O Diálogo em Ebulicão

Joel Oliveira
Por Linhas Tortas
Published in
5 min readJan 31, 2018

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Jane Goodall disse que “a mudança acontece quando ouvimos e depois começamos um diálogo com pessoas que estão a fazer algo que acreditamos estar errado” (trad.).

Não sei se concordo que a mudança aconteça necessariamente assim — muitas vezes, ouvir e dialogar não muda coisa alguma, pelo menos a nível palpável. Claro que se considerarmos como mudança uma simples alteração na perspetiva ou algum tipo de enriquecimento decorrente de uma troca de ideias, podemos concordar com Goodall. Mas sem dúvida que ouvir e dialogar pode ser um grande catalisador de mudança — dependendo, claro, da mensagem ouvida, e da recetividade à mesma.

Uma análise honesta da nossa experiência de vida mostra-nos que muitas mudanças começam com ouvir e dialogar. A nossa experiência com a mensagem do Evangelho confirma isso — a mensagem que tem, durante a história, transformado biliões de vidas de pessoas que estavam a fazer coisas que acreditamos que estavam erradas. Paulo, o fariseu transformado em apóstolo, é um dos casos flagrantes de alguém que promoveu essa transformação, dedicando a sua vida a transmitir a mensagem do Evangelho.

Quando estudamos o livro de Atos, vemos claramente que Paulo privilegiava o diálogo, em especial o debate. São inúmeros os casos que lemos nas descrições da interação de Paulo, tanto com os judeus como com os povos pagãos que abordava nas suas viagens, de palavras como “disputava” (At 17:17), “persuadia”, “convencia”, “discutia” (Atos 18:4) — palavras que não podem ser dissociadas de dinâmicas dialógicas.

Claro que não podemos dizer que Paulo não era também um palestrante expositivo. Veja-se o episódio com o jovem Êutico em Tróade em Atos 20. Era um palestrante e dos bons, apesar de dar sono a jovens que depois caíam e morriam, para depois serem ressuscitados. Mas Paulo era também uma pessoa de diálogo, de argumentação, de persuasão.

Esse modelo de diálogo, sendo profundamente bíblico, é estranhamente pouco usado pelos cristãos em geral, pelo menos da forma pública em que Paulo os levava a cabo.

Fotografia: Antenna

O diálogo é bíblico, não apenas porque vemos o seu uso no ministério de Paulo, mas porque as próprias Escrituras estão repletas de diálogos entre Deus e o homem: os debates entre Deus e Job, entre Jesus e outras pessoas (afinal, os evangelhos são relatos de diálogos entre Jesus e pessoas), entre os próprios humanos (quando a Bíblia não nos mostra Deus a falar com pessoas, mostra-nos pessoas a falar com outras pessoas).

Na verdade, podemos dizer com confiança que Deus é um Deus de diálogo: na Bíblia, o quadro que nos é apresentado é o de um Deus a revelar-se ao homem através da Palavra, falada por ele a pessoas e através de pessoas a outras pessoas. E depois a Palavra a fazer-se-se carne — Jesus — sendo que a fé, a confiança em Deus, vem pelo ouvir e receber essa Palavra (Jo 1:12; Rm 10:17).

Percebe-se porque é que Deus gosta do diálogo. O diálogo é profundamente humano, e sendo os seres humanos criados à imagem de Deus, com esta profunda pessoalidade, e sendo Deus uma tríade de três pessoas, não é senão razoável pensar que o diálogo faz parte da própria natureza de Deus. O diálogo é relacional, põe pessoas num contacto com dois sentidos, em que ambas, se quisermos — dando o sentido mais abrangente à mudança de que fala Jane Goodall — são transformadas de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau.

Além disso, se seguirmos o conselho de John Stott para “ouvir a cultura” além de “ouvirmos o Espírito de Deus”, percebemos que o diálogo é um formato profundamente apelativo na pós-modernidade: por causa da desconstrução da autoridade como detentora de uma verdade, e da consequente postura defensiva relativamente ao autoritarismo, uma pessoa pós-moderna não está tão interessada em ouvir palestras como em ouvir trocas de argumentos e diálogos, ou apresentações de narrativas.

E se isso pode tomar a forma de uma falsa harmonia em que se cai no relativismo em que cada um fica com a sua verdade, também pode ser uma forma de trazer as pessoas para uma reflexão profunda sobre os temas tratados.

Vimos isso de uma forma muito concreta no passado ano letivo: com igual divulgação, encheram-se auditórios para assistir a um diálogo, enquanto que os dias de palestra dada por um convidado cristão viram a adesão descer para menos de metade. Claro que há muitos fatores que influenciam isto, e não nos focamos exclusivamente naquilo que agrada à cultura. Mas se queremos ter pessoas a ouvir enquanto apresentamos a nossa cosmovisão cristã, e não estar a falar para as paredes, é bom darmos importância aos tempos em que vivemos.

Conversa entre um cristão e um ateu no Deus Só Visto 2016 (Fotografia: Alexandra Carmo).

Por último, o diálogo é também profundamente português. De que é que um português gosta mais do que ver a malta a discutir e a trocar galhardetes? É por causa desse traço cultural que são tão populares os espaços de “diálogo” (aqui tem de ser entre aspas) como os programas sobre futebol com comentadores meio ébrios a gritar indignados, ou as verdadeiras instituições, como é o caso dos programas da manhã e da tarde na televisão pública.

Também há razões históricas para esta valorização cultural do diálogo: Portugal tem uma história de ditadura ligada ao poder e autoridade de uma Igreja Católica Apostólica Romana que silenciava os seus opressores. Alguém que advogue uma verdade absoluta em nome de Deus faz disparar muitos gatilhos culturais. Já o diálogo relaxa, faz baixar defesas, transmite a ideia de tolerância, envolve e aproxima as pessoas.

Podíamos listar igual número de benefícios do formato expositivo, em cujo caráter igualmente bíblico acreditamos profundamente, e que deve ser usado mesmo sendo contracultural. Mas nos tempos em que vivemos, e no nosso contexto cultural em particular, em que cada vez mais os cristãos são vistos como pessoas desligadas da realidade que acreditam num ser análogo ao pai natal — se queremos agregar o maior número de pessoas de pessoas à volta de uma reflexão profunda sobre a fé cristã — devemos, mais do que nunca, criar espaços em que possamos, à boa maneira pós-moderna, desconstruir esses preconceitos.

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