Como Mortal Kombat se tornou o jogo de luta mais importante da última década

Lucas Oliveira
Game Clube
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7 min readJun 19, 2023

Jogos de luta, em geral, têm históricos complicados.

Eles têm fama de serem difíceis, de serem pouco receptivos a novatos (uma afirmação debatível), de recorrerem a estereótipos muito próximos de serem misóginos e/ou xenofóbicos. Mas, para além disso, é pouco falado como as franquias de fighting game parecem ser algumas das mais afetadas por altos e baixos em seus históricos.

Até mesmo marcas emblemáticas, como Street Fighter e The King of Fighters, tiveram seu nome manchado em alguma medida por conta de títulos que não caíram no gosto do público. Nesse sentido, talvez o jogo de luta que mais possa falar sobre esse sofrimento com altos e baixos seja Mortal Kombat.

Com uma primeira trilogia (1992–1996) aclamada por fãs e que marcou a história dos videogames para sempre, os anos entre 1997 e 2010 foram anos mornos para Mortal Kombat, para dizer o mínimo. Personagens novos pouco inspirados e gameplay básico foram somente alguns dos motivos pelos quais os anos 2000 fizeram muito mal para Liu Kang e companhia. Embora títulos como Deadly Alliance (2002), Deception (2004) e Armageddon (2006) tenham seus méritos e inclusive tenham (re)conquistado o coração da base de fãs nos últimos anos (um tema que merece seu próprio texto), é inegável que a recepção fraca à época de seus lançamentos afetaram o nome da franquia de uma forma que parecia ser quase irreversível. Mas alguns males vêm para o bem, e essa aparente ladeira abaixo teve um fim.

Tudo mudou quando Mortal Kombat foi adquirido pela Warner Bros. e o recém fundado Netherrealm Studios começou o desenvolvimento do próximo jogo da franquia, intitulado simplesmente de Mortal Kombat (2011).

Os anos seguintes viriam a ser importantíssimos para a marca. A reconstrução de Mortal Kombat aconteceu não só pela nova direção dos jogos em si, mas também pelas diversas iniciativas de branding, pela expansão transmidiática e pela aproximação a públicos historicamente distanciados desse tipo de jogo.

Mortal Kombat tornou-se a franquia de luta mais importante da última década, e aqui listamos alguns motivos para levar essa afirmação a sério.

Começando, claro, pelos jogos em si. Se Mortal Kombat reconquistou seu lugar no panteão dos fighting games isso se deve muito pela qualidade dos jogos mais recentes, que apresentam mecânicas extremamente competentes, possibilitando belos combos e experimentações por qualquer tipo de jogador. Novidades grandes no gameplay e que viriam a ser imagens de encher os olhos até de quem não é exatamente fã da franquia — como os X-Rays de Mortal Kombat (2011) e os Fatal Blows de Mortal Kombat 11 (2019) se tornaram muito mais do que frescor para os combates, mas também um selling point dos produtos.

A renovação que começou em 2011 popularizou também o estilo NetherRealm de contar histórias, apresentando uma campanha cinematográfica com cutscenes e lutas épicas, o que é algo bem diferente do que normalmente vemos em outros jogos de luta (que costumam contar sua narrativa principal somente através dos finais dos personagens no modo arcade). Os modos história dos últimos títulos da franquia também se tornaram selling points dos jogos, que tem um espaço a mais para contar sua narrativa em formato épico e ainda expandir a lore de seu universo. Em um mundo onde falar de história em jogo de luta chega a ser chacota, Mortal Kombat foi contra essa linha de pensamento e estabeleceu a importância de ter uma narrativa estruturada em sua franquia.

Por falar em modos de jogo, a Krypta — que deixou de ser um simples arquivo de imagens e vídeos para ser um modo de jogo completamente à parte das lutas, com exploração de ambientes e até puzzles — contribuiu para diversificar a experiência dos jogadores, ao passo que as variações de personagens em Mortal Kombat X (2015) contribuíram para expandir as possibilidades no gameplay das lutas e a personalização de skins em Mortal Kombat 11 permitiu que os jogadores passassem horas montando seus próprios looks de cada personagem. Novidades como essas contribuíram fortemente para que os jogos se mantivessem frescos a cada novo lançamento, renovando interesse de fãs e entusiastas da marca.

E um último ponto sobre os jogos: os temas abordados pela franquia nunca foram tão diversos. Como se tivesse “crescido junto com os fãs”, Mortal Kombat hoje trata de temas que seus títulos dos anos 1990 e 2000 sequer tocavam, como relações familiares e diversidade.

