O Círculo Mágico nos Role-playing Games

Raphael Wheeler
Game Clube
Published in
4 min readMay 29, 2024

Um mago de chapéu pontudo gesticula com suas mãos em uma forma circular como se riscasse o ar. Paulatinamente uma pequena fissura se abre com fagulhas cintilantes que circundam o mago e seus amigos aventureiros numa parede invisível de proteção. De dentro daquele mundo fantástico o mago ainda escuta uma voz maternal gritar: Venham, o lanche está pronto!

Este texto, de antemão, não pretende esgotar o tema, mas de abrir a reflexão sobre o conceito de círculo mágico em especial as dinâmicas que os RPGs tem como intrínsecas a sua natureza. A direção a qual se opta discutir aqui é, mais especificamente, dos RPGs de mesa, mesmo que praticados através de interfaces digitais como os VTTs.

O conceito de Círculo Mágico foi desenvolvido e popularizado através da obra Homo Ludens do historiador holandês Johan Huizinga, publicado em 1938. Em princípio, se entendermos em seus moldes, o círculo mágico seria como uma separação espaço-temporal entre o cotidiano e o mundo de jogo. Dessa forma, seria como o desenho animado Caverna do Dragão onde as crianças são transportadas para uma realidade paralela para experimentar um mundo fantástico com o Mestre dos Magos, Vingador e Tiamat.

Para Huizinga, o conceito é usado para descrever uma delimitação temporária de um espaço físico ou conceitualmente determinado em que os jogadores adentram voluntariamente numa suspensão das normas do cotidiano para para estar nessa experiência lúdica do círculo mágico. Há uma separação rígida entre a realidade cotidiana e o mundo do jogo. Huizinga constantemente usa os esportes como boa forma de delimitar esses espaços.

Há outros autores que posteriormente contribuíram para o conceito que modernamente sofre de bastante crítica, mas que se leva em consideração também ser um texto com quase 90 anos de publicação em um período que não havia ainda jogos digitais.

Zimmerman e Salen, por exemplo, em Regra do Jogo: Fundamentos do Design de Jogos, argumentam que o conceito pode ser olhado como uma metáfora apontando uma fronteira imaginária porosa, permeável entre o mundo cotidiano e o mundo de jogo, não sendo assim uma barreira rígida.

Emmanoel Ferreira (professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense) e Thiago Falcão (professor e pesquisador da Universidade Federal da Paraíba) nos apresentam uma concepção de círculo mágico como um elemento mediador. Elemento esse que seria um facilitador na interação lúdica entre jogadores e o mundo de jogo. Dessa forma, o círculo mágico não representaria uma barreira intransponível, mas sim um espaço onde jogadores exploram, transacionam e compartilham significados.

O jogador não seria encapsulado no mundo do jogo, o círculo mágico é um elemento mediador que não delimita espaços ou teleporta o jogador para uma dimensão paralela. O Círculo Mágico age como um ponto de contato entre a “vida normal” e o universo do jogo.

Ademais, os autores apresentam duas formas de manifestação do círculo mágico, uma fluida e outra sólida. A fluida está associada a mediação a uma fronteira mais nebulosa, turva em que a separação entre a ficção do jogo e a realidade seja mais sutil, menos identificável.

Essa sutileza parece ter uma boa representação nos jogos de RPGs na forma de LARP (Live Action Role-play) que, na década de 90 e começo dos anos 2000 foram muito populares no Brasil. Em especial, jogos como Vampiro, A Máscara em que os cenários urbanos e contemporâneos muitas vezes tornavam essas interações lúdicas do jogo muito próximas da realidade. O forte processo imersivo que gera interações com a realidade cotidiana e a ficção e a própria interação com os ambientes físicos tornam a fronteira ainda mais borrada.

Já a mediação sólida, por sua vez, a fronteira entre a realidade cotidiana e a ficção do mundo de jogo é mais delimitada. É um processo de mediação mais demarcado com um deslocamento mais evidente da realidade cotidiana.

Dessa forma, os jogos de RPGs de mesa que sejam jogados presencialmente ou por interfaces digitais como VTTs como Roll20, Foundry, Fantasy Grounds geralmente pela sua natureza estruturada acabam por se enquadrar melhor na mediação sólida. Isso porque mesmo jogos com regras mais minimalistas como Fate, Lasers and Feelings e Tiny Dungeon há uma base para que regras da casa se constituam de uma forma estruturada.

As interações a partir das personagens mesmo que com interpretações mais teatralizadas, criativas e imersivas ainda estão vinculadas a uma estrutura de sistema que delimita muito bem o universo diegético ficcional do jogo e a realidade cotidiana.

Jogos Old School, ou que se inspiram ao menos nas suas ideias, trabalham frequentemente com o sistema de regras como uma caixa de ferramentas, regras lacunares e fichas de jogo mais enxutas.

Muitas vezes os personagens são muito mais próximos de seus intérpretes do que em jogos modernos, o que, junto com a lacunaridade de regras, por vezes torna as fronteiras da mediação mais fluidas permitindo essa maior permeabilidade entre a realidade e a ficção diegética do mundo de jogo.

Os RPGs Digitais, de console ou computador, como Baldur’s Gate, Pokémon, Final Fantasy a própria interação dentro do ambiente virtual e as limitações estipuladas pela própria programação do jogo tornam geralmente essa definição da fronteira entre realidade e ficção uma mediação sólida. São jogos bastante estruturados com regras bem determinadas e narrativas imersivas.

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