Se acabou é porque tinha que acabar

Harry Kane é página virada

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
6 min readOct 28, 2023

--

Tornando a história curta: Arlindo Cruz, que desde sempre figura bem alto na lista dos meus sambistas favoritos, foi pivô de uma elegante novela nos anos 90. Ao sentir a necessidade e a vontade de começar uma carreira solo no samba e destacar seus méritos individuais (que eram incríveis, pra dizer o mínimo, pois naquela altura o bicho já era um dos compositores da Império Serrano e membro honorário do Cacique de Ramos), Arlindo deixou o Grupo Fundo de Quintal depois de 12 anos e 10 discos.

O Fundo, que desde sua concepção tem esse poder de saber e traduzir como, quando, onde e porque a vida acontece, fez o certo: mexeu nas plantas, mudou a mesa de lugar, trocou a cor das paredes do Quintal (e trouxe Ronaldinho, o cavaquinho do Grupo Raça). Aí, em 1993, no primeiro disco do grupo sem sua estrela (“A Batucada dos Nossos Tantãs”), foi o engenhoso compositor e violonista Cleber Augusto, quem concebeu a letra de “Motivos”.

Então, bem longe da Rua Uranos e tendo absolutamente nada a ver com Arlindo ou Cleber — mas *precisamente* no ano dessa canetada divina -, acredite se quiser, nasce Harry Kane. O filhote de cruz-credo que faz xixi sentado e tem bochechas maiores que o encaixe, que viveu a vida mais roteirizada possível para um caucasianíssimo britânico de classe média (casou com a primeira namoradinha, jogou no clube onde cresceu e nunca deve ter furado um farol vermelho) e que, em dado momento, viu tudo isso ser pouco para se sentir confortável na alta prateleira onde sua habilidade o içou.

Veja que, lá atrás, Arlindo não se contentou em seguir lançando discos (incríveis) junto de um dos grupos nem mais tão promissores, e sim já mais bem estabelecidos e reconhecidos do país, para correr atrás dos louros que acreditava merecer. Pediu para sair e, mesmo com o pesar e a consternação de todos os lados, teve como resposta definitiva a compaixão. Afinal, haviam de respeitar sua magnitude, mesmo não sendo — nem antes, nem depois — maior que o Grupo.

Como um rouxinol segue o meu cantar

Como um carretel a desenrolar

Se acabou é porque tinha que acabar

Nesse passo, logo ficou claro que, para Sir Harry Edward Kane, artilheiro do mundo e condecorado como membro da Ordem do Império Britânico aos 25 anos, o que não fosse muito seria pouco. Pode-se dizer até que houve uma demora considerável para que o Tottenham pós-Pochettino se tornasse um “entrave” para seus planos de glória — mesmo que, do outro lado da moeda, os planos de glória do próprio Tottenham, continuamente frustrados, sempre passassem primordialmente por ele.

O jeito que tudo se desenrolou, inclusive, foi sintomático. Uma representação crua da grande maluquice que é um amor sem escrúpulos. “Kane quer ficar”. Claro que quer. Ele sabe que é o coração do time. A paixão subverteu o desejo. “Kane quer sair”. Claro que quer. Ele sabe que aqui a coisa não vai virar. O desejo é insaciável. E foi assim, um gigantesco io-iô sentimental, sustentado por migalhas, até uma sexta-feira inesquecível, na qual eu admiti que pouca coisa em quase trinta anos de vida me doeu mais do que este ler tweet:

Ainda não sei direito como me aprofundar na descrição da angústia. No primeiro momento, foi uma pontada aguda que não senti em momentos realmente capitais da vida, como términos de relações ou mortes de gente mais ou menos próxima. Depois veio o conformismo. “Era o que ele tinha que fazer”. Só mais tarde a raiva tomou conta. “Nunca fez porra nenhuma em decisão”. Nesses dias, acho que a gente se sente uma torcida inteira. Do corneteiro ao conselheiro, sem saber se a vontade genuína é de encontrar o rapaz no aeroporto com pedregulhos nas mãos ou escrever uma carta perfumada de agradecimento que nunca será lida. Às vezes as duas coisas. Um espectro completo de sensações, inacessíveis pra quem (por sorte) não é imbecil que nem a gente, e que faz do cérebro um pedacinho de geleca.

