Walter Tull: herói de guerra e primeiro negro na elite do futebol inglês

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
Published in
4 min readJun 19, 2019

Estamos falando de 1909. O Coritiba e o Internacional estavam nascendo enquanto o Botafogo enfiava a maior goleada da história do futebol brasileiro (24 a 0) no Madureira. No mesmo ano, em outros cantos do mundo, o Honvéd e o Borussia Dortmund também estavam sendo fundados enquanto um garoto negro passava pelos portões do White Hart Lane pra se tornar o primeiro afrodescendente a jogar na elite do futebol inglês.

Criado num orfanato junto com sete irmãos mais novos depois que sua mãe perdeu a luta para o câncer, Walter Tull havia acabado de terminar um curso de quatro anos para se tornar tipógrafo — profissão de seu falecido pai — , mas decidiu tentar a sorte com o hobby que praticava no tempo de lazer.

Em seu primeiro treino, o garoto impressionou tanto o corpo técnico dos Spurs que imediatamente lhe foi oferecida uma vaga no esquadrão que viajou para a América do Sul, a fim de disputar uma série de amistosos na Argentina.

Mesmo com o aval do clube para que se tornasse profissional, Tull se viu num conflito moral ao pensar em rejeitar o caminho traçado pelo pai para mergulhar num universo que ainda era visto com maus olhos, ainda mais sob o conceito totalmente anti-Edwardiano da época de ser pago para praticar esportes. Mas a chance de aproveitar seu talento natural com a bola nos pés para garantir uma vida longe da pobreza e poder sustentar seus irmãos com algo além de uma máquina de imprimir era boa o bastante para ser desperdiçada.

Na época, o Tottenham comemorava seu 27º aniversário e, de presente, ganhou a promoção para a primeira divisão inglesa pela primeira vez em sua história, depois de algumas temporadas batendo na trave e amargando a segundona. Brilhar na elite era uma oportunidade de ouro para o jovem de 21 anos de idade.

O garoto foi contratado logo depois por £10 — o valor máximo de contratação permitido na época — , ganhando £4 por semana. Viajou com o time para a Argentina e rapidamente tomou a vaga de centroavante, onde semanas depois foi escalado pra jogar no primeiro jogo da temporada, contra o Manchester United, atual campeão da FA Cup. Naquele momento, Walter se tornara o primeiro negro a disputar uma partida da primeira divisão da Inglaterra.

A presença de uma cor de pele diferente da branca na elite do futebol britânico causou um certo espanto no público e na imprensa. Depois da partida, os jornais o chamaram de “Darkie” (algo como “Escurinho”), mas a pejoratividade do termo usado pelos redatores se dissipou como vapor depois de Tull cair nas graças da torcida dos Spurs, que o abraçou calorosamente sem ver cor.

Meses depois, até os jornalistas já haviam se rendido ao craque. Num jogo contra o Bristol City, ficou escancarado o primeiro caso de racismo contra Walter nas arquibancadas. O atacante foi vaiado e hostilizado pela torcida adversária, mas não mostrou sinais de instabilidade e saiu da partida com uma assistência decisiva na conta. Na ocasião, o tabloide The Football Star o descreveu como “um exemplo a ser seguido”, além de o nomearem como o melhor jogador de ataque do país.

Sua ótima passagem pelo White Hart Lane, porém, só durou três anos. Em 1911, Tull assinou com o Northampton e passou outros três anos vestindo as cores dos Cobblers, até a deflagração da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

Com a grande guerra tomando proporções maiores, o jogador foi alistado e se juntou à infantaria do 17º Batalhão de Middlesex — a primeira das muitas que foram montadas com jogadores de futebol profissionais -, ao lado de Vivien Woodward, também jogador do Tottenham, e comandada por Frank Buckley, ex-meia de Manchester United e Aston Villa.

Tull entrou em ação pela primeira vez na França, ainda em 1914, se tornando também o primeiro negro nascido na Inglaterra a lutar pelo exército inglês. Durante o conflito, o já ex-jogador surpreendeu seus superiores pelo rigor físico e capacidade singular de raciocínio que tanto eram vistas dentro das quatro linhas do gramado. Com o tempo, acabou sendo recrutado para a Batalha de Somme (França), em 1916, e para a Batalha de Piave (Itália), no início de 1918.

Poucas semanas depois, realocado como líder da infantaria na segunda Batalha de Somme, Tull foi morto em combate contra o exército alemão com um tiro fatal na cabeça, no dia 25 de março de 1918, um mês antes de completar 30 anos de idade.

O craque serviu e sobreviveu durante quase toda a Primeira Guerra, então acabou sendo postumamente condecorado com a British War Medal e a Victory Medal, mas seus feitos se perderam na história. Como seu corpo nunca foi recuperado ou encontrado, Walter não tem cova nem caixão — só inscrições nas paredes do cemitério de guerra de Faubourg-Amiens e no memorial de Arras, na França.

Herói de guerra e ícone do esporte, Tull é um grande exemplo de superação, determinação e autoconfiança. O garoto que abriu olhos e portas com a bola no pé se foi como um homem de méritos que transcendem o futebol.

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