Envolvimento com a Universidade — parte 1

Joel Oliveira
Por Linhas Tortas
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7 min readFeb 28, 2020
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I. CRIAÇÃO E REDENÇÃO

Os fundamentos teológicos para o nosso envolvimento com a universidade.

Há duas ações de Deus que guiam o nosso envolvimento com a vida em geral e que representam duas faces da história: a criação e a redenção. Todos nós nos debatemos com uma certa contradição entre dois factos. Por um lado, o facto de que Deus criou o mundo, que significa que muito do que experienciamos neste mundo é bom (o que comemos, as pessoas que amamos, as coisas boas de que podemos desfrutar). Isto porque Deus criou o mundo, e ele disse que tudo o que ele criou era muito bom (Génesis 1:31). Mas por outro lado, sabemos que o mundo bom que Deus criou está estragado, manchado e caído por causa do pecado; e por isso Deus não apenas criou o mundo, mas ele também veio redimir o mundo em Jesus Cristo. Na cruz, Jesus venceu todos os poderes que mantinham a criação em trevas (incluindo o diabo, o pecado e a morte) — e essa libertação inclui a humanidade, parte integrante da criação.

Esta tensão entre a criação e a redenção traduz-se em dificuldades práticas, por exemplo: quando conhecemos um colega na universidade, estamos diante de uma pessoa que foi criada à imagem de Deus, ou um pecador maligno que nos quer tentar a seguir caminhos que não os de Deus? Essa contradição está também patente em perguntas como “é melhor orar ou dormir?”. É bom orar, mas dormir é fundamental para nós, como criaturas criadas também para descansar. Temos então um problema, que é não conseguirmos muitas vezes viver nesta tensão e cairmos para um dos dois extremos: enfatizar demasiado a dimensão da criação e ignorar a dimensão da redenção, ou vice versa.

O que significa isto relativamente ao nosso envolvimento na universidade? É importante saber que a própria Bíblia reflete esta contradição: há livros da Bíblia muito mais focados na redenção como a carta de Paulo aos Romanos ou os profetas do Velho Testamento — que denunciam o que está errado no mundo do presente, e apontam para uma redenção que Deus traz em Cristo — e há outros mais focados na criação na dimensão humana, nas dificuldades, alegrias e relacionamentos do dia a dia, como Provérbios e Eclesiastes.

Então a própria Bíblia tem esta tensão na pessoa de um Deus que criou e ama todos os seres humanos enquanto sua criação, e que é também um Deus redentor, que espera uma resposta da sua criação caída para receber a salvação que ele oferece em Cristo.

Então no nosso trabalho na universidade, podemos cair para um dos dois extremos: podemos enfatizar a criação, e aí veremos tudo com um olhar positivo, vendo as pessoas como estando todas num caminho que de uma maneira ou de outra agrada a Deus (somos todos criados iguais, então estamos todos basicamente no mesmo patamar). Ou então podemos enfatizar a redenção, o que nos dá uma perspectiva mais pessimista das pessoas e dos elementos humanos, que estão caídos, e precisam de ser confrontados com isso, para o seu arrependimento e redenção (uma perspetiva que leva a uma postura de confronto e guerra cultural, em que assumimos que estamos num patamar superior).

Então, como atingir o equilíbrio? Por um lado, no lado que enfatiza demais a criação perdemos o nosso carácter distintivo como cristãos e não vemos qualquer diferença entre ter Jesus e não ter; se estamos no lado que enfatiza demais a redenção, tornamo-nos arrogantes, como se fôssemos uma espécie de super-heróis espirituais. De que lado estamos nós?

II. DANIEL , O ESTUDANTE

O livro de Daniel está dividido em duas partes: Daniel 1–6, que conta a história de Daniel e seus amigos na Babilónia, e Daniel 7–12, que fala de visões e sonhos de Daniel, ligados a profecias. A primeira parte em particular mostra-nos Daniel numa escola em que foi forçado a inscrever-se.

1. A escola babilónica de teologia e Ciência

Daniel teve de aprender e estudar toda a cultura dos caldeus, tanto a parte científica, como a parte supersticiosa e pagã, que implicava técnicas de adivinhação (exame de fígado de animais e interpretação de sonhos, por exemplo) que os babilónios acreditavam serem necessárias para perceber e comunicar a vontade dos deuses, que orientavam decisões políticas e militares muito importantes. Daniel teve de estudar todas estas dimensões, foi excelente nos seus estudos, e viu até o seu nome mudado para Beltechasar, um nome alusivo ao deus Baal, que Daniel, como judeu, abominava. Então Daniel serviu um império maligno e contrário a muitas crenças do Deus de Daniel e fê-lo com todo o empenho e dedicação.

No entanto, Daniel não se esqueceu da sua fé; ele tinha uma linha na sua vida que separava a sua tolerância para com a cultura dos caldeus da sua convicção inabalável no Deus de Israel. Essa linha ficou clara quando ele se recusou a comer os manjares do rei, e também quando ele foi atirado na cova dos leões por não ter deixado de orar ao seu Deus quando o rei o tinha proibido.

