Por que The Last of Us é o jogo mais importante da década

Emmanoel Ferreira
Game Clube
Published in
7 min readDec 28, 2019

O ano era 2013. Avistava-se já o fim de mais um ciclo dos consoles, o que ocorreria dentro de seis meses, em dezembro daquele ano, com o lançamento do PlayStation 4, da Sony, e do Xbox One, da Microsoft. Todavia, um título — talvez o último daquela geração — ainda chegaria para fechar com chave de ouro a era do PlayStation 3. Estamos falando de The Last of Us, lançado mundialmente em 13 de junho de 2013 e desenvolvido pela Naughty Dog, desenvolvedora já (e provavelmente mais) conhecida pela série Uncharted, que teve seu início no próprio PlayStation 3, além de outras séries de sucesso como Crash Bandicoot (com primeiro título lançado em 1997 para o PlayStation) e Jak and Daxter (lançado originalmente em 2001 para o PlayStation 2). Retornando a 2013: naquele 13 de junho lá estava eu na (agora infelizmente encerrada) Livraria Cultura do centro do Rio de Janeiro, ansioso para colocar as mãos naquela caixa com a belíssima ilustração dos personagens Joel e Ellie, protagonistas da trama, em que são retratados caminhando sobre uma rua alagada enquanto olham para trás — seus olharem acertando em cheio aquele que olha para a capa, como numa referência indireta ao quadro Las Meninas, de Diego Velázquez (1656). Esta era a primeira vez que eu adquiria um jogo no mesmo dia de seu lançamento. A empolgação era grande.

Este texto é parte de uma série de artigos do Game Clube que revisita os maiores jogos da década de 2010. Confira a lista completa!

Como é comum acontecer nos “finais de ciclo” de consoles, os títulos lançados nesta altura costumam ser mais bem acabados, já que desenvolvedores tiveram ao menos meia década para se familiarizarem com o hardware, suas possibilidades, seus problemas, e como contorná-los. Obviamente que apenas esta experiência não é garantia de um jogo de qualidade. Porém, neste caso particular, podemos dizer que todos os fatores concorreram para um jogo primoroso e, diria eu, ilustrando esta série de textos, o mais importante da década. Nas próximas linhas, buscarei desenvolver alguns argumentos — os quais poderão ser refutados, por suposto — na defesa desta afirmação.

The Last of Us (TLOUS) aglutina, de maneira precisa, aquilo que é objeto de debate entre game designers e estudiosos desta mídia há alguns anos, ou quiçá décadas: a relação inequívoca entre narrativa e gameplay. Desde sua cena de abertura, em que, ao som de um tic-tac, vemos Joel chegar em casa e travar uma conversa — aliás, bastante madura, o que já fornece pistas ao espectador/jogador do “tom” dos diálogos que este verá ao longo do jogo — banal, cotidiana, com sua filha Sarah, que dá ao pai um presente de aniversário: um relógio. Objeto igualmente banal, cotidiano, mas que antecipa, ao menos ao jogador mais atento, uma das dinâmicas centrais do jogo: a corrida pela sobrevivência, o timing correto das ações de Joel e Ellie, que terá como predicado a resolução entre vida e morte. Após receber o relógio, Joel carrega Sarah para a cama, em seus braços, agora ao som do belíssimo score composto pelo músico argentino Gustavo Santaolalla — que já havia composto trilhas sonoras para filmes como Diários de Motocicleta (dir. Walter Salles, 2004), vencedor do BAFTA 2005 de melhor trilha sonora original, Brokeback Mountain (dir. Ang Lee, 2005), vencedor do OSCAR 2005 de melhor trilha sonora original, Babel (dir. Alejandro González Iñárritu, 2006), vencedor do OSCAR 2006 e BAFTA 2007 de melhor trilha sonora original — que traz à cena certa dramaticidade, sem cair no kitsch ou no piegas.

Cut. Vemos agora Sarah ser acordada pelo toque do telefone, seu tio Tommy, que precisa urgentemente falar com seu pai. Sarah levanta da cama e já a partir deste ponto o jogador assume o controle da personagem. É também a partir daí que o jogo começa a “ensinar” ao jogador suas mecânicas: movimentação dos personagens, interações com os objetos (abrir portas, pegar e observar objetos dispostos pelo ambiente, etc.). Tudo isto em paralelo ao diálogo, que corre num sincronismo muito preciso entre a ação do jogador e os acontecimentos da história que se desenrola. Deste ponto, o jogador deve movimentar Sarah pela casa, à procura de Joel. A tensão desta sequência aumenta progressivamente ao passo que Sarah circula pela sua casa de dois andares, depara com uma notícia de jornal sobre uma suposta contaminação que atingiu a área, passa pela TV e assiste a uma cobertura de alguma tragédia que ocorre naquele momento em Austin/Texas (a cidade onde vivem os personagens) para então, ainda em sua busca pelo pai, olhar através das janelas de sua casa e ver carros de polícia passando em alta velocidade e com suas sirenes ligadas.