Esse, aliás, é outro ponto que merece seu próprio texto. Mortal Kombat hoje se tornou uma das franquias de videogame mais próximas da comunidade LGBTQIA+, muito pela maneira positiva através da qual representa a sexualidade de personagens como Mileena, Kung Jin e Tanya, entre outros. Pode ser que isso seja o mínimo, mas em um contexto onde jogos num geral — e principalmente jogos de luta — parecem pouco se importar com representação, Mortal Kombat tem um papel no mínimo interessante — algo perceptível também na forma com que representa personagens femininas desde 2015, claramente com menos pele à mostra e mais próximas do que deveriam ser guerreiras lutando em combates mortais.

Mas e para além dos jogos em si? Bem, se focarmos no Brasil, é louvável a forma com que Warner Bros. e a NetherRealm tratam o público nacional desde a reinvenção da franquia. O título de 2011 vinha com menus e legendas totalmente localizadas para o português brasileiro (algo que na época ainda era incomum), e as duas empresas, desde Injustice: Gods Among Us (2013) também trazem todos os seus lançamentos 100% dublados para nosso idioma. Essa atenção com os jogadores brasileiros contribui para a percepção de marca no território nacional, e não é incomum ver (depois do fiasco da dublagem de MKX) elogios à qualidade das falas em português de MK11, mesmo anos após seu lançamento original.

A consideração com os brasileiros não fica somente no nosso idioma, e leva para os jogos aspectos típicos da nossa cultura na forma de skins, como o Kung Lao Gaúcho de MKX e o Kano Kangaceiro de MK11. Skins exclusivas para o público brasileiro é algo bastante incomum de se ver em outras franquias de luta, que enquanto isso parecem preferir representar o brasileiro como uma fera selvagem que solta eletricidade.

Saindo do tema sobre representatividade brasileira, mas ainda dentro do tópico sobre presença de marca, a NetherRealm coloca a franquia na capa de todos os portais de games e até em alguns veículos de cinema quando revela novos personagens convidados como DLC. Começando lá atrás com Freddy Kruger, passando por Jason Voorhees, Alien, Predador e Leatherface, ícones dos filmes de terror encontraram um bom lugar nas arenas de Mortal Kombat, com seus golpes perfeitos para se tornarem fatalities sangrentos cheios de referência às respectivas franquias. Mortal Kombat 11 extrapola e traz ainda convidados do cinema de ação como Rambo, Exterminador e RoboCop, chamando atenção de entusiastas das duas mídias, e fãs dos filmes que não necessariamente se interessavam por MK a princípio. É um trabalho de branding conjunto, que respeita todas as franquias envolvidas e que comemora a existência delas e a paixão de seus fãs.

A presença de marca de Mortal Kombat é expandida ainda pela sua figura central, hoje já eternizada no cânone da indústria de games, chamada Ed Boon. Mais um aspecto não tão presente em outras franquias de fighting games, Ed Boon assume um papel quase bíblico, como ser celestial que comanda todas as idas e vindas de seus kombatentes, de uma maneira muito mais poderosa do que Kronika jamais conseguiria. Cada tuíte de Boon tem o poder de viralizar, sobretudo em tempos de lançamento, onde cada palavra pode ser uma dica do que está por vir. O engajamento diário que o criador tem com os fãs fortifica a própria marca Mortal Kombat, e elucida uma prática de marketing que hoje se mostra cada vez mais comum, que é a comunicação despojada em redes sociais.

Por fim, é justo e necessário reconhecer que um dos motivos pelos quais Mortal Kombat se tornou a franquia de luta mais importante da última década foi pela sua expansão transmidiática.

Com a web série Mortal Kombat: Legacy no início da década passada, a franquia saía dos jogos pela primeira vez em anos para contar suas histórias em outras mídias. Voltou aos quadrinhos em 2015 para preparar os fãs para o décimo jogo da linha principal, e em 2020 começou seu universo animado com A Vingança de Scorpion, um decente longa metragem que contou com as continuações Batalha dos Reinos (2021), Cegueira Glacial (2022) e que ganha um novo capítulo em 2023 com Cage Match.

Justo também citar o live action de 2021 que, mesmo com recepções mistas (para dizer o mínimo), mantém a base de fãs animada com um aparente novo universo cinematográfico e um casting de respeito.

E é assim, fazendo o que poucos fighting games fazem, lançando bons jogos, usando um excelente branding e uma atuação transmídia que Mortal Kombat se estabelece como a franquia de jogos de luta mais importante da última década, sem dar sinais de cansaço e enquanto se prepara para o lançamento de um novo universo em Mortal Kombat 1. O futuro só a Liu Kang (ou Ed Boon?) pertence, mas o passado e presente dessa franquia, felizmente, pertence a todos os fãs.

Lucas Oliveira é graduado em Estudos de Mídia e aluno de mestrado no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense — PPGCOM/UFF. Membro do mediaLudens — grupo de pesquisa em mídias digitais, experiência e ludicidade, concentra sua pesquisa na área de experiência estética com jogos eletrônicos, especialmente nas práticas de lentidão associadas ao movimento de slow gaming.

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Lucas Oliveira
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Media Student; Video Game Researcher; Digital Product Professional.