Os seis maiores momentos do Tottenham na Champions League: Manchester City, 2019

O sopro da justiça

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
6 min readNov 6, 2019

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E depois de um 7–2 bem tomado que dizimou as estruturas do clube e deixou 70% do elenco e da comissão técnica com medo do corredor do RH, o Tottenham chega à quarta rodada da Champions League em segundo lugar no grupo (e com o saldo de gols neutro).

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É incrível como ainda parece que a classificação está a um oceano de distância mesmo que, no papel, a coisa nem esteja tão feia assim. Não tem maquiagem melhor do que uma goleada. Em meio a uma crise sem precedentes, a equipe desestimulada enfia um gostoso 5–0 em casa contra o adversário de hoje, o Estrela Vermelha de Belgrado (ou Crvena Zvezda, se você quiser pagar de entendido). Tudo porque… jogamos sem o Eriksen? Como é bizarra essa instituição.

Um conto de duas cidades

Só é engraçada a obsessão compulsiva de Pep Guardiola pela Champions League depois que ele é eliminado. Antes que isso aconteça, o maior pesadelo dos outros trinta e um times é encontrá-lo no caminho. E justo na temporada em que ele, de tanto futucar e amolar, conseguiu parar um Liverpool imparável, descobrindo que há espaços para além da perfeição, o já desgastado Tottenham de Pochettino apareceu nas quartas de final para lhe provar um ponto.

Em ritmo frenético, Tottenham e Manchester City fizeram da estreia continental do novo White Hart Lane um espetáculo

O norte de Londres nunca viveu uma noite tão reluzente. Era a primeira vez que os holofotes do estádio recém inaugurado iluminavam uma partida de Champions League, a primeira vez que mais de 62 mil torcedores deitaram os olhos sobre a bandeira redonda e estrelada no centro de um campo pertencente a um clube londrino, e a história no gramado fez jus à ocasião.

Tivesse esse jogo acontecido um ano antes, o desvio da bola no braço de Danny Rose a partir da finalização de Sterling não seria considerado penalidade. No dia 9 de abril de 2019, foi. E com Sergio Agüero em frente à marca de cal, o City pediu truco aos doze minutos do primeiro tempo, mas Lloris pegou o blefe (e o petardo rasteiro no canto direito). Com as arquibancadas completamente ensandecidas, o Tottenham ali decidiu ganhar.

Não se toma decisão sob insegurança, porém. O cenário mudou quando Fabian Delph contundiu Harry Kane no início da segunda etapa. A lesão do artilheiro inverteu o tom do frio na barriga em questão de segundos, tanto para os minutos finais quanto para a perspectiva de segurar as pontas no jogo de volta.

A circunstância pedia desesperadamente por um herói, e o herói é sempre o mesmo quando Kane não está em campo. Menos de quinze minutos depois da saída do camisa 10, Heung-Min Son foi pifado em velocidade com destino à cara do gol, e com a linha de fundo comprimindo seu movimento, desenrolou-se numa brilhante jogada individual para tirar o zero do marcador.

Com três gols em dois jogos das quartas de final da Champions League, Sonny finalmente chegou na prateleira do futebol que merece estar

A magra vantagem foi carregada até Manchester no compartimento das bagagens frágeis. Sem Harry (nem Winks, nem Kane), era natural que o Tottenham fosse forçado a adotar uma postura menos propositiva e mais precavida; cavar a própria cova, em outras palavras, naquele contexto. Se deixar ser agredido por aquele Manchester City enfurecido era uma tática kamikaze.

Em menos de quatro minutos, Sterling abriu o placar e rasgou a vantagem da semana anterior. O Etihad era um manicômio em chamas. Era claro como o Sol que o próximo gol viria logo. Mas se o futebol é irracional, disruptivo, dadaísta, o Tottenham é Nietzsche, Dalí, Duchamp.

É impossível explicar exatamente como vieram os dois gols de Sonny nos cinco minutos seguintes, porque a memória se borrou no meio do êxtase. Lembramos da bola sobrada na meia lua que abriu um vão nas pernas de Ederson e do corte pra dentro que fez parar o tempo enquanto Otamendi deslizava, mas não de como a cena começou, como num sonho. O gol de Bernardo Silva, um minuto depois, foi a queda abrupta que faz acordar em desespero.

Crédito a quem merece: Raheem Sterling instaurou caos em absolutamente todos os lances em que a bola chegou em seus pés

2–2 em 11 minutos de jogo é muita coisa, mas a vantagem ainda pendia para o lado indesejado. Por isso, de novo, Sterling teve que tomar as rédeas e fazer mais um antes do intervalo mais necessário da história do esporte vir para descansar os ânimos. Na segunda etapa, o City voltou ainda mais elétrico para dilacerar qualquer chance de ser surpreendido novamente, e o fez direitinho com Agüero anotando o quarto antes dos 15 minutos.

