A verdadeira jornada de God of War (2018)

Texto sobre hipermasculinidade, paternidade e o jogo God of War que foi lançado em 2018.

Iasmin Barbosa
Game Clube
10 min readJan 28, 2022

--

God of War (2018)

O que é ser um homem de verdade? Para algumas produções da cultura pop, desde filmes de ação como Rambo até histórias em quadrinhos e videogames, talvez a resposta seja ser fisicamente forte, imponente, violento e que raramente usa outras emoções além da raiva. Esse tipo de conduta é muito comum em diversas produções midiáticas e é possível criar uma lista enorme com personagens que seguem esse padrão de personalidade dentro das suas histórias. Essa forma de se comportar, que pode ser denominada de hipermasculinidade, não é algo recente e muito menos raro, visto que isso foi sendo construído com o tempo dentro de diversas obras.

Imagem do filme Rambo (1972)

A hipermasculinidade é um termo psicológico que pode ser descrito como um exagero dos traços e estereótipos masculinos (Parrott & Zeichner, 2003), se opondo, assim, completamente a feminilidade. Desempenhar um papel hipermasculino é rejeitar e ser hostil a qualquer tipo de traço dito feminino. É sobre ser viril e agressivo, demonstrar apenas raiva, ter um físico forte, grande e imponente. Ser violento o tempo todo e reprimir as emoções que poderiam torná-lo “fraco”. Contudo, obviamente cada cultura vai ter um entendimento diferente sobre a masculinidade, porém o foco desse texto seria mais na representação dentro da mídia ocidental.

Dentro da cultura geek, como no mundo dos jogos, esse tipo de representação é bem comum, o que acaba contribuindo para o fortalecimento de uma masculinidade tóxica entre os seus admiradores. Não é novidade para ninguém o quanto essa comunidade consegue ser agressiva e violenta, basta a gente se lembrar, por exemplo, dos acontecimentos que levaram ao GamerGate. Como foi escrito por Anjin Anhut (2014),

“Performar masculinidade requer a rejeição do seu socialmente aceito oposto: a feminilidade. Se nós aceitarmos a observação de que os jogos mainstream são instrumentos para jogadores masculinos performarem masculinidade, então eles precisam ser desprovido de emoções (exceto por raiva, talvez), eles precisam ser sexistas, eles precisam ser misóginos, eles precisam ser transfóbicos e homofóbicos… e o jogador individual precisa ser desse jeito também.” (TRADUÇÃO NOSSA)

Um ponto importante, porém, a ser considerado é que isso não é culpa dos jogos em si, visto que “videogames não são aleatoriamente violentos ou aleatoriamente masculinos, mas eles são reflexo da cultura na qual eles foram programados” (MORGAN, 2020, p. 19, tradução nossa). Portanto, ao culpar somente os jogos, a discussão fica apenas na superfície e não chega na verdadeira raiz do problema, que é quem está por trás da produção dessas obras.

Um jogo em que podemos observar, como exemplo, essa representação de hipermasculinidade é dentro da série God of War.

Capa do jogo God of War para PS2

A série de jogos God of War foi criada pelo estúdio Santa Mônica, da Sony, e é bastante aclamada, possuindo uma grande comunidade de fãs. Iniciada em 2005, para o console do PS2, ela vai contar a história de Kratos, um guerreiro espartano que segue em busca de vingança contra os deuses gregos pela morte da sua família. Como um digno hack and slash, obviamente o jogo vai se concentrar nas cenas de luta, que vão ser bem violentas e sangrentas, no intuito de deixá-las épicas. Além das batalhas agressivas com mortes cinematográficas, God of War também vai apresentar mini games em que Kratos terá relações sexuais com outras personagens e cutscenes com nudez.

Kratos é um claro exemplo de hipermasculinidade dentro do universo dos games. Além de ser fisicamente forte e imponente, a raiva é uma emoção muito presente dentro desse personagem. Ele é um espartano e, como tal, foi ensinado desde criança a ser um instrumento de guerra e uma máquina de matar. Mesmo que haja uma certa razão para isso, ele escolhe por livre e espontânea vontade o caminho da violência e do sangue, buscando se vingar pela morte da sua família. Ser agressivo e violento é algo que Kratos entende muito bem.

Personagem Kratos de God of War

Contudo, as coisas mudaram um pouco no novo jogo dessa série que foi lançado em 2018 para a plataforma do PS4 e, agora em 2022, para PC.

Logo nos primeiros minutos do God of War (2018), já nos é apresentado uma cena que demonstra o quanto esse jogo vai ser diferente dos seus anteriores. No início, vemos um Kratos mais velho e maduro em um momento solene e de introspecção. Não há agressividade, nem violência gratuita ou sangue, apenas um breve instante de reflexão e luto pela morte da sua esposa, Faye. Ao abraçar a árvore que foi marcada por ela, Kratos está dando seu último adeus.

