O que Rango nos ensina sobre identidade

GBU Portugal
Por Linhas Tortas
Published in
8 min readAug 22, 2018

Emily Lange, ex-assessora do GBU e hoje regressada à vida académica, apresenta-nos uma das suas reflexões sobre identidade, o tema que tem andado a explorar. O seu ensaio, “E se Jesus fosse estudante universitário? Uma reflexão sobre identidade”, será publicado este ano.

Nos últimos anos, tenho refletido bastante sobre identidade. Não foi de propósito; não acordei um dia a pensar, vamos lá debruçar-nos sobre este tema abstrato. Desemboquei nele, como quando se entra numa rua sem saída, sem me aperceber. De repente, ali está a questão, e não há como escapar: mesmo se voltar atrás não retrocedo em ignorância. Acabei por ir parar ao tema da identidade por estar a considerar outras coisas e outros temas. Mas no fundo, descobri, ou percebi melhor, que mais do que pensar sobre identidade, eu penso a partir de uma identidade. Sempre. Não há como escapar a isso. E se assim for, parece-me das questões mais importantes da vida. A nossa identidade. Qual será? Será predefinida? Consigo ser eu a escolhê-la? Todos têm pozinhos da mesma identidade? Identidade é personalidade?

Nem toda a gente faz estas perguntas, mas todos estamos a fazer perguntas ou viver a nossa vida a partir de uma identidade. Há quem diga que, se não a definirmos nós próprios, outros vão defini-la por nós. Parece-me, portanto, uma questão incontornável.

Como auxílio na nossa reflexão, vou falar-vos de um desenho-animado chamado Rango. A história é sobre um Camaleão com desejos de grandeza. Viveu a sua vida num aquário, é um bicho doméstico com tudo o que precisa. Tem brinquedos, um lago, está protegido, literalmente, numa redoma de vidro. No início, somos lançados de imediato para o meio de uma história que só depois percebemos ser fruto da sua imaginação fértil: supõe-se um diretor de cinema — está a produzir um filme em que ele é o herói e salva a donzela (um boneco inanimado) de um inimigo terrível (um peixe de plástico). “Corta, corta”, grita ele mesmo a ele próprio, “Ação é reação, minha gente, o que se passa?”. É a frustração de um diretor de cinema quando mais ninguém está a mexer-se: no meio desta animação toda, percebemos que apesar de ter tudo de que precisa, falta-lhe uma coisa: ele sente-se só. A donzela não mexe, cai-lhe um braço; até o terrível Mr. Timms (um peixe) fica a boiar no lago sem reação. A imaginação sustenta-o apenas até certo ponto. Não sabemos o que teria acontecido com esta sua vida, porque de repente, o carro onde o seu aquário estava a ser transportado tem um acidente. O aquário parte-se e ele é lançado para a rua e abandonado. A estrada em questão atravessa o deserto de Mojave. Rango sente-se completamente perdido. O calor abrasador começa a ter efeito sobre a sua pele — não está habituado à exposição aos elementos, sente enorme necessidade de água, hidratação, sombra! A sua ingenuidade sobre a vida real (e selvagem) é rapidamente colocada a descoberto — por pouco não é apanhado e comido por um falcão. Deprimido com a sua desgraça, depois de vaguear pelo deserto, encontra uma aldeia típica do faroeste e entra no bar, pedindo água.

Rango (2011)

É nesta altura que aparece uma cena que para esta nossa reflexão é crucial. Alguém no bar lhe pergunta “Quem és?”. E, por momentos, vemos passar na cabeça do Camaleão os seus pensamentos: pergunta a si próprio, “Quem sou eu? Realmente, eu podia ser qualquer pessoa…!” Afinal, aqui está a sua oportunidade, ninguém o conhece, pode fazer tábua rasa e forjar a identidade almejada. Inventando o próprio nome — Rango — a partir de um rótulo de uma garrafa que vê naquele próprio momento, encarna o herói das suas histórias, e apresenta-se como forte e corajoso, que já deu cabo de uns tantos tipos maus. De repente, vê-se rodeado de admiradores… Não tarda muito e a própria aldeia faroeste está em perigo. Aquele falcão voltou a atacar os habitantes. Num golpe de sorte (em que estava simplesmente a tentar fugir), Rango consegue milagrosamente resolver a situação e o falcão é eliminado. Aldeia em alvoroço, temos um salvador! Rango é mesmo quem dizia ser… e é promovido a Xerife. Parece um dos seus filmes a tornar-se realidade.

Às vezes, ponho-me a pensar: se nós tivéssemos a mesma oportunidade, o que faríamos? Estamos no meio do nada, não temos nada porque perdemos tudo, e ninguém nos conhece. Se alguém nos pergunta quem somos, vamos mesmo responder que somos um pobre camaleão que sempre viveu num aquário, e nem nome tem? Seria esta a oportunidade. Podíamos ser qualquer pessoa: quem iria saber? Mesmo não estando nesta situação particular, como nos apresentamos aos outros? Se tivéssemos uma oportunidade real de ser quem sempre sonhamos, o que faríamos?

Segue os teus sonhos, segue o que sentes, ninguém tem o direito para te dizer quem tu és e não és, nem o que podes ou não fazer. Não são estas as vozes à nossa volta muitas vezes? Quanta razão têm? Quanta razão gostaríamos de lhes dar?

