Em defesa das palavras

Bruno Núñez
Gândulla em português
12 min readJan 26, 2019
Agustín Lucas, com a camisa do Miramar Misiones, sendo marcado por Carlos Sánchez, do Liverpool de Montevidéu.

“Nós uruguaios somos pouquinhos, nada mais que três milhões. Cabemos, todos, em um só bairro de qualquer das grandes cidades do mundo”. A República Oriental do Uruguai é um pequeno território, mas com grandes histórias. Sua população o deixa na 10ª posição entre os países da América do Sul, só que o povo que lá habita já viu a nação levantar duas Copas do Mundo e reconhecer a glória de diversos de seus filhos que ganharam o mundo através da arte. A literatura e o futebol são produtos de exportação deste lugar. Eduardo Galeano, autor da frase de abertura, Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti e toda a Geração de 45 abrilhantam o elenco de literatos surgidos nesta terra. Com a bola nos pés a lista é infinita: Schiaffino, Ghiggia, Varela, os Forláns, Francescoli e Suárez, para citar alguns.

A garra charrúa ficou imortalizada nos diversos jogadores que brilharam com a camisa da Celeste, principalmente os seus defensores, que são uma marca registrada de raça em todo continente e no mundo inteiro. Esses dois estandartes locais criaram um ofício único por estas bandas, o de zagueiro escritor. Agustín Lucas, 33 anos, sendo que por mais de dez teve que parar contra-ataques sem prejudicar a sua equipe, além de desarmar oponentes em gramados que se confundem com pastos de uma fazenda abandonada. Além da bola, os versos, os contos e as reportagens são os protagonistas de uma mesma vida. A visão privilegiada de dentro do campo traduzida nas palavras. Um luxo que Benedetti e Galeano não tiveram.

Como todo uruguaio, o futebol esteve presente desde o começo da vida de Agustín. Nascido no bairro de La Unión, em Montevidéu, o zagueiro escritor deu seus primeiros carrinhos aos quatro anos de idade no clube de sua vizinhança, o Estudiantes. “Entrei no mundo do futebol antes de nascer. Meu pai é muito fanático, assim como Montevidéu e o Uruguai inteiro. Está na nossa cultura”, explica.

Já a literatura deu sinais a Agustín nos tempos escolares. Os seus primeiros versos já eram relacionados à sua paixão pelo esporte: “Na escola escrevi um poema sobre futebol que ainda está nas recordações da minha família. Nos últimos anos do colégio passava direto apenas em literatura, o resto das matérias ficavam de lado. Algo havia com as palavras”. O interesse do jovem pelas letras apenas cresceu, e contou com o empurrão da família. “Com o tempo continuei escrevendo. Aos 20 anos conheci minha tia Virginia, poeta uruguaia, e então conheci o mundo da literatura montevideana. Comecei a publicar e recitar poesias”, relata.

Além do futebol e literatura, Agustín tem uma paixão pouco comum no Uruguai. Diferente da maioria dos habitantes do Uruguai que torcem pelos dois grandes, Nacional e Peñarol, o zagueiro escritor é adepto do Miramar Misiones, clube que manda seus jogos no Parque Luis Méndez Piana, praticamente do lado do imponente Estádio Centenário. Para sua sorte, seus primeiros passos no profissionalismo foram vestindo a camisa de seu time do coração, um privilégio para poucos. “Jogar no Miramar Misiones foi o momento mais lindo que vivi em minha carreira como jogador de futebol, conheci meus amigos, cresci e aprendi a amar até as paredes do clube”, conta.

O jogador, poeta e escritor Agustín Lucas com a camisa do Miramar Misiones
Diferentemente da maioria dos uruguaios, Agustín Lucas é torcedor do Miramar Misiones.

“No Miramar Misiones podem ir cem pessoas, duzentas se a situação é muito boa. Também podem ser 40. Seguramente muitos desses são familiares ou amigos dos jogadores, outros são filhos de torcedores antigos e a torcida nova que tem mais ou menos o mesmo ritmo de crescimento demográfico do país, que é lento”, afirma Agustín.

Agustin Lucas explica mais sobre a sua paixão: “O clube é formado pela fusão de duas equipes: Miramar e Misiones. O Club Sportivo Miramar foi fundado em 1915, enquanto o Misiones FC foi criado em 1906. As agremiações se juntaram em 1980 e o nome passou a ser Club Sportivo Miramar Misiones”.

