Chá comigo

Gabriel Senra
Gabriel Senra
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8 min readMay 13, 2020

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Maio de 2020. Pandemia.

Eu só conhecia essa palavra dos filmes. Nunca achei que fosse passar por algo parecido. O ano mal começou e eu, cheio de sonhos e planos, fui pego de surpresa. Uma rasteira. Você também, né? E agora estou, em casa, confinado, tentando entender como serão as coisas daqui pra frente.

Confesso que ando muito pensativo. Um pouco nostálgico, talvez. E ao refletir, acabo navegando por memórias que me inspiram.

Hoje quero contar sobre a minha história com a Laura.

A turma de BH que mora aqui em São Paulo (somos muitos) não tem, em sua maioria, família na cidade e, por isso, acabamos nos aproximando muito. Qualquer coisa é motivo para encontrar. (ou era, antes dessa locura toda)

Um desses encontros foi para inaugurar a casa de uma amiga. Ela acabava de se mudar. E como boa mineira, a festa tinha muita bebida e dupla sertaneja. Cigarro de palha e bom papo. Encontrei com vários amigos e, no meio deles, estava lá uma menina sorridente que eu não conhecia.

Estudamos no mesmo colégio, mas nunca tínhamos trocado uma palavra sequer. Ao falar com ela, fiquei sabendo que ela havia recém chegado de uma temporada na Europa e estava morando em São Paulo.

Eu sou meio esquisito: em qualquer lugar ou ambiente, sempre dou um jeito de falar sobre trabalho. Esse é um assunto para outro texto, mas não acho que trabalho deveria ser um assunto chato. Se é, você está fazendo algo errado.

Enfim: fui logo perguntando pra ela quais eram os planos profissionais. Ela, com convicção rara de se ver, disse que, apesar de não ter prazo certo, sabia exatamente o que iria fazer. E começou:

“Eu vou voltar para BH e abrir um lugar aconchegante, diferente de tudo que existe na cidade. Quero luzes, cadeiras coloridas e ar de “casa”. Vou abrir uma casa de chás, que possa provocar uma experiência diferente nas pessoas. Quero que elas se sintam acolhidas e se conectem. Pensei em abrir isso numa casinha, num bairro residencial e fazer com que lá seja um ponto de encontro. Quero tijolos expostos, boa música, referências antigas e um ar de modernidade. Um lugar gostoso de se estar”.

Obviamente essas não foram as exatas palavras dela. Mas nos minutos que se seguiram, ela detalhou cada centímetro do espaço que ela iria abrir, sem sequer saber quando e onde. E eu, ouvindo, pude me imaginar lá, nesse lugar incrível que eu fiquei torcendo para que um dia existisse.

A festa seguiu, a dupla sertaneja tocou, nós cantamos e a multa do condomínio chegou no dia seguinte (foi mal, Marina!).

Corta para dezembro de 2014, quando eu, com orgulho, depois de acompanhar alguns posts do Facebook, tive a chance de pisar pela primeira vez no Chá Comigo.

Com um sorriso ainda maior do que aquele de São Paulo, a Laura me recebeu com um abraço apertado e me apresentou sua (ou minha) nova casa. Eu fiquei muito feliz em ver que era tudo como ela havia dito. E a parabenizei por dar vida ao seu sonho.

No Chá, ninguém atrapalha seu papo para te perguntar se precisa de algo. Se quiser algo, levante e peça no balcão. Água? À vontade. Wi-fi? Pega bem. Quer ouvir outra música? Levante e troque o disco. Sim, disco. Sabe aquele bolo que sua avó fazia? Tem. E quando o chá fica pronto, seja quente ou gelado, você entende que ali, mais do que comidas e bebidas gostosas, tem uma energia diferente.

