Vícios, virtudes e outras leituras sobre o Tottenham de 21/22

Um balanço verborrágico antes do fim da temporada

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
6 min readMay 17, 2022

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I.

Não é bom chegar no último dia com esse frio na barriga? Com a faca e o queijo na mão? Com algo grande a perder? Afinal, quem diria que esse time nos permitiria sentir ansiedade ou medo? Até outro dia era só um grupo de ex-bons atletas jogando um futebol tão envolvente quanto um cupom de 5% off.

E era pra coisa ter sido muito feia, bicho. Muito feia. Só não foi porque começou a ficar feia cedo demais. 3–0 do Palace, 3–0 do Chelsea, 3–1 dos covardes, 1–0 do West Ham e 3–0 do United em menos de três meses de bola rolando, meu irmão, não tem (espírito) santo forte que aguente.

Quando Nuno foi embora, a sensação era de que não só esses três meses, mas todos os meses desde o meio de 2019, tinham sido desperdiçados e nenhum verdadeiro progresso fora concretizado. O clube tinha um ar de displicência e indisposição, como quem casou na igreja sem certeza e olha pra Jesus no altar com culpa pelo que ainda vai fazer.

O desespero faz a gente tomar umas decisões meio loucas mesmo, e isso justifica um time em clima de retrocesso ir atrás de um dos melhores treinadores em atividade no mundo tendo acabado de demitir um zé qualquer. O que ainda não me desce direito é um dos melhores treinadores em atividade no mundo ter aceitado a proposta do time em clima de retrocesso que acabara de demitir o zé qualquer, já que nesse universo o dinheiro dá em árvore e um homem como Antonio Conte, em 2021 (e ainda em 2022), poderia escolher qualquer tranquilidade em vez do nosso caos. Italiano é tudo doido, sei lá, sei lá.

Disseram que ele entregava e ele entregou. De bate pronto vieram mais de dois meses de invencibilidade na Premier League. A eliminação no tapete da Conference League e as eliminações nas copas foram sementinhas podres numa terra que voltava a cheirar gostoso, nada além disso. É uma merda? É uma merda. Desenterra, joga fora, vida que segue. No fim das contas, vai dizer que não foi melhor termos sido despejados na canetada pela UEFA do que termos visto algum time francês de segundo escalão fazendo a gente de gato e sapato? Você sabe que algum time francês de segundo escalão teria feito a gente de gato e sapato. Não se engane.

II.

Falando em enganar, a vida nunca se esquece de cobrar esses atos de baixeza. Foi mais ou menos nessa altura da linha do tempo que o dia 16 de janeiro não aconteceu porque o Arsenal não quis que acontecesse. Essa altura da linha do tempo também marcou o primeiro descompasso da equipe sob o comando de Don Antonio, o que me faz indagar se não teríamos saído derrotados do dérbi caso ele tivesse sido jogado na data originalmente marcada. Bentancur e Kulusevski não existiam, Romero ainda era carta fora do baralho, Doherty não tinha encarnado Cafú… Acho de verdade que teríamos tomado uma surra.

Mas o destino é um bicho que não deixa ponta solta. Três dias depois do que era pra ter sido o clássico em casa, Bergwijn nos presenteou com três pontos tirados de uma das maiores alucinações coletivas da década. Dois destes pontos são hoje a diferença entre nós e os fujões que estão a uma partida de distância de mais um ano inteiro presos no museu da própria soberba.

Sei lá se ainda há de dar ruim pra gente. Com ou sem vaga na Champions League, nada vai apagar o fato de que o Arsenal fugiu de um jogo em janeiro só pra apanhar como um vira-lata na feira em maio. Covardes. Covardes.

III.

D e fevereiro pra cá, apesar de um e outro enrosco, o time de sapos voltou a ser um time de príncipes. Nessa vida eu vi pouquíssimas coisas tão sedutoras quanto Rodrigo Bentancur azeitando uma bola recuperada no campo de defesa; quanto Cristian Romero vindo ganhar o primeiro combate na cabeça da área adversária; quanto Dejan Kulusevski fingindo ser devagar para não permitir que nós, mortais, tenhamos consciência de que ele já sabe tudo o que vai acontecer em campo pelo menos vinte segundos antes do resto.

Em paralelo com as dádivas vindas de fora, o que já era de dentro foi polido e lapidado pelas mãos de Conte, que conseguiu fazer até Harry Winks parecer útil. Matt Doherty, Ryan Sessegnon, Emerson Royal, Ben Davies… Cartas que eram um nove no truco, de repente, tornaram-se manilhas (de paus, ok) essenciais para uma puxadíssima reta final. Até Harry Kane, cujo teto de qualidade supostamente já havia sido atingido, teve uma melhora considerável no nível de desempenho — e pôde assumir uma posição de liderança mais concisa e tranquila, uma vez que Heung-Min Son resolveu aliviar sua responsabilidade na artilharia ao se tornar o goleador mais prolífico de todo o planeta durante a primavera europeia.

Cedo demais pra dizer que parece que aprendemos a contratar? Cedo demais pra dizer que parece que voltamos a desbloquear e desenvolver potenciais? Estamos combinando a bonita essência dos anos de “clube formador” com o ímpeto de um grupo que, apesar de paciente, não quer se contentar com a vida de outrora.

IV.

Sério, você já conseguiu entender o tamanho daquele pontinho contra o Liverpool?

V.

N a hora em que esse momento aí em cima foi capturado, o Tottenham estava a dois pontos da metade de baixo da tabela da Premier League. Em paz, escrevi esse texto antes da temporada de fato acabar não pela certeza da vitória na última rodada (que ainda acredito cegamente que não vai vir), mas pela compreensão de que, aconteça o que acontecer no próximo domingo, a gente passou a semana derradeira alimentando bons sonhos.

A partida contra o Norwich será um portal; será o ponto de ruptura, a curva do arco, a viagem de Michael Corleone para a Sicília. Para o bem ou para o mal, a equipe que desembarcará do ônibus não será, em espírito, a mesma que embarcou. Porque quando o Sol cair por trás da paisagem no domingo, o Tottenham, que vive dias púberes de confusão e excitação, vai ou voltar à ‘Era Pochettino’ ou mergulhar na ‘Era Conte’; e tudo depende de um pontinho conquistado fora de casa contra o lanterna do campeonato.

Quer dizer, não é que a ‘Era Pochettino’ tenha sido ruim, mas o tal do próximo passo que a gente ficou de dar, lembra?, ele tá aí, bem na nossa cara, de um jeito tão nítido e cru e tangível que eu pareço tonto querendo explicar. Aí, ganhar do Norwich será a prova de que o Tottenham alcançou a passada, e perder será a prova de que a perna não cresce mais.

Esse time tem caldo e está recriando sua espinha dorsal. O tempo agora é nosso amigo. Vai ficar tudo bem. Quer dizer, o mundo todo sabe que no domingo vão nos enfiar uns 4–0 rabo acima e os covardes vão vencer lá com Dele Alli fazendo gol contra, infelizmente. Mas o importante é viver o agora.

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