Desigualdade e amadorismo: o longo caminho à elite

Bruno Núñez
Gândulla em português
5 min readSep 29, 2018

*Texto escrito em julho de 2014

Equipe posada do Barnechea, do Chile.
A equipe do Barnechea (Foto: Agencia UNO)

No último dia 19 de julho, o Athletic Club Barnechea entrou em campo pela primeira vez em sua história na primeira divisão do Chile. A equipe da Região Metropolitana de Santiago não teve o debut de seus sonhos: perdeu por 3 a 0 do Santiago Wanderers, no estádio Elias Fígueroa, em Valparaíso. Apesar do revés, o feito é notável, já que o clube chegou à elite do futebol chilena em apenas três temporadas no profissionalismo.

Os poucos anos no profissionalismo não escondem a tradição do elenco metropolitano. O Barnechea foi fundado em 1929, quando o clube de tiro ao arco Santa Rosa decidiu ter uma equipe de futebol, chamando-a de Deportivo Santa Rosa Barnechea, passando por diversos nomes diferentes até culminar na designação atual. Em 1983, a equipe participou da primeira edição da 4ª edição do país andino, conseguindo o acesso em 1988, após um vice-campeonato frente ao Thomas Bata de Peñaflor.

Foram longos 23 anos na terceira divisão do território criollo. O Barne chegou perto de ingressar ao futebol profissional chileno (durante um bom tempo apenas 1ª e 2ª divisões chilenas eram consideradas profissionais). Por dois anos consecutivos, o time da comuna de Lo Barnechea beliscou o título da série, caindo na final para a Universidad de Concepción e Colchagua, nos anos de 1997 e 1998, respectivamente.

A mais desigual do país

O quase ingresso ao profissionalismo criou expectativas e torcedores. Manuel Gómez, defensor do clube no programa Show de Goles do canal chileno CDF, passou a acompanhar o clube ferrenhamente após as campanhas de 97 e 98. Criado na comuna de Lo Barnechea, “a mais desigual do país”, segundo o próprio, o torcedor tem história com a equipe azul e amarela.

“Comecei a jogar no Barnechea com meus 6 anos e logo depois virei torcedor. Minhas primeiras idas ao estádio foram porque meu irmão era chefe da torcida em 1997, ano em que classificamos à liguilha da terceira divisão e nos faltou um ponto para subir à Primera B (2ª divisão). Em 1998 também jogamos a final, e perdemos novamente contra o Colchagua. Desde esse momento, comecei a seguir o Barne aonde ele fosse”, explica.

Gómez também é parte da barra Los Huaicocheros, que acabou virando um dos apelidos da equipe. O nome homenageia os primeiros habitantes de Lo Barnechea, os huaicoches, designição dada pelos incas aos moradores mapuches, o povo originário que habitava o território chileno e argentino, do Vale de Santiago. Em quechua ‘wayku’ é quebrada, enquanto ‘che’ na língua mapudungun significa pessoa.

Instrumentos da torcida organizada Los Huaicocheros do clube Barnechea do Chile.
Os instrumentos da barra Los Huaicocheros

“Não somos muitos na barra. Começamos com um par de amigos, fizemos um trapo e pensamos nos primeiros moradores da comuna para batizar o grupo. De pouco a pouco o pessoal vem se integrar. Avisamos que o objetivo principal é alentar os jogadores, ganhando ou perdendo, jogue bem ou jogue mal. É quase proibido gritar contra os outros times. De fato, não temos nenhum cântico contra um rival”, afirma.

Apesar do esforço de Gómez e dos outros torcedores, o Barnechea não tem grandes médias de público. Primeiro pela desigualdade, Lo Barnechea é totalmente separada entre a considerada morada dos ricos da Região Metropolitana de Santiago e a povoação humilde que sempre habitou as bandas do ribeira do Rio Mapocho, uma herança da ditadura. Depois pela disputa entre o clube social e a Sociedade Anônima que tomou conta do Barnechea envolvendo o estádio da equipe, o que obrigou o time a ser local longe de sua casa, em San Carlos de Apoquindo (estádio da Universidad Católica) e o Municipal de La Pintana.

Sede social do clube de futebol Barnechea, do Chile.
A humilde sede social do clube (Foto: Instagram)

A elite

Apesar dos problemas, os Huaicocheros chegaram à elite chilena. O processo começou com o técnico Mário Salas, comandante do título da terceira divisão de 2011, deixando para trás 29 temporadas de amadorismo. Depois disso, foram apenas três campeonatos no segundo nível para chegar ao topo e poder disputar o glorioso Huemul de Plata.

O Barnechea teve grande estreia no profissionalismo. No campeonato de 2012 da 2ª divisão terminou entre os primeiros, disputando a liguilha pelo acesso à 1ª, mas fracassou no objetivo. Logo em seguida, o clube perdeu Mario Salas para a seleção chilena sub-20 e trouxe Hugo Vilches para ocupar o seu lugar no banco.

Vilches deu continuidade ao trabalho de Salas e conseguiu o almejado sonho dos torcedores huaicocheros. Na temporada 2013–14, a equipe metropolitana teve a segunda melhor pontuação e se classificou à liguilha do acesso, tendo que enfrentar o Santiago Morning nas semifinais, em um clássico santiaguino. Os homens de Lo Barnechea foram derrotados por 1 a 0 na ida, mas deram o troco no embate derradeiro, vencendo os Microbuseros por 2 a 0 e garantindo uma vaga na final.

A final pela glória seria contra o San Luis de Quillota, campeão do Apertura daquele campeonato. No primeiro duelo, os Huaicocheros visitaram os Canários e saíram de lá com um triunfo de 1 a 0. Na partida nos domínios azul e amarelos, em San Carlos de Apoquindo, os quillotanos igualaram o placar do jogo anterior, levando a decisão aos penais.

Os 4.466 espectadores que foram ao San Carlos de Apoquindo no dia 28 de maio de 2014 não vão esquecer os pênaltis desperdiçados por Matías Campos López e Daniel Vicencio. Os dois erros dos jogadores do San Luis garantiram o Barnechea na elite chilena. Os huaicocheros também não tirarão de suas memórias de grandes nomes na campanha do acesso, como os argentinos Gonzalo Martín ‘El Pachi’ de Porras (atacante) e Jorge Manduca (goleiro), ambos têm grandes histórias de superação. O primeiro sobreviveu a um acidente de carro que vitimou a mulher e a filha de um colega, enquanto o segundo venceu a batalha contra um câncer.

Os argentinos Gonzalo “Pachi” de Porras e Jorge Manduca, respectivamente (Foto: Agencia UNO e CDF)

Após a glória, a incerteza. A manutenção na divisão é o objetivo inicial dos homens de Vilches, mas Barnechea já fez história. O que parecia impossível em 1983, quando disputava a quarta divisão do Chile, virou realidade.

*Atualização de setembro de 2018

Para entender mais o acesso meteórico do Barnechea, ler a matéria EL NEGOCIO DE ESTAR EN LA B, da Revista DeCabeza. O empresário Armando Cordero tem grande relação com isso, separando o bairro do clube de futebol.

--

--

Bruno Núñez
Gândulla em português

Jornalista formado na Faculdade Cásper Líbero. Chileno-brasileiro.