Uma lição em Leipzig: o barato sai caro

Paul Mitchell escancara o colapso do Tottenham

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
5 min readMar 11, 2020

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A eliminação na última terça-feira diante do Red Bull Leipzig não foi vista como surpresa. A raiva e a inquietude eclipsaram a tristeza e a descrença, tamanha era a falta de perspectiva. O pior time do mundo é aquele que sequer te permite sonhar.

O desfecho simbólico na Alemanha, para quem já tinha se acostumado a separar com carinho o fim das tardes de terças e quartas, suga toda a cor dos meses (ou anos) que virão, já que é difícil imaginar um retorno triunfal à elite europeia num futuro tão próximo.

Você sabe o refrão: sem Champions League, tem pouco jogador afim de chegar e muito jogador afim de sair. E não vou fingir que a Europa League tenha peso em qualquer decisão de qualquer ser humano, porque provavelmente nem nela o clube estará ano que vem.

O problema maior agora é que não existe uma hora pior para ficar de fora da maior competição de clubes do mundo do que nessa iminência de uma reconstrução total do elenco. A curto prazo, torna-se basicamente impossível recrutar grandes jogadores ou tirar as joias de outros clubes, e fica ainda mais difícil sendo pão duro. Ou seja, num contexto geral, voltamos à estaca zero. Mas por quê?

Esse homem, que já foi responsável por alguns dos seus sorrisos, montou o circo que nos eliminou na última terça

Foi claro o desenrolar em Leipzig: o esquema era bom, a ideia era boa, a postura era boa, o discurso era bom, mas os jogadores em campo não. Aliás, Mourinho é um profissional falido, é fato, mas eu não desejaria dar ordens para Erik Lamela tentar virar um jogo nem pro meu pior inimigo. Fomos eliminados porque o time é ruim; simples assim.

Ao fim da partida, em tom espinhoso apesar do semblante de pastel cru, Mou disse à imprensa que o banco inteiro do Leipzig jogaria em seu time. E por mais incapaz que seja de treinar um clube de ponta, o português ainda é bom apontando cagadas de seus superiores — fez isso à rodo com pouca elegância e muita efusividade ao longo de toda a carreira. Acontece que a cutucada em questão ilustrou um episódio meio dramático e meio irritante da história recente do Tottenham.

É que o homem por trás da composição do elenco que nos eliminou é Paul Mitchell, ex-jogador profissional e exímio recrutador que ganhou excelente reputação por seus métodos modernos de scouting e, lá vai: trabalhou nos Spurs de 2014 a 2017.

Pense em todos os atletas que o clube contratou desde a chegada do dito cujo até 2016: Son, Alderweireld, Wanyama, Alli, Dier, Eriksen… Mitchell foi responsável pela chegada de todos. E evito dar-lhe crédito total pelas que vieram depois de 2016 pelo simples fato de que seus últimos meses em Londres foram vividos sob aviso prévio. Sim, por quase um ano inteiro, o Tottenham tinha um chefe de recrutamento que não queria estar lá.

A novela foi mais simples do que parece. Paul pedia jogadores, Pochettino dava sinal verde e Daniel Levy os barrava pedindo coisa mais barata. Não aconteceu uma vez, nem duas, nem três. Grealish poderia ter vindo em 2016 por £6M, mas Levy queria por £4M. Mané foi recomendado no mesmo ano, mas Levy optou por gastar £10M a menos com Nkoudou. E esse é só o topo do iceberg.

Para o mal e para o bem, a transformação deve começar por dentro

No início da temporada 16/17, sua principal indicação à diretoria era Michy Batshuayi, que vinha de grandes campanhas no Olympique de Marselha. O pedido foi prontamente negado e, depois de uma discussão estendida por semanas a fio, Mitchell pediu as contas quando o atacante belga fechou com o Chelsea. Cláusulas previamente acordadas em seu contrato, porém, o forçaram a cumprir dezesseis meses de aviso prévio (que careca filho da puta, deus do céu!), mas acabou saindo antes, em março de 2017, por comum acordo.

Em entrevistas, Mitchell cansou de repetir que um time precisa de novas contratações em todas as janelas de transferência para manter-se competitivo na elite, e diz ter dissecado seus argumentos ao presidente até se desgastar por completo. Até parece que os dois anos sem novas compras foram propositais, mas o careca agora paga o preço da teimosia.

Em 2018, Paul juntou-se ao Red Bull Leipzig como chefe de recrutamento e desenvolvimento. Deu tão certo, como era de se esperar, que no ano seguinte foi promovido a diretor técnico — pelo menos é o que diz no LinkedIn — , e coube ao destino conceder-lhe sua grande carteirada.

Marcel Sabitzer, recomendação de Mitchell, debulhou a última participação do Tottenham na Champions League nessa temporada (e nas próximas)

A vitória de 4–0 no agregado que eliminou seu ex-empregador da Champions League atestou o tamanho do problema que é a gestão de Daniel Levy e escancarou o colapso administrativo que acontece nos bastidores do White Hart Lane. É sempre bom lembrar aquele papo: em 2017, o Liverpool era uma nota de rodapé na Premier League, mas com quase £200M (bem) investidos em dois anos, o time tornou-se campeão nacional, europeu e mundial.

A saída de Paul Mitchell não foi a doença e sim um dos maiores sintomas. Daniel Levy gosta de atirar nos mensageiros, e o ex-olheiro — bem como Pochettino — foi só mais uma vítima. Como eu já disse outro dia, ninguém viu o cabelo se arrepiando, porque o principal culpado não tem cabelo para arrepiar.

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