Então Daniel respondeu aos desafios com um envolvimento profundo na cultura em que estava inserido, e não se tornou um eremita. Mas durante todo esse envolvimento, manteve se fiel ao seu Deus, e não negociou as suas convicções. Nós podemos fazer o mesmo no nosso contexto.

Podemos sentir nos em casa na universidade!

És um estudante? Estás no sítio certo! A Bíblia conta-nos que, certa vez, um doutor da lei perguntou a Jesus o que ele devia fazer, e ele respondeu com a célebre passagem que encontramos no Evangelho de Marcos (12:29–31):

Jesus esclareceu-o: «O mais importante é este: Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. E o segundo em importância é este: Ama o teu próximo como a ti mesmo. Não há nenhum mandamento mais importante do que estes.

Esta passagem diz-nos que temos de amar Deus com todas as dimensões do nosso ser, e também todas as pessoas como a nós mesmos. Mas quais são as implicações desta passagem para a nossa missão no contexto universitário? Se somos chamados para amar, precisamos de conhecer e de nos envolver com aqueles que amamos. Precisamos de pensar no que é de facto a universidade como um todo para assim podermos amar aqueles que compõem a universidade. Por exemplo, os funcionários da limpeza, são pessoas na universidade. Será que eles são importantes e dignos do amor de Deus? E a universidade não são só pessoas, são também programas feitos por e para pessoas (como os programas de investigação) e ideias que influenciam pessoas, como filosofias atuais, como o pós-modernismo ou a ideologia de género.

Como Daniel e os seus amigos, nós também estamos na universidade em missão transcultural, num contexto particular com uma cultura própria, que nós temos de compreender, e com a qual temos de saber comunicar. Então devemos envolver-nos com TODA a universidade. Porque toda a realidade foi criada por Deus e será redimida por ele (Colossenses 1:18) — então ele interessa-se por toda a a realidade, todas as disciplinas académicas. “Toda a verdade é a verdade de Deus”, como disse João Calvino, e nós fomos feitos para explorar o mundo que Deus criou (como Adão, que no Jardim do Éden teve de lavrar e guardar o jardim e dar nomes aos animais). (Génesis 2:20)

Podemos então encarar o estudo como um dom de Deus, uma oportunidade para explorar o mundo que Deus criou e usar o nosso conhecimento para participar na redenção que Deus está a levar a cabo em toda a realidade. Como podemos unir o nosso amor pela criação com a nossa missão de redenção em Cristo? Precisamos das Escrituras para nos dar a base da nossa ação e envolvimento na universidade — porque as Escrituras são a nossa autoridade final e a nossa regra em todos os assuntos sobre fé e conduta.

Os cristãos neste mundo são cidadãos de uma nação estranha (somos de facto peregrinos, como diz a Bíblia em I Pedro 2:11). Mas a mesma Bíblia diz-nos pela boca do profeta Jeremias que devemos desejar a paz e a prosperidade da terra em que peregrinamos (Jeremias 29:7). Estamos então nós a procurar ativamente a prosperidade da universidade, a orar pelo bem da universidade enquanto nela peregrinamos? Sabemos que a universidade não é apenas um sítio bom, é também um contexto caído — por isso a universidade precisa, além da nossa participação e envolvimento, também, e desesperadamente, das nossas orações, em todas as suas pessoas e dimensões — para que a redenção que Deus já trouxe em Cristo seja uma realidade no contexto universitário.

Então há duas perguntas cruciais que temos de fazer durante todo o nosso percursos enquanto agentes ativos na universidade:

1) o que pensa Deus daquilo que estamos a ver/ouvir na universidade?: devemos não apenas partir da Bíblia para a universidade, mas também partir da universidade para a Bíblia — ter, como dizia John Stott, a Biblia numa mão e o jornal na outra — ouvir Deus e ouvir o mundo.

2) Como é que os meus estudos me ajudam a amar e servir Deus melhor? Onde é que os nossos estudos se entrecruzam com a nossa fé nas dimensões da criação, queda, redenção e restauração?

Deus já está em ação nos campus universitários. A questão é se nós estamos a ouvir as perguntas das pessoas e a falar àquilo que as pessoas sentem a partir de uma perspectiva bíblica. Será que nós amamos as pessoas no nosso campus, TODAS as pessoas no nosso campus, como Jesus ordenou em Marcos 12? Se amamos, temos obrigatoriamente de nos envolvermos com elas, demonstrando o nosso amor de formas práticas.

Na parte 2 deste artigo iremos explorar como esse envolvimento se processa de uma forma cristocêntrica e as várias dimensões em que esse envolvimento deve acontecer.

Este artigo em duas partes é resultado da edição de notas de um seminário em duas partes que teve como título “Engaging the university”. Foi ministrado na Conferência Revive, em dezembro de 2019 por Timothée Joset e Charlie Hadjev, e as notas traduzidas e publicadas com a autorização destes por Joel Oliveira

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