E, assim, o Chá Comigo se tornou, durante um tempo, meu lugar oficial em Belo Horizonte. Era a extensão da minha casa e do meu escritório. Foi lá que eu fiz reuniões com meu contador, onde fechei negócios, onde combinei viagens com amigos, onde levei paquera (no singular mesmo) e onde ouvi histórias incríveis.

Uma tarde no Chá Comigo era algo mágico. Pra mim e pra muita gente. Tanto que, depois de um tempo, a casa se tornou conhecida, reconhecida e passou a ser difícil conseguir mesa. Sucesso, enfim, depois de muito suor.

e depois do sucesso, vem o que?

Não me lembro bem quando, mas um dia aqui em São Paulo eu estava voltando de uma reunião e meu celular vibrou com uma nova notificação: “Laura te marcou numa publicação do Facebook”. Cliquei pra ver na hora e, para minha surpresa, era um post dela anunciando que havia vendido o Chá e que iria se dedicar a novos projetos.

Inspirei surpreso, expirei aliviado. Pensei comigo: essa menina é “foda” mesmo.

Na época, eu mais do que desejar sorte à nova proprietária e dar os parabéns à Laurinha, resolvi rascunhar minha ótica sobre essa história. Era a minha forma de dizer obrigado. Obrigado não só pelos ótimos chás, cafés, bolos e quilos a mais, mas pelo aprendizado.

Só que eu nunca disse. Será que ainda está em tempo?

Rever as minhas notas, que sim, decidi compartilhar abaixo, e analisar o que a Laurinha fez no Chá Comigo em 3 anos me conectaram aos meus princípios e a elementos que são combustível para minha intensa jornada à frente de uma empresa.

1) É tudo sobre cultura

Quando decidi empreender e estudar gestão, me daparei com duas frases famosas: “O cemitério está cheio de empresas com boa cultura” e “Cultura come estratégia no café da manhã”. Minha percepção é de que, no fundo, tudo depende da forma como você interage com as pessoas. Na Linte, startup que fundei em 2015, me esforço diariamente para criar o ambiente da empresa que sonhei em trabalhar (e não encontrei). No Chá, a Laura tratava todos os clientes como se estivessem na sua casa. E quando ela não estava lá, sua equipe fazia o mesmo. Sua energia e vibração eram independentes da sua presença.

Alcançar isso é fácil? De forma alguma. O caminho de encontrar as melhores pessoas é duro. A gente erra. Mas é importante lembrar que esse é o principal fator do sucesso. Ser resiliente e coerente com a cultura do ambiente que você quer viver é crucial. E mais do que isso: cultura não é algo que se escreve num papel e se combina da noite pro dia. É uma construção diária, com exemplo, com troca e muita disciplina. Não tem atalho ou manual.

2) Suor não basta. Tem que ter amor.

Todo mundo sabe que não dá chegar longe sem muito esforço. A dedicação é o que une os grandes. Mas suor, por si, não basta. Além de inteligência, capacidade de execução e muitas noites sem dormir, a energia vem mesmo do amor. É como se fossemos correr uma maratona. É preciso se preparar, planejar cada km, ter os recursos adequados, mas você só vence o cansaço dos km finais e não desiste se tiver um propósito forte e for apaixonado por ele.

O amor estava por todo lado no Chá. Ele se manifestava em cada “seja bem vindo” que ouvíamos ao entrar lá. Mas, de novo: não é fácil. As batalhas enfrentadas são inimagináveis. É provável que a Laurinha tenha pensado em desistir algumas vezes. Ela nunca reclamou, mas deve ter tido muitos problemas com fornecedores e até funcionários. Talvez tenha achado que algo seria impossível. Mas não foi. Nunca é. Ao longo dos últimos anos, vivi os maiores desafios da minha vida. Eles só me fizeram mais forte porque acredito e amo muito o que estou construindo. Não tem nada que nos faça desistir.

3) É preciso muita coragem. Pra fazer e desfazer.