Cada um absorveu do jeito que melhor pôde no momento, acredito eu. E, aqui, faço questão de usar o termo “absorver” antes do “superar”. O “superar” não virá nesse texto. 280 gols não são coisas que a gente bota no fundo do armário assim, do dia pra noite, de uma semana pra outra. Era difícil crer que existiria um Tottenham sem Kane. Muita da massa (re)conquistada pelo clube nos últimos anos pode ser creditada aos seus pés — eles lhe concederam o direito total de exercer qualquer escolha sem contestação. Mas, da mesma forma, também era difícil crer que existiria um Kane sem Tottenham. O clube se fez uma plataforma esplêndida (com exceção do departamento médico) para apoiar o desenvolvimento do atacante desde muito antes dele se firmar no time profissional — o mural pintado na rua ao lado do estádio não foi uma súplica, foi um agradecimento.

Não tens motivos pra falar de mim

Sei que fui louco por amar assim

Só fiz me perder nem é bom lembrar

Se tudo acabou nem mesmo deu pra disfarçar

Harry Kane e seu ímpeto se estranharam com o Tottenham e seu desejo de se remodelar. Como na física, é o que acontece quando uma força imparável encontra um objeto que não pode se mexer. Nada. As coisas seguem seu caminho natural, cada uma do seu jeito.

Imagina que, antes de Arlindo Cruz, o Fundo teve Jorge Aragão. Sombrinha também saiu da formação original. Mario Sergio foi, voltou e foi de novo. Ademir chegou, ficou e tá aí. Ronaldinho, o substituto de Arlindo no banjo lá em 1993, ficou quase o dobro do tempo do seu antecessor até se despedir agora há pouco, em 2017. Ubirany morreu na pandemia. A vida é essa porra aí mesmo, gente vai e vem, mudam prioridades, mudam planos, mas tem coisa, como o Grupo Fundo de Quintal e o Tottenham, que ficam lá independentemente. Diferentes, mas sempre os mesmos.

Arlindo Cruz, inclusive, nunca mais voltou ao grupo oficialmente, mesmo tendo participado como convidado do Grupo em show atrás de show, até onde sua saúde permitiu. A gratidão, afinal, não é maior do que o orgulho. E, no fim das contas, o show tem que continuar.

Por entre as folhas vara a luz do sol

É um novo dia, vejo o céu azul

Não vou mais sofrer, nem vou mais chorar

Penso com frequência, agora, depois do baque, que talvez a gente não tenha se deixado perceber no meio daquela dor toda que a preparação pra saída de Kane tenha se dado silenciosamente, de um jeito meio torto, já de uns tempos pra cá. As lesões, o flerte constante dos clubes magnatas, as tragédias de Conte e Mourinho com times criados em volta dele, Manchester e Amsterdam sem ele, Madrid com ele. Sei lá.

Agora é fácil dizer tudo isso, também. Fácil admitir que a cada dia fica mais nítido que a despedida foi a melhor solução para a situação. Uma possibilidade de reestruturação por aqui e uma possibilidade de realização de sonho por lá. A gente feliz, ele feliz.

A gente nunca mais vai ver outro Harry Kane — e eu honestamente creio que sequer veremos esse Harry Kane de novo, apesar da tal cláusula. Mas assim como não vamos ver outro Dembélé. Outro Van der Vaart. Outro Bale. Mas estamos aqui bem há tempo de ver Maddison, Udogie e Romero jogarem bola de branco e azul. Ange Postecoglou está nas rédeas. Sofrimento passa. A vida é boa.

Minha lucidez não perdeu a vez

Por uma razão que era de aceitar

Sem querer expor a força desse amor

Não vou me abater; vou voltar a amar

--

--