equipe pela orelha e fazê-la vencedora na base da lavagem cerebral. Do primeiro ao último dia do português no clube, o futebol ficou em segundo plano. E sem futebol não há energia. E sem energia não há apoio. E sem apoio não há identidade. E sem identidade não há por que acordar cedinho. Bem assim, uma pecinha do dominó ia caindo a cada dia.

Ryan Mason, coitado, fez o que pôde com aquela sopa de sobras, mas a verdade é que como técnico o menino vai passar fome. Já Nuno, o herdeiro da Kodak no século XXI, mostra pouco (ou nada) além de lapsos de um futebol nota 6,5. Como falei com o Vasco outro dia, é um treinador que fez por merecer sua posição num time de maior estatura; eu só não queria que fosse no meu. Se o clube hoje carece de DNA, de virtude e de ímpeto, apelar para o Espírito Santo sempre me pareceu eclesiástico demais pra um Tottenham que quer ser hype.

Pra não (voltar a) falar de Daniel Levy, entra o nosso chão de fábrica. Um núcleo profissional que, como supracitado, já deu o que tinha que dar. Lloris, Dier, Kane e companhia não terem um troféu pra materializar seus esforços é uma merda sem tamanho, óbvio, mas uma laranja só faz um tanto de suco. Se tentar espremer mais e vai chupar caroço.

Problema ainda maior é que quem era pra integrar o ‘novo núcleo’ virou coadjuvante ou figurante, forçando Dele Alli e Harry Winks a serem pilares de um time que quer brigar por grande coisa na Premier League. E, vai lá, até dá pra culpar Levy, Hitchen ou o recém-chegado Paratici por cada passe errado, porque nem no papel a coisa toda é bonita, mas o rendimento grosseiro de cada um dos novos recrutas não dá margem pra redesenhar algum caminho de esperança.

Tanguy Ndombele é um dos jogadores mais habilidosos do mundo e o maior recurso criativo da equipe, mas jogar quinze jogos por ano com 60% da capacidade pulmonar é desrespeitoso. Já Lo Celso não tem dois momentos memoráveis com a camisa do clube e está pra completar três anos de casa.

Reguilón foi morto por um presunto de Natal, Gollini é tão bom goleiro quanto é bom trapper, Rodon é a definição de zero à esquerda, Bergwijn é o tipo de ser humano que aciona o seguro pra desentupir pia, Sessegnon vive escondido nos sub-23 e, se por dois minutos de cada partida Bryan Gil parece ser o filho que Luka Modric teve com Erik Lamela, nos outros oitenta e oito o espanhol me lembra de cada um dos motivos pelos quais Adel Taarabt saiu chutado do clube. Que deus ajude Cuti Romero e Emerson Royal.

Então, dos TREZE atletas que chegaram de 2019 pra cá, Hojbjerg é o único que realmente se safa. Como é que se reforma uma casa fundada em madeira podre usando mais madeira podre?

Aquele projeto de vencer títulos num futuro próximo foi trocado por um pânico silencioso. O resumo aqui, portanto, é que o Tottenham, que pouco tempo atrás funcionava como epicentro de uma das mais bonitas evoluções do futebol inglês, hoje é um time em constante involução, e este movimento regressivo não dá sinais de pausa.

--

--