“O Misiones foi fundado por anarquistas italianos que trabalhavam na Cidade Velha, em Montevidéu, na rua Misiones. Eles viviam na região do Parque Batlle, na Estação Pocitos, onde depois esteve o campo deles. Poucos quarteirões mais pra lá, anos depois, foi fundado o Club Sportivo Miramar, no Armazém de Silverio, no bairro Miramar, com as cores das zebras que viviam no zoológico municipal”, explica. Fruto de uma união, o clube reúne diversas histórias que se misturam ao que virou a agremiação nos dias de hoje. “Essa confabulação de fundações e existências parecidas fazem do Miramar Misiones o típico clube de bairro de Montevidéu. Tem gente variada que torce pelo time. Não existe uma ideologia política com que as pessoas se identifiquem para apoiá-lo. Sua identidade é a história, o bairro, certas formas que se sustentam, algumas que o fazem crescer e outras que não”, finaliza.

Do Miramar Misiones vieram as primeiras amizades do futebol de Agustín Lucas. O zagueiro escritor era companheiro de Álvaro “Palito” Pereira, lateral uruguaio com participações em duas Copas do Mundo, além de ter atuado em diversos clubes de renome, como Porto, Internazionale e São Paulo. “Ele é um grande amigo. Nos fomos criados juntos nas categorias de base do clube. Somos parte da geração 1985 do Miramar. Desse grupo, foram sete jogadores que tiveram uma longa carreira na primeira divisão. Além de nós dois, Sebastián Fernández (jogou a Copa do Mundo de 2010), Rodolfo Requelme, Alejo Saravia, Damián Frascarelli e Sergio Souza”, revela.

Agustín e o grande amigo Palito. Pereira começou no Miramar Misiones (terceiro agachado da esquerda para direita).

“Eu e Palito compartilhamos mil histórias de adolescente. Até o dia de hoje somos amigos. Ele me ensinou a perseverança e o amor pelo ofício de jogador de futebol, além da verdadeira humildade, não essa que todos falam que é uma história para boi dormir”, conta. Agustín também revela que usara sua veia literária para contar o trajeto de seu companheiro nos tempos de Miramar Misiones: “Estou escrevendo um livro sobre a sua vida”.

A história de Palito Pereira será apenas mais um capítulo da vida literária de Agustín. Em sua carreira como escritor, o zagueiro já publicou três livros de poesia: “No todos los dedos son prensiles”, “Club” e “Insectario”. Já as obras “Besala como sabés” e “El Lado B” são da face narrativa do autor. Por último, o jogador lançou “Tapones de Fierro”, que reúne crônicas e versos do atleta. Além desses trabalhos, o torcedor do Miramar Misiones escreve para diversos meios de comunicação, como o jornal uruguaio La Diaria, com participação frequente no braço esportivo da publicação, Garra, e a revista Túnel. Ainda assim, ele prefere não se considerar um jornalista.

“Eu não diria que sou jornalista. Digo que faço exercícios jornalísticos a partir da minha experiência e inquietude por escrever. Tinha escrito artigos e entrevistas para o jornal La Diaria, Revista Túnel e alguns meios de comunicação de Buenos Aires e Santiago. Essas experiências foram reunidas no meu último trabalho chamado Tapones de Fierro, um livro publicado pela Túnel. Garra é um projeto que surge em 2017 e sai do papel em 2018, apesar da seção de esportes ter 12 anos como o jornal, sendo dirigida por gente como Jorge Burgell e Martínez Chenlo, além de ter grandes fotógrafos (Fernando Morán e Sandro Pereyra) e editores (Juan Aldecoa e Mintxo Méndez), altos valores do jornalismo esportivo”, afirma.

Com a experiência de ter lançado obras e participado de publicações jornalísticas, o zagueiro escritor aproveitou o seu talento nas palavras para incentivar os colegas de profissão a trilhar o caminho dos livros. Com isso, nasceu o Pelota de Papel, um livro de contos escrito por jogadores de futebol. A ideia logo deu certo, com alto quórum de atletas. O sucesso foi tão grande que uma segunda versão foi lançada, Pelota de Papel 2. Ele conta como a rede de atletas foi construída para a compilação de histórias sair do papel.

Agustín Lucas, Sebastián Domínguez e Juanky Jurado. Mentores do livro Pelotas de Papel.
Agustín com Sebá Domínguez e Juanky Jurado, essenciais para a criação da rede do Pelota de Papel

“Foi uma ideia que surgiu com Jorge “Piqui” Cazulo, jogador uruguaio do Sporting Cristal do Peru. Pensamos em reunir amigos de profissão que se colocassem a escrever suas histórias. A rede foi tecida pela amizade de Piqui com Mariano Soso (na época assistente técnico do clube peruano) e Nico Domínguez (preparador físico do Cristal). A ideia chegou até Sebá Domínguez, irmão de Nico, que é ex-jogador com passagens pelo Newell’s Old Boys, Vélez Sarsfield e Corinthians. Ele entrou em contato comigo e começamos a armar a obra. A incorporação de Juanky Jurado (jornalista argentino) como produtor do livro foi fundamental para a gestão de tudo. Eles convidaram Pablo Aimar e Nahuel Guzmán, que foram os primeiros a se juntar ao grupo. Depois foi como uma bola de neve, apesar de nunca ter visto uma. Também nunca havia visto algo como Pelota de Papel. Foram 24 jogadores e jogadoras na primeira parte e passaram dos 40 na segunda. Hoje em dia é mais um movimento do que um livro, e os direitos estão na nossa agenda”, explica.

