O Tottenham é uma festa

A liderança no fim das contas pouco importa

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readOct 28, 2023

--

“A maioria dos times quer fazer de seus estádios uma fortaleza — o nosso está virando uma boate”, disse Ange Postecoglou na quinta-feira antes da vitória sobre o Crystal Palace, pela décima rodada, marcando a conclusão do primeiro quarto da temporada. E disse isso porque, ao fim das partidas (vencidas) em casa — uma delas na segunda-feira anterior -, o clube coloca um DJ, tal de Kieran Moore, ali no miolo da arquibancada, com uma mesa da Pioneer e um cabo XLR conectado a todos os alto falantes do estádio, pra soltar uma seleção de pauladas vindas diretamente do Summer Eletro Hits 3, tipo “Freed From Desire”.

“Eu tô dentro. O que for deixar as pessoas felizes, eu curto”, completou Ange como quem não liga muito, e sem saber que é mais ou menos isso que um bom dono de festa faz. Essa, inclusive, é uma das grandes virtudes do técnico australiano: saber que a festa são as pessoas. Todo o contexto é criado de gente, apoiado por gente, impulsionado por gente, vivido por gente. Melhor deixá-las felizes do que cortar a brisa.

É nesse ritmo que o time tem 25 pontos conquistados dos 30 que estiveram em disputa, além do terceiro melhor ataque, a terceira melhor defesa, a invencibilidade e a liderança, e magicamente faz nada disso importar. Afinal, pro caralho com os números. Pro caralho com os símbolos. Pro caralho com a tabela. O Tottenham joga bem. O Tottenham joga bonito. O Tottenham me faz feliz. O Tottenham é uma festa.

É meio difícil de se acostumar, sim. Falo por mim. Cada palavra que escrevo aqui custa um pouco mais a sair. Muito porque a pista de dança, hoje cintilante e sedutora, há não muito tempo era um poço de mal-estar e desencanto. E o que vivemos hoje era uma expectativa remota de um plano ultra volátil pra daqui a quatro, cinco, seis anos. Por isso a gente ainda fala pisando em ovos, com medo de tudo virar do avesso de uma hora pra outra. Com medo da primeira derrota vai ruir todo o processo. Com medo de alguém se machucar feio e acabar com o encaixe do time.

Normal isso não é, mas meu trabalho aqui é rasgar o selo: a gente já sentiu coisa parecida. Não igual, mas parecida. O frio na barriga. O risco maior do que a consciência. A sensação de grandeza brigando com a sensação de vulnerabilidade. O riso frouxo de quem brinca com sua própria natureza, pois aprendeu que não se pode ou não se deve ser feliz demais.

Agora nós somos o melhor e mais importante time do campeonato. Agora nós somos intocáveis. Agora nós somos a festa. E isso deu errado das outras vezes, é claro, mas quem se importa? O agora é para ser celebrado. Essa é a sensação mais gostosa do mundo. Quando a música acabar, não vai dar pra sentir isso de novo.

Também tem uma coisa importante: nessa festa não entra qualquer um, mas entra só quem quer. Quem *realmente* quer. Mais do que um privilégio, é um atestado de intenção que contempla clube e torcida.

[…] O Tottenham optou por não contratar um jogador que já estava em fases finais de negociação por terem tido a impressão de que a maior motivação do atleta era sair de sua antiga equipe, e não necessariamente se juntar aos Spurs. No fim, Ange Postecoglou preferiu contratar um jogador para a posição que ele entendeu estar “desesperado” para assinar especificamente com o Tottenham. Ele [Ange] conversou com todos os alvos da janela e só aprovou a contratação dos jogadores nos quais ele viu esse sentimento.

Ange Postecoglou’s Tottenham revolution rooted in common sense (The Guardian, 27/10/2023)

Teve quem não quis ficar, e tá tudo bem. Cada um, cada um. Mas nem é preciso voltar muito a fita pra ver exemplos gigantescos de comprometimento e desejo. Cuti Romero, campeão do mundo, recebeu propostas no meio do ano e, ao The Athletic, afirmou: “Eu disse ‘não’ porque quero viver meu auge aqui”. Recém-chegado, Guglielmo Vicario dramatizou o mesmo sentimento em entrevista à Sport Italia: “Era isso [o Tottenham] que eu queria, eu não quis ouvir mais nada nem ninguém. Assim que eu soube da oportunidade, eu poderia ter assinado o contrato com sangue; eu iria à pé da Itália até lá”.

Essa disposição se reflete de forma nítida em cada minuto de bola rolando. Pressões incessantes, divididas de corpo inteiro, piques desenfreados, comemorações ansiosas. Parece que eles jogariam mais noventa minutos por rodada se necessário. Talvez seja consequência direta da diminuição drástica da média de idade do grupo, que junto da vitalidade também enche o entorno de farra e testosterona. O Tottenham nunca teve tanto tesão acumulado.

Por fim, ainda é muito cedo para se preocupar com o after. Tampouco é o seu, o meu, o nosso papel tentar confabular possíveis conclusões. Título? Vaga? Consolidação? Mais um exercício de paciência? Quem pensa nisso é quem organiza a folia, e nós, mais do que nunca, estamos em boas mãos. O Angeball ainda tem mais de um semestre adiante. E festa boa é festa que a gente não tem ideia de onde vai parar.

--

--