Os últimos suspiros do White Hart Lane

Uma despedida digna para nossa velha casa

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
7 min readMay 14, 2020

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Uma senhora bem, bem velhinha apareceu no mesmo grupo que o meu para fazer o tour no White Hart Lane, em abril de 2017. De camiseta com o número 9 de Bobby Smith nas costas e a escalação do time de 1961 no peito com alguma frase motivacional que eu não consegui identificar qual era, foi a primeira da fila desde o portão.

Parecia especialmente maravilhada com o que via, mais do que as crianças que entravam nos bastidores do estádio pela primeira vez e mais do que eu que cruzei um oceano pra não morrer arrependido de nunca ter visto tudo aquilo. Na frente do Hall da Fama, ela comentou com voz calorosa sobre cada um dos jogadores que chegou a conhecer pessoalmente. Tinha uma breve história pra contar sobre cada um deles. E eu sorria toda vez que olhava pra ela, e ela notava e sorria de volta. Nos camarotes, quando puxamos conversa, me contou que ia pra lá com o pai desde a década de 40 e fez questão de levar seu filho e seus netos desde bem pequenos.

Em dado momento do tour, nos sentamos na beirada do Shelf Side — a arquibancada lateral — com o resto do grupo e Gary Belsham, o guia, apoiou-se na beirada do muro baixo que dá pro gramado e começou seu sermão principal.

Gary é o responsável pelos tours do estádio. Devia ter uns 60 anos de idade e parecia conhecer cada canto da edificação tão bem quanto sua própria casa. Ficava constantemente dizendo o quão triste era pensar que estava fazendo suas últimas visitas guiadas (deve ter batido nesse repertório o ano todo, mas de forma cada vez mais melodramática) e cobria a boca pra falar o nome do Arsenal. Gente como a gente.

Por uns dez minutos, ele contou a história do White Hart Lane daquele jeito superficial que o Wikipedia também conta — certamente é parte do script da visita — , mas seu instinto o forçava a trazer relatos de memórias pessoais à tona durante o percurso. “[…] Roberts que, inclusive, marcou o gol de empate no final da UEFA Cup naquele gol ali. Meu pai quase me arremessou em campo. Nos pênaltis, então…”

Mas depois do roteiro protocolar, Gary parou de nos olhar nos olhos e começou a mirar em volta ou virar o rosto para baixo antes de prosseguir pra parte mais melancólica de seu monólogo. “Teremos o jogo contra o Arsenal e depois o jogo contra o United. Esse último deve começar às 16h do domingo. Acabando o jogo, lá pras 19h vamos fazer uma festa com luzes, fogos e tudo mais. Vai ser rápido. Assim que o estádio for evacuado, umas 20h, já vão começar a demolir.”

Fez-se um silêncio sepulcral, quebrado alguns segundos depois pelo próprio Gary, que deve não só ter tentado aliviar nossa nítida dor repentina (eu não fui o único a derrubar lágrimas naquele momento, afinal), mas também sentiu o peso do que acabara de declarar. E eu vi a senhora observando seu entorno, parando os olhos no placar do Park Lane, no cockerel dourado, no buraco que dissecou o córner oposto. Deu pra entender tudo sem dizer nada.

Tirei essa foto aqui embaixo quando estávamos descendo do prédio. Ela parou pra espiar aquela carcaça gigante de metal e concreto que já havia engolido o antigo estádio e ficou ali na janela, com expressão de cachorro em mudança, por quase um minuto. “It’s just not going to be the same, you know?”, me comentou.

O nome dela é Louisa. Um amor de senhora. 84 anos de idade, 80 de Tottenham e 72 de White Hart Lane

Não há uma forma sutil de falar sobre qualquer demolição, e a situação fica ainda mais bizarramente delicada quando o que vai virar pó é um estádio com 128 anos de tradição, mas “demolição” é um termo que machuca além da conta.

É possível, inclusive, quantificar essa dor procurando pelos sinônimos; destruição, arrasamento, destroçamento, obliteração, queda, extinção, fim. Uma construção vindo abaixo é o que surge à cabeça na hora que se ouve a palavra, mesmo que o que realmente esteja se reduzindo a pó no momento seja nossa própria cabeça.