E é dessa forma que God of War (2018) demonstra que realmente é possível que haja mudanças dentro da indústria de jogos (MORGAN, 2020).

God of War (2018)

Enquanto os seus jogos anteriores trabalharam com a mitologia grega, God of War (2018) vai trazer a mitologia nórdica para esse universo. Trolls, valquírias, elfos e alguns deuses nórdicos vão estar presentes nesse jogo, trazendo, assim, lutas épicas. Também vai ser possível visitar alguns outros reinos como Niflheim, que possui uma neblina venenosa, ou Muspelheim, que é tomado por chamas. Contudo, o ponto principal desse jogo é a caminhada de Kratos e Atreus para realizarem o último desejo de Faye, que era fazer com que as suas cinzas fossem espalhadas no pico mais alto dos nove reinos nórdicos. É durante esse momento que Kratos terá que enfrentar uma grande e difícil jornada: Tentar se aproximar de Atreus e ensinar a ele como sobreviver naquele mundo. Contudo, para conseguir vencer, ele vai precisar enfrentar seus traços que o tornam violento e emocionalmente distante. Ele precisará, portanto, superar a sua hipermasculinidade.

Um ponto importante a ser observado é que Kratos mudou. Ele já não é mais o mesmo dos seus jogos anteriores, que escolheu o caminho da violência e do sangue. Como foi escrito por Andrew A. Morgan (2020):

“Na trilogia original dos jogos Kratos segue o caminho da vingança. Ele não precisa matar; mas ele quer. Isso se contrasta diretamente com God of War (2018), em que Kratos se esforça para evitar a violência. Em God of War (2018), Kratos não é violento por que ele quer; ele é violento porque ele precisa. A sobrevivência de Kratos e Atreus depende disso.” (TRADUÇÃO NOSSA)

Portanto, nos antigos jogos, Kratos, como traço da sua hipermasculinidade, escolheu ser agressivo e violento. Ele escolheu ser um assassino e seguir o caminho da violência, crueldade e sangue. Mas, no último jogo, ele busca evitar isso, o que demonstra a sua mudança e desconstrução. Kratos ainda é violento, porém essa violência só é utilizada quando é necessário, para garantir a sua sobrevivência e a do seu filho. Ele constantemente está tentando lutar contra a raiva e a brutalidade que existe dentro dele. Para explicar essa mudança de comportamento do personagem, o diretor do jogo, Cory Barlog, disse o seguinte durante uma entrevista para o Polygon:

“Isso não é para dizer que eu odeio o trabalho que fiz antes, porque eu amo tudo aquilo. Mas é que, eu sinto que conforme vou ficando mais velho, estou olhando para as coisas de uma maneira um pouco diferente. Essa é a lição que eu espero passar para o meu filho: Que o conceito de força e vulnerabilidade emocional e a habilidade de ser livre para sentir uma gama de emoções, que esses não são dois conceitos conflitantes ou diametralmente opostos.” (TRADUÇÃO NOSSA)

Cory Barlog, diretor do God of War.

Então, Kratos mudou. Ele já não é mais o mesmo guerreiro espartano que jurou vingança aos deuses do Olimpo. Agora, ele é um pai e, para desempenhar esse papel, é necessário mudar. Vai ser preciso enfrentar os seus demônios, a sua agressividade e a fúria. Kratos vai precisar lidar com a sua hipermasculinidade para conseguir ser um bom pai para o seu filho Atreus, mesmo depois de ter sido ausente durante os seus primeiros estágios de vida. Porém, essa tarefa não vai ser fácil. Como também foi explicado pelo diretor do jogo na mesma entrevista para o Polygon:

“Existe essa ideia dele não saber como fazer essas coisas, mas o seu filho não saber nada diferente, certo? Porque Atreus não foi totalmente criado por Kratos. Sua mãe, Faye, fez boa parte do trabalho inicialmente. Kratos estava passando a maior parte do tempo nas florestas, tentando descobrir como controlar os demônios de dentro dele — o monstro de dentro dele que nós, como seus criadores, permitimos que ficasse esse tempo todo” (TRADUÇÃO NOSSA)

No final da introdução do jogo, vemos uma cena que demonstra o quanto Kratos ainda tem dificuldade de demonstrar compaixão. Após caçarem um veado juntos, Atreus hesita em matar o animal, que não havia morrido depois de receber uma flechada, porém seu pai ajuda ele a terminar de matar e acabar com o sofrimento do bicho. Logo em seguida, Atreus, entristecido e afligido, continua do lado do corpo do animal. Nesse momento, Kratos tenta levar sua mão até o ombro do seu filho para confortá-lo, mas ele não consegue. Kratos queria demonstrar compaixão e empatia para Atreus, mas isso ainda é algo difícil. Ele é claramente fluente na linguagem da violência, mas ainda não entende nada sobre como demonstrar carinho e afeição. Expressar seus sentimentos é uma das suas fraquezas.