Agustín não busca apenas nas palavras a integração com o futebol. Como disse, o Pelota de Papel acabou por virar um movimento. No Uruguai, o zagueiro defendeu a camisa de vários clubes, além do seu Miramar Misiones. O defensor atuou por Montevideo Wanderers, Cerro Largo, Sud América, Liverpool e Albion. Essa extensa carreira pelos gramados deu voz de fala para defender a classe no seu país.

“Na maioria das equipes uruguaias é como se não fossem profissionais. A infraestrutura, os salários, nada. Existe um teto mínimo estabelecido pelo grêmio da categoria. Na primeira divisão está na faixa dos US$ 1000, enquanto que na segunda é de aproximadamente US$ 500. Um aluguel é por volta dos US$ 500. Se temos em conta que a maioria dos times paga com atraso ou deve de dois a três meses de salário por semestre, isso fica praticamente impossível. Aproveite e some que as condições laborais são miseráveis na grande parte dos casos. Uma coisa é o folclore que alimenta a nossa paixão, mas quando isso vira uma profissão, aparecem direitos que precisam se fazer respeitar”, defende Agustín.

Jogadores do Miramar Misiones e Villa Española, do Uruguai, protestando por condições melhores no futebol uruguaio.
Jogadores do Miramar Misiones e Villa Española pedem respeito ao salário mínimo.

“É difícil te dizer uma solução e muito pior escrever sem fazê-la. Participei ativamente de um movimento social que se chamou Más Unidos Que Nunca e que chutou a estante do estabelecido. Moveu do seu lugar o sistema e colocou os jogadores a questionar e questionar-se formas naturalizadas de exercer nosso trabalho. Para mim o caminho é esse, o empoderamento do profissional do futebol e o reconhecimento do jogo como um ofício, como um esporte e como parte da nossa cultura. As vezes a gente se esquece de tudo isso e vira uma situação de gladiadores que se matam para que outros se divirtam de graça, já que é mentira isso de que um jogador de futebol tem dinheiro. Alguns tem muito, mas a maioria não tem um tostão”, argumenta o zagueiro.

O último clube de Agustín foi o Albion Football Club em 2017. É a equipe de futebol mais antiga do Uruguai, fundada em 1891. O escritor ajudou o time a ser campeão da Segunda B Nacional, equivalente a terceira divisão do país. Lá, o defensor encontrou uma situação assumidamente amadora, um misto de alegria do jogar pelo prazer e tristeza pela falta de condições laborais.

Agustín Lucas com a camisa do Albion F.C.
Agustín Lucas com a camisa do Albion, sua última equipe. (Fonte: Site oficial Albion)

“A terceira divisão do Uruguai faz parte da Associação Uruguaia de Futebol, que inclusive o Albion ajudou a fundar, mas apesar desse fato é um campeonato amador. É uma beleza. É o futebol puro e duro, excesso de peso, alambrados enferrujados, apenas uma porta te separa de uns vinte torcedores furiosos. Muito bairro, muito montevideano, muito lindo de ter vivido. Mas volto ao mesmo, e na verdade tudo está interligado. Deveria ser profissional? É uma questão de quantidade de clubes o problema ou é a gestão? É realmente pobre o futebol uruguaio? Eu acredito que não, me consta que não, a verdade é que o dinheiro sempre vai para os mesmos”, escancara seu desgosto pela situação.

Como bom zagueiro, Agustín sempre defende, principalmente os seus semelhantes. Isso vem de berço, já que seu pai o influenciou muito, tanto no futebol quanto na política. Sua participação em movimentos como o Más Unidos Que Nunca não foi por acaso, já que é filho de um ativista que sofreu com a terrível ditadura militar uruguaia nos anos 70 e 80.

“Meu pai foi preso político durante a ditadura no Uruguai já que fazia parte do Movimento Tupamaro. Lê e fala sobre política. Sempre estive próximo desse assunto e me considero muito politizado. Isso de ser apolítico, eu aprendi com o meu velho que não existe, já que também é uma posição política. Existe micropolítica e macropolítica. Sou de esquerda todos os dias da minha vida desde o momento em que me levanto até a hora de deitar”, relata.

Lições de sociedade e política pelas Américas

O futebol também ajudou a Agustín Lucas construir sua própria visão do mundo. O zagueiro teve experiências fora do Uruguai na Argentina, Guatemala e Venezuela. Quando jogava o Campeonato Guatemalteco pelo Deportivo Jalapa, o zagueiro percebeu como a sociedade naquele país da América Central, um dos berços da civilização maia, era contraditória em certos aspectos.

