Quem vai fazer o que Llorente fazia?

Uma inquietante preocupação encobre a saída do espanhol

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
5 min readJul 12, 2019

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O sonho prometido do atacante reserva se arrastou por quase meia década. Desde que Defoe e Adebayor se revezavam para minimizar a devastadora inabilidade de Soldado na ponta da pirâmide de Villas-Boas, não houve homem capaz de fazer sombra digna a quem exerceu a função de camisa nove.

Harry Kane nunca teve seu seis por meia dúzia e a culpa não é só do fato que, bem, vamos lá, não é nada fácil ser dublê do melhor e mais completo centroavante em atividade no mundo, mas também do trágico senso de julgamento da diretoria — afinal, até que me provem que Vincent Janssen não é uma alucinação coletiva, sigo com a certeza de que só tivemos um atacante no elenco profissional por tempo suficiente para se terminar uma pós-graduação.

Enquanto Lukaku tinha seu Rashford, Diego Costa tinha seu Remy e Agüero tinha seu Iheanacho, o Tottenham era refém de seu filho único. E é claro que vez ou outra a ausência de Kane servia (ainda serve!) para que Son, Lamela ou Eriksen decidissem invocar seus espíritos mais infernais na grande área, mas a conta ainda não fechava. Só fechou quando fomos apresentados a uma solução tão inesperada quanto óbvia.

Fernando Llorente tinha 32 anos quando foi apresentado no Tottenham, trazendo a experiência continental e a bagagem vitoriosa como grandes trunfos. Numa transferência de pouco alarde, talvez nem o torcedor mais otimista esperasse que o espanhol chegasse em Londres de um jeito muito diferente de como Zé Love chegou em Florianópolis.

Em dois anos, a narrativa do veterano no clube se desenvolveu como mandava o roteiro, com aparições discretas e pontuais e gols que não pedem novos adjetivos. Suas últimas semanas de contrato, porém, entortaram com força sua função de figurante no elenco, fazendo com que ele estivesse menos como o homem que bate a cabeça na hélice e cai rodopiando no mar em Titanic e mais como Chuck Norris em Os Mercenários — sempre em segundo plano, mas nunca despercebido.

Sua cintura afortunada em Manchester e a escorada da glória em Amsterdã estarão pintadas nos livros pelos próximos cem anos

Fernando Llorente assinou uns e outros tentos vestindo lilywhite. Uns mais importantes, outros menos, uns como titular, uns como reserva, uns feios, uns horríveis e um bem bonito. Com outras histórias e sob outros contextos, estes poderiam ter sido anotados por qualquer outro artilheiro de ofício — afinal, não nos deixemos enganar, foram poucos.

Quer dizer, gols são eventos únicos sob o recorte sentimental da memória, mas olhando para o grande esquema das coisas (aquele que decide os campeonatos ao fim de cada temporada), eles representam pouco além de números replicáveis. No fim das contas, os gols são reféns de almas benfeitoras. Precisam de um hospedeiro para que venham à vida, um agente para carregar seu peso, e qualquer jogador pode fazê-los (exceto Vincent Janssen, porque ele não existe).

Acontece que a grande serventia que El Rey León nos concedeu não foi um gol, um passe ou um pivô segurando três brucutus, mas sim um fator dificilmente imitável: a modéstia.

Com um ar autoconsciente de renúncia, um movimento quase altruísta em essência, Fernando nunca se projetou em posição de tomar a titularidade da equipe. Nunca reclamou do banco, nunca pediu minutos, nunca fez escarcéu na imprensa, nunca roubou a cena nos treinos. Entendeu seu raio de operação e trabalhou sem sair do cercado.

É claro que só um louco pode acreditar que haja espaço para ser o principal centroavante do Tottenham enquanto existir Harry Kane (ou enquanto ele não vira armador, mas isso é pauta pra um devaneio do Letti), mas nem todo atleta é capaz de se tornar uma peça valiosa em sua ausência sem ficar sedento por mais visibilidade.

É muito complicado encontrar um equilíbrio perfeito entre qualidade e projeção quando se trata do banco de reservas, mas o veterano se mostrou uma decisão acertada nesse quadro

Llorente já não tem muito peixe para vender como um atacante na casa dos 30 anos de idade, que flerta com um recuo tático enquanto o auge nem tão recente assim ainda fede, tampouco tem grande coisa a provar como uma jovem promessa, que precisa justificar sua simples existência com brilho suficiente para não morrer na escuridão.

O espanhol flutuou em sobriedade. Foi o filho mestiço da decência com a despretensão. Nenhuma grande peripécia da equipe na última temporada teria se materializado sem sua ética de trabalho implacável e sem sua disposição para causar um impacto toda vez que sua possante envergadura figurava em campo — mesmo que fosse um impacto tímido por mês. Assim, tudo o que veio foi lucro.

Com o contrato terminado, o atacante se despede como uma notícia gostosa de rodapé, que te afaga o coração e te rouba um sorrisinho antes de chegar a próxima página do jornal; uma satisfação aconchegante sobrepõe qualquer pico de ódio que uma e outra patacoada sua possa ter causado. Fernando não é craque — nunca foi e não há mais tempo de ser -, mas este não é exatamente o ponto pelo qual foi tão bom tê-lo?

Agora, a manchete na página seguinte grita e preocupa: ‘Quem vai fazer o que Llorente fazia?’. Quem vai aceitar a reserva definitiva? Quem vai se contentar em ser para sempre a segunda opção? Que criança gosta da cama de baixo da beliche, afinal?

Harry Kane está sozinho no plantel outra vez, e pela total ausência de falatório a respeito da chegada de um suplente, imagino que se a bucha ensaie cair no colo de alguém, o agraciado seja o jovem Troy Parrott. Mas independente da opção escolhida, é difícil imaginar que a parcimônia de Llorente seja vista novamente.

Histórias como essa são boas para lembrar que o futebol nunca é como o seu Modo Carreira.

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