God of War (2018)

Para a construção da hipermasculinidade, a raiva e a agressividade são necessárias, enquanto os outros tipos de sentimentos são descartados. Demonstrar empatia e compaixão é desnecessário e pode ser considerado como uma fraqueza. É por esse motivo que é tão difícil para Kratos expressar essas emoções para os outros e, principalmente, para o seu filho. Não é como se ele gostasse de sentir raiva, visto que em nenhum momento o jogo indicou isso para o jogador, mas é implicado que essa é a única emoção em que Kratos se sente confortável e é acostumado a demonstrar (MORGAN, 2020). Isso é algo cômodo para ele.

Como, então, Kratos, um guerreiro violento, vai conseguir desempenhar seu papel de pai para Atreus, que é um garoto que, ao contrário dele, consegue demonstrar facilmente compaixão e empatia?

Personagem Atreus de God of War (2018)

Ao contrário de Kratos, Atreus é altruísta e sensível, o que, provavelmente, aprendeu com a sua mãe. Ele gosta de ajudar e espera o melhor dos outros. Demonstrar compaixão e empatia, diferente do seu pai, é algo que Atreus consegue fazer sem qualquer tipo de dificuldade. Mas, apesar dessa facilidade de expressar seus sentimentos e a sua bondade, ele também consegue ser violento, arrogante e cruel como Kratos em alguns momentos, como foi o que aconteceu após ele descobrir que tem sangue de um deus.

Para Atreus, essa relação com o pai é algo novo, visto que, como foi explicado antes, Kratos esteve ausente durante grande parte da sua infância. Apesar disso, ele quer e busca ser aceito pelo seu pai. Atreus pensa que Kratos o acha fraco e que nunca o quis, e é por esse motivo que ter uma validação é algo tão importante para ele. A gente consegue perceber esses sentimentos dele no seu seguinte diálogo dentro do jogo:

“Você disse que eu era amaldiçoado. Você acha que eu sou fraco, porque eu não sou como você. Eu sei que eu nunca fui o que você queria. Mas depois disso tudo, eu pensei que… talvez as coisas fossem diferentes.”

Essa falta de validação e atenção faz com que, portanto, Atreus acabe sofrendo pensando que o seu pai o despreza. Além de querer essa aceitação, o garoto também deseja ser como Kratos. Por conta dessa ausência paterna durante sua infância, Atreus criou uma imagem mítica e imponente de Kratos, o enxergando como alguém forte e capaz de fazer tudo (MORGAN, 2020). Contudo, será que ao desejar performar como seu pai, Atreus pode acabar almejando reproduzir esses traços de hipermasculinidade dele?

É dessa maneira que a verdadeira jornada de God of War (2018) vai se construindo. O tema principal do jogo não é sobre mitologia nórdica, mas sim sobre a jornada pai e filho de Kratos e Atreus. É sobre Kratos tentando lidar com a sua própria hipermasculinidade e ensinando a Atreus a ser um homem melhor do que ele é. Ele quer que seu filho seja um homem bom. God of War (2018) busca mostrar a dificuldade de Kratos para aprender a utilizar seus sentimentos enquanto tenta desempenhar um papel de pai para Atreus. O jogador acompanha a relação dos dois, que não eram tão próximos assim até a morte de Faye, se desenvolvendo na sua frente, em uma jornada imersiva, bela e sensível que, com certeza, vale a pena presenciar.

God of War (2018)

Referências Bibliográficas

Morgan, Andrew A.. (2020). God of War: Masculinity and Fatherhood Through Procedural Rhetoric. University of the Pacific, Thesis. https://scholarlycommons.pacific.edu/uop_etds/3703

Anhut, Amos. 2014. Beyond fantasy–Gender performance & games. How not to suck at game design, December 7. http://howtonotsuckatgamedesign.com/2014/12/beyond-fantasy-gender-performance-and-games.

Parrott, Dominic J., and Amos Zeichner. 2003. Efects of hypermasculinity on physical aggression against women. Psychology of Men & Masculinity 4 (1): 70–78. https://doi.org/10.1037/1524-9220.4.1.70.

Entrevista: https://www.polygon.com/interviews/2018/4/27/17287292/god-of-war-ps4-sony-toxic-masculinity

Iasmin Barbosa é graduanda do curso de Estudos de Mídia, pela Universidade Federal Fluminense, e membro do GameClube.

--

--

Iasmin Barbosa
Game Clube

Graduanda em Estudos de Mídia na UFF e escrevo umas coisinhas às vezes.