Joel, Tommy e Sarah tentam fugir da cidade

Para um breve alívio do jogador, Joel entra em casa e avisa Sarah que algo ruim está acontecendo. Breve, pois em seguida Jimmy, um de seus amigos, quebra o vidro da porta de entrada e vai em direção aos dois, numa investida típica dos melhores filmes de zumbi, ao que Joel o acerta com seu revólver. Ainda na sequência, seu tio Tommy chega com sua caminhonete onde todos entram, numa tentativa de fugir da cidade, fugir do perigo. Neste ponto, o jogador ainda tem o controle de Sarah, que pode somente olhar pelos vidros da janela do automóvel pilotado por Tommy. Instantes depois, um acidente, e o jogador agora está no controle de Joel, que deve correr com Sarah no colo e fugir dos infectados, que estão por toda parte. Joel deve prezar não apenas por sua vida, mas também — e sobretudo — pela de sua filha. Aqui já se estabelece algo que estará presente durante todo o jogo: a conexão emocional entre Joel e Ellie, conexão esta que exerce imenso poder não apenas na narrativa, mas também no gameplay.

Certo é que TLOUS não foi o pioneiro na atual tendência da indústria de jogos em evitar ao máximo cutscenes em que o jogador perde o controle dos personagens e deve, “passivamente”, assistir aos “pontos-chave” de sua narrativa. Half-Life (Valve, 1998) pode ser considerado um dos pioneiros desta abordagem, em que se usa o que convencionalmente é chamado de scripted sequences, em que se mantém o jogador no controle total do personagem, ou ao menos de seu ponto de vista. Em todo caso, importante ressaltar que em TLOUS boa parte (senão a maior) da história que chega ao jogador se dá a partir dos diálogos entre os personagens, “dentro” do gameplay, algo que está ganhando cada vez mais importância em títulos recentes, como em God of War (Santa Monica Studio, 2018). Esta abordagem torna o conjunto narrativa+gameplay muito mais fluido e integrado, evitando a desconexão de imersão muitas vezes ocasionada pelas cutscenes sem interação.

Ellie e Joel

Em termos de mecânica central (core mechanic), TLOUS gira em torno de avançar com os personagens em busca de um grupo de humanos sobreviventes chamados de fireflies, eliminar inimigos (tanto Infectados, quanto Humanos) em prol de sua sobrevivência, recolher recursos que serão utilizados para criação de armas, como coquetéis motolov, munição para armas de fogo, assim como medkits, utilizados para repor a energia de Joel e Ellie. Apesar de haver um caminho “correto” a ser seguido para se chegar aos objetivos do jogo, há certo grau de liberdade proporcionado ao jogador, sobretudo no “como” se chegar aos objetivos, o que confere aquilo que pesquisadores chamam de “agência”, ou seja, a sensação de que as ações do jogador têm um impacto real no gameplay. Esta agência é ainda amplificada diante da conexão entre os personagens, conforme mencionado anteriormente: realizar uma série de objetivos secundários para evitar a morte de um dos protagonistas, e eventualmente conseguir, traz grande sensação de recompensa ou, conforme tenho afirmado em trabalhos recentes, uma “experiência estética”. Ademais, também para o jogador mais atento, não raros são os momentos em que situações éticas são expostas, seja pelo viés da narrativa — neste caso apresentada através dos diálogos entre os personagens –, seja pelo viés do gameplay. Eliminar os inimigos (a propósito, quem será o verdadeiro inimigo?) ou avançar sorrateiramente, evitando conflitos? Ainda que este tipo de escolha não afete diretamente o resultado concreto dos acontecimentos, ela pode, sim, afetar as emoções do jogador. Como afirma Katherine Isbister, “Esta capacidade de evocar sentimentos reais de culpa por meio de uma experiência ficcional é única dos games. Um leitor ou espectador pode sentir muitas emoções quando apresentados a atos horríveis na página ou na tela, mas responsabilidade e culpa não estão geralmente entre elas”[1].

Poderia permanecer horas e mais horas, páginas e mais páginas divagando sobre este jogo fenomenal, que teve, inclusive, versão remasterizada lançada em 2014 para PlayStation 4 e que contém a expansão The Last of Us: Left Behind (também lançada para PlayStation 3), uma espécie de spin-off do primeiro jogo que apresenta acontecimentos ambientados durante um dos capítulos da trama principal. Entretanto, diante do pouco espaço que me resta neste post, finalizo afirmando que, tanto nesta década quanto em toda história dos videogames, poucos jogos conseguiram me afetar de modo a criar esta forte conexão (ainda rara) entre os diversos “atores” que compõem o palco de um game “em andamento”: jogador, jogo, controles, imagens, sons, personagens, narrativa, gameplay. The Last of Us certamente está entre eles.

Emmanoel Ferreira é professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Líder do mediaLudens: grupo de pesquisa em mídias digitais, experiência e ludicidade e coordenador do Game Clube UFF. E-mail: emmanoferreira@midia.uff.br.

[1] Katherine Isbister. How Games Move Us: Emotion by Design. Cambridge/MA: The MIT Press, 2016.

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