O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem
(Guimarães Rosa)

Outro dia, vi um vídeo muito legal com a conclusão de que as melhores coisas da vida estão imediatamente depois do medo. É verdade. Olhar pra trás é muito fácil. Ver o que passou nos permite conectar os pontos que pareciam não ter ligação alguma, e ver que as coisas aconteceram de forma muito diferente do que havíamos planejado. E muitas vezes, muito melhor.

Olhar pra frente é mais difícil. Os riscos e desafios são imprevisíveis. É como saltar de um paraquedas. Quando se planeja tudo, o medo é grande. Quando se toca o solo, contudo, o que fica é o prazer da descida, a beleza da vista. A gente se esquece do frio na barriga e aquela vontade enorme de interromper o plano.

Pra fazer é preciso muita coragem.

Mas sabe o que precisa de muita coragem também? Desfazer, interromper ou se desprender.

Encerrar um ciclo e seguir em frente, sem apego, é uma decisão dura. É como começar de novo. Você nunca sabe o que vai, de fato, acontecer. E dá medo. A gente olha pra frente e, muitas vezes, superestima os riscos. Teme o que as pessoas vão pensar. Teme estar sendo precipitado. Teme perder os bons momentos que, invariavelmente, você não vai mais viver ali.

Isso vale pra tudo na vida: para negócios que abrimos, lugares que frequentamos, empresas que trabalhamos, relacionamentos que terminamos.

Mas desapegar e seguir em frente é diferente de desistir. Desistir é um ato de fraqueza. Não se entregar é covardia.

A Laurinha deu um exemplo muito bom a todo mundo que empreende. Se dedicou, construiu uma história e resolveu seguir em frente para outros projetos. Ela não se apegou.

No mundo digital, que funciona numa dinâmica um pouco diferente do mundo offline, é muito comum ver empreendedores apegados às suas empresas. Deveriam aprender mais com a Laurinha…

Mas além de agradecer tem, também, um outro motivo para eu contar essa história…

De uma hora pra outra, passamos a ser bombardeados por um novo conceito, que, adianto, não gosto muito: "o novo normal".

Sem negar o momento trágico que vivemos (ao escrever esse texto, já contamos mais de 12 mil mortes no país), mas ao mesmo tempo, fazendo um exercício de olhar pra frente e projetar um novo contexto social, precisamos logo encarar o fato de que que a "bolha" do empreendedorismo no Brasil não é nada normal.

Não podemos achar normal que a maioria dos casos de sucesso das empresas no Brasil sejam protagonizados por homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais, que frequentaram boas escolas e leram livros na infância.

Mudar esse cenário de privilégios é um desafio de todos. E isso inclui a mim e a você.

No meu círculo mais próximo, conheço várias mulheres empreendedoras que são incríveis. Mas é preciso muito, muito mais. Eu queria ver mais Camilas, Robertas, Emilias, Guilherminas. Mais Lauras.

Eu fico pensando o que eu posso fazer para mudar isso. Lá na empresa estamos trabalhando muito para criar um ambiente cada vez mais diverso, inclusivo e com condições iguais de crescimento profissional, independente de gênero, raça, orientação sexual. Eu estou convicto de que a diversidade é um fator decisivo para o nosso sucesso.

Eu fico torcendo para que a história da Laura e do chá comigo nao sejam uma uma inspiração só pra mim. Que ela sirva de exemplo para, quem sabe, alguma outra mulher ter a coragem de enfrentar a montanha russa que é abrir um negócio nesse país.

Mas inpiração não basta. Fico torcendo também para que no "novo normal", as mulheres encontrem também um ambiente mais inclusivo, menos machista e patriarcal. Esse não é meu lugar de fala, eu sei, mas eu fico aqui, a todo tempo, lembrando do quanto isso é importante. E minha torcida continua.

Obrigado, Laurinha. Eu já te disse isso muitas vezes, mas você é uma inspiração. Agora que somos novamente vizinhos de cidade, quando essa quarentena passar, vem tomar um chá comigo.

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