Ouro de tolo

José Mourinho não tem margem para errar

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readDec 28, 2020

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𝓃𝑜𝓉 𝒶 𝒸𝑒𝓁𝓁 𝓅𝒽𝑜𝓃𝑒 𝒾𝓃 𝓈𝒾𝑔𝒽𝓉. 𝒿𝓊𝓈𝓉 𝓅𝑒𝑜𝓅𝓁𝑒 𝓁𝒾𝓋𝒾𝓃𝑔 𝒾𝓃 𝓉𝒽𝑒 𝓂𝑜𝓂𝑒𝓃𝓉.

Bill Nicholson tem todos os ouvidos numa sessão de treino no CT de Cheshunt, em 1971, pouco antes de vencer o primeiro dos quatro títulos de Copa da Liga dos Spurs. Publiquei essa fotografia aí de cima hoje (28) no meu ritual diário de postagens no Instagram do Galo, para o qual eu faço uma curadoria bastante caprichada de imagens que captam o que há para além da carne e do osso no clube. Um mini-museu de tudo o que o Tottenham tem de sagrado e bonito, como a foto de cima.

Seja no trauma ou no prazer, o Tottenham é, e se orgulha de ser, um time idealista até demais. Aquela frase de Danny Blanchflower — “A maior falácia do futebol é que o jogo é unicamente sobre vencer. Não é nada disso. O jogo é sobre a glória, sobre fazer as coisas em estilo e com charme, subir a campo e bater o adversário, e não esperar que eles morram de tédio.” — impressa em todos os corredores da sede não é atração turística. O clube é refém de uma estética nada pragmática, e eu e você consentimos com esses termos antes mesmo de comprarmos a primeira camisa.

Bill Nicholson venceu onze títulos pelo clube somando seus dias como jogador e treinador, e cada um deles se propondo a praticar o futebol mais distinto e instigante possível. Os nucleotídeos do nosso DNA foram desenhados por Arthur Rowe, Vic Buckingham, Keith Burkinshaw e outros pioneiros do push and run e (eventualmente) do tiki-taka, além de atletas como John White, Garth Crooks, Ossie Ardiles, Glenn Hoddle e Luka Modric; artesãos, artistas e ilusionistas.

Em resumo, o Tottenham é lindo e prefere morrer a se deixar enfeiar. Ou preferia. Até o idealista e romântico Pochettino chegar mais perto do que qualquer outro de tocar o ouro (na base do chutão, bumba-meu-Llorente), e o clube tomar um choque de realidade. No pior momento possível. Já que, com Levy morrendo de fome (ou vontade de comer?), a carne mais cheirosa deixou de ser a costela de chão portenha, que demora oito horas pra ficar pronta e suculenta, mas sim o bacalhau de Setúbal que prometia precisar só de dois minutos no microondas pra dar um banquete.

Defender o topo da tabela foi uma tarefa mais complexa do que o imaginado

Mourinho não veio para ser comparado com Pochettino. Mourinho não veio para carregar o legado de Billy Nic. Mourinho não veio para mostrar requinte ou beleza. Mourinho veio para vencer. E se o argentino tinha um respaldo silencioso pela estética elegante e progressista de seu futebol, o português por sua vez descarta qualquer tipo de suporte (como se estivesse reforçando sua narrativa de ‘contra tudo e contra todos’). José blinda seus métodos e não manifesta disposição pra mudar. My way or the highway. Mas, tá, isso não é notícia.

Num acordo tácito, a maioria de nós (fora e dentro do clube) aceitou de bom grado essas condições quando o time alcançou a liderança do campeonato. Brincamos, é claro, mas ser “mouro de Mourinho” também consiste em dar mais atenção para os fins do que os meios, em olhar mais o resultado e menos o desempenho, em buscar uma taça a qualquer custo.

Mas e quando esse custo, que é alto, bem alto, que é abrir mão de uma cultura identitária que diferencia o clube de todos os outros, não traz o benefício previsto? Digo, deixar o Manchester City ter 80% da posse de bola e levar os três pontos é estranho, mas eu durmo tranquilo à noite. Agora, deixar o [insira nome de time médio] ter 80% da posse de bola e sucumbir a um cabeceio vagabundo de bola parada pra perder mais dois pontos preciosos não faz parte do acordo.

Cada vez que Doherty, Sánchez, Davies e Winks saem jogando numa proposta de futebol retroativo, Blanchflower dá um soco na casca estofada do caixão.

Já faz tanto tempo assim?

O grande, grande, grande, grande problema é saber o que o time pode fazer quando vira a chave. Tá certo que a sequência apertada de jogos dificílimos forçou uma queda no ritmo eletrizante que vinha dando cor e cara à subida do Tottenham rumo ao topo da tabela, mas ninguém sente falta de comida ruim. A dor é ver Harry Kane e Heung-Min Son, que vinham caminhando para se tornar a dupla mais letal da história da Premier League, reduzidos a, respectivamente, um espantalho de faltas e um acompanhante de lateral.

E é louco pensar que parece ter se instaurado uma crise de comando e de identidade justo agora, com a equipe a dois jogos de uma taça e a meia dúzia de pontos da liderança com mais de meio campeonato ainda por vir. Mas não isso não quer dizer que uma das melhores defesas e um dos melhores ataques da competição não devem estar na corda bamba graças a quatro ou cinco performances ruins e resultados piores ainda. Afinal, era justamente para evitá-los que Mourinho desfez as malas por aqui.

A margem do português para errar é quase inexistente. Porque errar custa cada vez mais caro e o tempo há de ser cruel e impiedoso. Porque errar é um luxo que sua postura e estatura não lhe permitem ter. Então, se o projeto é fazer vista grossa para a cultura do clube que o emprega, que Mourinho ao menos entregue no resultadismo. Taças não são feitas de ouro de tolo.

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