“Na Guatemala o presidente era Álvaro Colom, supostamente de esquerda apesar de ser meio submisso ao regime dos EUA. A maioria da população é indígena originária da América Latina, só que lá a desigualdade social e a discriminação governam. Em um estádio você pode escutar o insulto ‘índio vende cebola’ e quem está gritando tem as feições que representam as nossas origens, é contraditório. O ser humano é contraditório, mais ainda em sociedades alienadas por anos de confusões sociais e políticas. Por sorte ainda existem pessoas que pela arte e pela comunicação fazem da Guatemala um lugar de resistência”, analisa o jogador.

Na Argentina, Agustín defendeu o Comunicaciones, tradicional elenco do acesso argentino. Ele se interessou pelo presente político do clube que estava atravessando uma luta entre os sócios contra uma tentativa de desapropriação por parte do Sindicato de Caminhoneiros comandado por Hugo Moyano, atual presidente do Independiente de Avellaneda. Já na Venezuela, atuou pelo Deportivo Anzoátegui, uma equipe chavista, na qual todos cantavam o hino do país antes das partidas do campeonato. Essas experiências fizeram com que o jogador soubesse com minúcias da real situação do nosso continente.

Na Venezuela, dividiu elenco com Alejandro Guerra (ambos últimos das fileiras a partir da direita). Na Argentina fez parte do Comunicaciones.

“Na Venezuela e na Argentina conheci os governos de Hugo Chávez e Cristina Kirchner. Sofri os presentes de suas crises, mas me identifiquei com os governos de esquerda para sempre, aprendi sobre o socialismo e o peronismo. Hoje em dia é necessário, e urgente, começar a militar para que não aconteça o que vivem Argentina e Brasil, estados que vivem o fascismo descarado de Macri e Bolsonaro”, alerta.

Militar por uma causa. Uma delas é ajudar o próximo, principalmente os mais necessitados e esquecidos da sociedade. Agustín Lucas faz isso. O escritor organiza uma espécie de workshop com detentos de penitenciárias de Montevidéu. Para o defensor, esse tipo de atividade faz a gente pensar mais, principalmente sobre a situação dessas pessoas que sempre viveram na miséria e no meio da violência.

“Faço esse trabalho nas penitenciárias faz bastante tempo. No começo usava o rap vinculado à literatura. Nos últimos anos comecei a introduzir o futebol desde o lado lúdico e encontrar no esporte uma desculpa para achar uma outra forma de vínculo para resolver os conflitos em outra sintonia. A gente se encontra com a miséria na flor da pele, moleques que estiveram na miséria e em um âmbito violento desde que nasceram, é doloroso, é pesado, te faz questionar-se diariamente além de se importar com eles e defender seus direitos como privados de liberdade assim como perguntar os sistemas estabelecidos da suposta reabilitação”, defende.

O escritor e poeta Agustín Lucas recitando poemas em um evento na cidade de Montevidéu, Uruguai.
Agustín recitando versos (Foto: Paola Scagliotti)

Uma carreira tão dedicada em todos os seus âmbitos. Jogador profissional, escritor, militante, ocupações difíceis de se encontrar em uma única pessoa. Agustín é o ponto de encontro desses caminhos. De disputar um jogo com a camisa do clube dos seus amores a reunir seus semelhantes para escrever contos em um livro, além de defendê-los por um futuro melhor. Ainda deu tempo de ser convocado pelo sub-23 do Uruguai ao que o zagueiro fala que foi “uma espécie de mimo ao coração, uma recordação para a vida inteira”.

“Cheiro de linimento. Versos em cada chuteira. Formas de amor. Olhos brilhando. Travas golpeando a lama, palmadas que pedem calma. Se fala de pressão, se fala de raiva. Se fala de rir, se fala de fama. Se fala de dor. Se fala do drama. Se fala com paixão. Cara com cara. Se fala do erro e do acerto. Arquibancadas cheias, estádios desertos. Se fala até tudo se calar um momento, apita o juiz, começa o concerto. Rock de alento, chuva de cruzamentos, noventa milagres brigando com o vento. Verão no peito, inverno no cérebro, não existem palavras quando te beijo, camisa”, o sentimento, futebol e palavras traduzidas no poema “Si Tus Colores” por Agustín Lucas. Versos com vivência de cancha. Um luxo que Onetti, Benedetti e Galeano não tiveram.

Confira os textos e poesias de Agustín Lucas:
https://garra.ladiaria.com.uy/periodista/454/
http://taponesdefierro.blogspot.com

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Bruno Núñez
Gândulla em português

Jornalista formado na Faculdade Cásper Líbero. Chileno-brasileiro.