Cada mergulho (na web) é um (jogo de) Flash

Dinho Senos
Game Clube
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5 min readMay 11, 2021

Devo a mim mesmo começar este texto com uma frase: “Balneário de Verão do Cartoon Network”. Isso vai fazer sentido mais pra frente.

A questão aqui é que todos nós, ou pelo menos uma grande parcela da geração que presenciou o avanço incrivelmente rápido da era da informação, temos o nosso próprio “Balneário”. Ao olhar para trás no ponto final de uma era digital marcada pela existência dessas pedras preciosas, esse escrito tenta revisitar (informativa e emocionalmente) a plataforma Flash e os games que utilizaram desse espaço.

O começo do Flash como plataforma de criação foi muito antes de se pensar em como usá-lo para desenvolvimento de jogos. Basicamente, o Flash que nós conhecemos teve duas origens: a primeira em um software de design para tablets e (pasme com a idade desse termo) “palm-tops”, o SmartSketch de 1993; a segunda no Macromedia Shockwave, uma linha de softwares otimizada para o compartilhamento na web que se popularizou em 1995 com o lançamento do Shockwave Player 1.0, que excluiu a necessidade de criação de um arquivo executável ao compartilhar uma criação no formato Shockwave, tornando os arquivos de criação muito mais leves (ou seja, mais downloads e menos CD-ROMs). No final das contas, o SmartSketch (depois renomeado como FutureSplash) foi comprado pela Macromedia, o que resultou em um compilado das funcionalidades desses softwares para a criação do Macromedia Flash. Pequeno e de execução simples e rápida, o plugin de execução do Flash foi distribuído pelos principais navegadores durante a segunda metade da década de 90, época em que a internet não possuía nem uma fração da velocidade que temos hoje: isso resultou em uma popularização instantânea do Flash como plataforma de criação não só de jogos, mas principalmente animações e websites inteiros. No final de 2005, a Macromedia como um todo foi comprada pela Adobe, que renomeou o Macromedia Flash para Adobe Flash. O curioso é que a Adobe já havia recusado uma proposta de venda do FutureSplash lá em 1995. O mundo dá voltas tal qual uma animação em loop… feita no Flash. Para uma viagem mais à fundo no mundo corporativo envolvido na criação do Flash, recomendo este artigo.

Logomarcas (da esq. pra dir.): FutureSplash, da FutureWave; Shockwave, da Macromedia; Flash, da Adobe.

Para o Brasil, os maiores expoentes de distribuição de jogos em Flash foram os pequenos e espalhados websites que, basicamente, se dividiam em “jogos de desenhos animados” e “jogos de meninas”. Naquela época, aparentemente, essa divisão ideológica parecia ser muito importante; na prática, isso não impediu ninguém de visitar os dress-ups da Barbie nem os CD-ROMs com “308 Jogos”.

Até hoje eu ainda não sei como desligar a música

A minha experiência e memória afetiva me fazem agradecer, aqui, às revistas da Digerati, editora paulista já descontinuada, e ao site Tilt, da UOL, que apesar de hoje ser uma plataforma de notícias sobre tecnologia já foi um grande banco de dados de jogos em Flash. A partir de 2006, porém, a casa desses games é o Kongregate, que compila criações das já renomadas Armor Games, Newgrounds e Miniclip com espaço para obras indie (seria, nesse caso, o indie do indie?). Eventualmente, dado seu tamanho e a iminente queda do Flash como plataforma atualizada e suportada pelos navegadores, o Kongregate começou um processo de migração para um software individual, o Kartridge, já contendo jogos em outros formatos além do Flash, com destaque para o Unity, uma engine de jogos versátil capaz de trabalhar com gráficos e jogabilidade simples e/ou complexos.

Em 2017, fãs de Flash receberam a já esperada porém não menos dolorosa notícia que a EOL (End-of-life, fim da vida) do Adobe Flash aconteceria em 2020. Isso significa que os navegadores parariam de receber e interagir com reprodutores de Flash e Shockwave, e que a Adobe, que já não atualizava o Flash desde o começo da década de 20, não iria mais disponibilizar o produto em sua seção de downloads. Essa descontinuação foi feita em prol da utilização, principalmente, do HTML5 como formato de criação multimídia para websites, mas também da atual facilidade em se obter aplicações sem a necessidade do tamanho reduzido que o Flash proporcionava. A obsolescência do Flash pode ser resumida em uma carta aberta de Steve Jobs, escrita em 2010, a “Thoughts on Flash” (em português, “Ponderações sobre Flash”), basicamente uma explicação extensa sobre os motivos pelos quais os dispositivos com iOS, o sistema operacional da Apple, não iriam e nem precisavam dar suporte ao Flash, alegando a falta de necessidade e a má otimização do formato em celulares e computadores modernos.

O estatuto oficial da Adobe em relação ao Flash: desinstale-o de seu computador

Voltemos, portanto, ao começo. O Balneário de Verão do Cartoon Network foi um jogo, disponível no website do canal, que consistia em controlar diversos personagens de dezenas de desenhos animados para resolver problemas, dos mais simples aos mais complexos. Todos os personagens estavam de “férias dos próprios desenhos”, o que dava sentido ao fato de que todos eles compartilhavam um mesmo universo. O game era um RPG 2D clássico no estilo Chrono Trigger e Legend of Zelda (guardadas as devidas proporções), ou seja, envolvia coleta e entrega de itens, missões, áreas secretas, uso de poderes, etc. O ponto aqui é que eu não me considerava um “gamer” na época em que descobri esse jogo, mas ele criou uma base incrivelmente sólida para que meu gosto em mídia digital se desenvolvesse, e isso mostra uma verdade de grande parte da geração que hoje tem entre 20 e 30 anos e gosta de jogos: nós somos filhos do Flash.

Não surpreende, portanto, que lutemos veementemente contra a destruição deste que teve papel tão importante na formação de nossa identidade. Além do Kartridge, o Kongregate, de alguma forma, ainda funciona; os antigos CD-ROMs da Digerati, Editora Europa e tantas outras, também seguem vivos enquanto os reprodutores de CD estiverem disponíveis em computadores (o que traz outra questão de morte iminente de tecnologia); mais proeminente, mais de 100 usuários, incluindo o idealizador do projeto BlueMaxima, contribuem desde 2018 para a criação de um museu de animações e jogos em Flash, o Flashpoint, que na data desta publicação já conta com mais de 100 mil criações das mais variadas fontes, nacionalidades e motivos, incluindo uma transposição de O Grande Gatsby para um jogo de plataforma aos moldes de Super Mario Bros. e Alex Kidd. De alguma forma, o jogo funciona bastane bem.

O propósito desse texto foi revisitar games dessa plataforma que formou toda uma massa de gamers através de mecânicas e apelos incrivelmente simples, mas que nem por isso (ou talvez especificamente por isso) tenha um espaço tão nostálgico e carinhoso em nossos corações. Que possamos sempre revisitá-lo quando a saudade bater. Adeus, Flash, e obrigado.

Claudio “Dinho” Senos é membro infiltrado do Game Clube desde 2019, pois não faz parte da graduação de Estudos de Mídia e sim de Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade Federal Fluminense.

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Dinho Senos
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Arch/Urb student, gaming enthusiast. @DinhoSenos_