Para piorar, depois de Kane na semana anterior, outra das maiores engrenagens da equipe foi retirada de campo por uma maca; Moussa Sissoko teve sua grande partida interrompida por uma lesão na coxa pouco antes do meio tempo. Roteiro dramático de tragédia, sem tirar nem pôr.

Mas quando Guardiola já parecia indeciso sobre beijar a noiva na testa, na bochecha ou na boca, o osso saltado do quadril de um monumental Fernando Llorente, em seu primeiro grande ato para a história lilywhite, reacendeu os espíritos das duas torcidas em desespero; de um lado para não ceder até que o adversário desistisse, e do outro para não desistir até que o adversário cedesse.

Dor e desespero antes da reparação legítima

Há um dilema dentro do espectro do que consideramos por ‘merecimento’ que nasce a partir da indistinção entre a injustiça e o infortúnio. Tem dias que a bola não entra, mas deveria ter entrado, e é um infortúnio. E tem dias que a bola não entra, mas deveria ter entrado, e é uma injustiça. E quase sempre esses são dias diferentes, moralmente falando.

O Tottenham é mais familiar do que deveria ser com ambos, mesmo sem saber distinguir direito qual dia é o quê — e eu talvez seja a pior pessoa do mundo pra definir isso — , mas nossas semanas são recheadas com estes contratempos. Ainda assim, nenhuma das aflições nos preparou para lidar com as sensações daqueles últimos minutos. Antes das redes por atrás de Lloris balançarem pela quinta vez, nós descobrimos um novo nível de despreparo psicológico e sentimental.

A ânsia se derreteu em tristeza e virou alegria. Nenhum ser humano imaginava ser capaz de aguentar uma viagem por entre tantos sentimentos contraditórios; por isso tudo pareceu mentira até as câmeras acusarem Pep Guardiola, atônito, caindo de joelhos.

Tivesse esse jogo acontecido um ano antes, o desvio da bola em Bernardo Silva a partir do passe de Agüero não seria considerado infração. No dia 14 de abril de 2019, foi. E com o árbitro Cüneyt Çakir marchando de volta para o gramado com o braço denunciando a linha de impedimento, o sopro delicado da justiça (e da sorte, que muitas vezes anda longe) nos fez abrir um sorriso irreconhecível.

Ficha técnica (ida):

Tottenham 1–0 Manchester City

Local: Tottenham Hotspur Stadium, Londres

Público: 62,044

Data: Terça-feira, 9 de abril de 2019

Árbitro: Björn Kuipers (HOL)

Gols: Heung-Min Son (78')

Cartões amarelos: Danny Rose (Tottenham); Aymeric Laporte, Ryiad Mahrez (Manchester City)

Tottenham

4–5–1: Lloris; Trippier, Alderweireld, Vertonghen, Rose; Sissoko, Winks (Wanyama, 81'), Alli (Llorente, 87'), Eriksen, Son; Kane (Lucas, 58').

Técnico: Mauricio Pochettino

Manchester City

4–3–3: Ederson; Walker, Otamendi, Laporte, Delph; Fernandinho, Gündogan, David Silva (De Bruyne, 89'); Mahrez (Sané, 89'), Sterling, Agüero (Gabriel Jesus, 71').

Técnico: Pep Guardiola

Ficha técnica (volta):

Manchester City 4–3 Tottenham

Local: Etihad Stadium

Público: 53,348

Data: Quarta-feira, 14 de abril de 2019

Árbitro: Cüneyt Çakir (TUR)

Gols: Raheem Sterling (4', 21'), Bernardo Silva (11'), Sergio Agüero (59'); Heung-Min Son (7', 10'), Fernando Llorente (73')

Cartões amarelos: Danny Rose, Victor Wanyama, Heung-Min Son, Moussa Sissoko (Tottenham)

Manchester City

4–3–3: Ederson; Walker, Kompany, Laporte, Mendy (Sané, 84'); Gündogan, David Silva (Fernandinho, 63'), De Bruyne; Bernardo Silva, Sterling, Agüero.

Técnico: Pep Guardiola

Tottenham

4–4–1–1: Lloris; Trippier, Alderweireld, Vertonghen, Rose (Sánchez, 91'); Wanyama, Sissoko (Llorente, 41'), Alli, Eriksen; Lucas (Davies, 82'); Son.

Técnico: Mauricio Pochettino

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