As lembranças do Gary, da Louisa e de todos o que já estiveram ali não terão o mesmo referencial físico para apoiar a memória afetiva. Todos estarão apontando seus dedos para fantasmas e contemplando, com olhos saudosos, novos pedaços de metal onde em outros dias desenharam nossa herança.

Como torcedores, todos nós experienciamos e nos relacionamos com o White Hart Lane de uma maneira particular. Seja vendo pela TV do outro lado do mundo ou em pé no Park Lane todo final de semana, construímos perspectivas singulares de como o lugar é e do que ele significa pra nós.

Visitá-lo pessoalmente mudou toda a ideia do que o estádio representa pra mim e pro clube. Andar pelos quarteirões ao redor do campo numa terça-feira ordinária e sem nenhum jogo pra assistir me deu uma noção mais completa do que é o Tottenham e o que é aquele lugar.

A High Road, o Park Lane, o Bill Nic, o Bricklayers, os imigrantes, os negros, os judeus, as casas populares, as lanchonetes baratas com adesivos do cockerel na janela, os becos velhos, os adesivos nas latas de lixo e os tijolos mais amarelados da cidade. Tudo aquilo é feito de Tottenham e o Tottenham é feito de tudo aquilo.

Há quem patrocine aquele papo de que não é um fim e sim um recomeço — o que é bem verdade, considerando que o novo estádio vai crescer logo em cima do antigo — , mas a queda de um ícone centenário que serviu como grande catedral para um clube, uma torcida e toda uma comunidade desde que foi erguido não merece ser tratado com essa irritante frieza corporativa de uma simples reciclagem.

Estádios são transcendentes, metafísicos. São lares compartilhados, baús de recordações, salas de terapia em grupo, válvulas de escape, santuários, palcos de dramas e cenários de epopeias, espaços que te servem experiências tântricas ou de quase-morte sem seu aval (mas com seu irracional consentimento). São, simultaneamente, berço, caminho e cova.

O White Hart Lane não era exceção. Era até mais do que regra, como muitos outros estádios que podem ser considerados pedras fundamentais ou símbolos históricos não só das equipes, mas das regiões que os cercam e suas respectivas populações. Foram décadas de histórias que vão muito além do esporte entalhadas no concreto — coisa que o Tottenham Hotspur Stadium, por mais que nos conforte, talvez nunca consiga equiparar. Por mais que já tenha vivido um ou outro espetáculo, como o mestre Galeano diria, nossa nova casa não tem memória nem grande coisa que dizer.

Aliás, o estádio reconstruído é um monumento que já nasce grande, o que traz obrigações para quem quer ser grande. Aquela estrondosa nave espacial que pousou no norte de Londres recriou o tão necessário referencial físico para a memória afetiva do qual ficamos órfãos por quase dois anos. Afinal, as lembranças que o Wembley nos proporcionou nunca terão a cor vívida e o ar distinto que até os maiores dissabores no N17 tiveram.

Se há dúvidas quanto a este peso, basta revisitar a última tarde de vida do White Hart Lane para saná-las. O fim da história não poderia ter sido mais digno; vitória imponente, selando temporada invicta em casa e o vice-campeonato inglês. De sobremesa, uma deliciosa invasão de campo e uma cerimônia de homenagem deslumbrante.

É difícil ignorar a magia que aquele momento invocou. Com um arco-íris no céu cinza de Londres pintando a garoa fina, gerações de torcedores e jogadores compartilharam exatamente a mesma sensação. Algumas milhares de lágrimas sincronizadas, todas secando na ponta de um sorriso. E o arco-íris sumiu junto com a última pessoa que deixou o gramado.

A curiosidade e o desejo pelo novo confundiram-se com a angústia de pensar no que o futuro reserva, mas o progresso nem sempre se faz às custas da tradição e a modernidade não é um fator que anula a história ou impede que ela continue sendo escrita.

*Contém trechos tirados do querido Henrique Letti e de textos autorais antigos

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