Fotografia: NeONBRAND

Vejamos como correu a tentativa de Rango. Não vos vou contar a história toda, podem procurar ver o filme, mas como típica história, inicialmente tudo corre bem para o protagonista e, de repente, tudo vira de pernas para o ar. Rango começou um sucesso. Conseguiu amigos, a aprovação e aceitação que tanto almejava (mesmo sem saber), estava no pináculo da vida. Mas alguém acaba por descobrir que Rango anda a mentir. Ele não é nada esse tipo famoso e destemido… ele não é ninguém, nem Rango é, nem nome tinha. A aldeia sente-se defraudada e expulsa-o. Rango vai-se embora. Segue pelo caminho de onde veio, atravessa a estrada onde teve o acidente… está perdido. Está a ter uma crise de vida, uma crise de identidade. É neste momento que ele encontra outra personagem (o Espírito do Oeste), que lhe diz que ele tem de voltar. Não pode deixar os amigos sozinhos, porque eles correm perigo, mas também, principalmente, porque nenhum homem consegue sair da sua própria história, ou melhor, numa expressão difícil de traduzir, “no person can walk out of their own frame”, algo como “ninguém consegue sair do seu próprio enquadramento”. É um jogo de palavras. Frame quer dizer enquadramento de uma imagem, porque era isso que Rango usava quando estava a filmar, como se fosse o enquadramento de uma câmara. Mas frame também quer dizer estrutura ou a nossa constituição física, o nosso corpo. Não sei se era esse o objetivo da citação, mas lembrei-me dessa frase como adequada para esta conversa sobre identidade.

Por muito que Rango quisesse, ele descobriu que não podia simplesmente ser quem ele quisesse. Já tinha uma constituição a partir da qual agia e reagia. Não poderia escapar a isso. Por outro lado, parte do filme trata-se de Rango estar mesmo a descobrir-se: no início, ele não tem nome, nem amigos, nem sabe o que pode ou não fazer, por falta de oportunidade. Ao longo do filme, vai-se descobrindo, e desencobrindo a sua própria identidade para ele e para os outros. Até a crise de identidade que ele tem pelo meio contribui: na verdade, é um ponto de viragem.

O que quer isto dizer para nós? Trata-se apenas de um caminho de autodescoberta? Em parte. Temos coisas a aprender com o Rango, mas a vida real é diferente dos desenhos-animados.

Fotografia: Liam Simpson

Acredito que temos uma constituição identitária da qual não podemos fugir. Se à nossa volta dizem que eu posso reinventar-me infinitamente, e decidir quem sou, não é verdade. Para quem já tentou, deve ter descoberto que há certas coisas das quais não consegue fugir — há matéria-prima. A pergunta importante aqui é, qual é essa constituição, essa estrutura, essa identidade-base? Acredito que, como seres criados por Deus, encontramos precisamente em Deus esses elementos necessários de origem. Por um lado, todos poderão concordar que o arquiteto de uma casa facilmente passa para a sua obra traços da sua personalidade e preferência. Para além disso, será ele quem melhor conhece os detalhes e as razões de cada contorno. No entanto, trata-se de mais do que traços de fabrico, porque a casa é inanimada e nós não somos. Deus é relacional: faz parte da sua forma de ser, faz parte da sua identidade, e esta caraterística fundamental encontra-se em nós, que somos seres sociais e relacionais. No entanto, trata-se de algo mais além disto também. Jesus Cristo veio à terra como Deus encarnado, e se, por um lado, isto nos ajuda a ter um melhor vislumbre do nosso Criador e das suas caraterísticas (algumas das quais nós herdamos), também nos ajuda a clarificar a nossa relação entre seres criados e Criador. Jesus Cristo não deixa espaço para dúvidas ou falsas interpretações quando esclarece esta relação e diz, “eu sou o caminho, a verdade e a vida”; não sou um caminho, uma hipótese, nem mesmo um guia para um caminho. Sou O Caminho. (Isto seria arrogância, não fosse ele o próprio criador da criatura.) A relação das criaturas não pode ser dissociada do Criador. Parece que, se isso acontece, não há caminho, não há verdade, não há vida — ou seja, ficamos perdidos, acreditamos em falsidades e morremos.

Há um versículo bíblico que diz que “a nossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Carta aos Colossenses 3.3), ou seja, a nossa identidade está escondida em Cristo. Por isso, o passo lógico seguinte seria investigar Jesus Cristo, e ver o que está escondido nele. Nesta conversa sobre identidade, seguir esse passo é duplamente interessante. Por um lado, descubro e vou encontrando a minha identidade; enquanto conheço Cristo, parece que me vou conhecendo a mim também. Por outro lado, temos a oportunidade de analisar alguém que sabia inteiramente quem era, que não teve nenhuma crise de identidade. Tudo o que fazia e dizia partia de uma identidade definida e segura: temos um vislumbre do que seria viver assim, com a identidade definida e segura.

Por vezes, a conversa e reflexão sobre identidade pode parecer um pouco abstrata. No fundo estamos a falar de substrato, a base sobre o qual o resto se ergue e responde. Mesmo a conversa sobre Jesus Cristo pode revelar muita poeira religiosa. Assim, como bons académicos, vale a pena testar as nossas hipóteses. Por isso acho que vale a pena explorar identidade à luz de Jesus Cristo. Estando num contexto universitário, e até num contexto de grupo bíblico universitário em que se fala frequentemente de Jesus Cristo, será interessante tentar imaginá-lo, intencionalmente, na cena universitária. Como seria este Jesus nos corredores da faculdade? Inicialmente, o exercício pode parecer-nos difícil… a distância temporal e sociocultural são demasiadas… mas, tendo a identidade definida, o contexto não altera a identidade, apenas a aplicação. Mais uma razão para refletir sobre identidade. Analisando e colocando Jesus Cristo no contexto universitário, aprendemos a importância de conhecer a nossa própria identidade, para que esta seja a mesma, onde quer que nos encontremos.

--

--