Faz-te ao caminho

Reflexão de um assessor: Emily Lange, GBU Lisboa

GBU Portugal
Por Linhas Tortas
10 min readDec 18, 2017

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Esta é a reflexão da Emily Lange sobre a sua ligação de dez anos com o GBU, desde o seu tempo como estudante.

Emily Lange

Há certos textos bíblicos que vamos acarinhando ao longo do tempo. Mesmo quando achamos que já atingiram a sua máxima profundidade, lançam-nos mais umas léguas a fundo. Neste caso, milhas: estou a falar da história do caminho de Emaús. Se tiverem tempo, tirem uma pausa agora mesmo para ler o texto do Evangelho de Lucas 24:13–35. Mesmo quando lido, para nos sujarmos do pó desta estrada para Emaús, temos de ousar entrar na história e interagir com estas personagens.

Estes discípulos estão cheios de pó. Aproximamo-nos deles e vê-se na cara. Estão tristes e deprimidos. Perdidos, até. Não geograficamente, mas perderam o norte da sua vida. As suas esperanças estavam na pessoa certa, Jesus Cristo. Mas tal como não o reconheceram por quem ele era, não o reconhecem agora que se aproxima deles e se junta ao caminho. Imagino que a conversa entre eles seria de tom negro, os seus corações pesados.

“A estrada para Emaús” (Robert Zünd, 1877).

Os caminhos deixam o seu pó, mas a boa notícia é que Jesus se junta a eles no momento e no espaço onde eles estão, partilhando o pó da estrada e o pesar dos seus corações. Este é o nosso Mestre, Jesus. Apesar de não ser reconhecido ao longo do percurso de onze quilómetros, ele prossegue caminho ao lado destes discípulos, no meio da sua confusão, desorientação e luto. Ouve o que têm a dizer, mas, de repente, fala e reorienta a conversa de forma inesperada. Imagino que este terá sido um dos melhores estudos bíblicos de todos os tempos, com a Palavra em pessoa a abrir A Palavra àquelas pessoas. O “Panorama da Bíblia” segundo Dr. JC. No final, o sentimento era tal entre eles que não deixaram que aquele estranho prosseguisse caminho sem que entrasse na sua casa.

Não há maior contraste possível. Em onze quilómetros, foram-se os sentimentos de desilusão, solidão, desesperança e tristeza. Em lugar disso, vemos alegria, companheirismo, fervor, esperança e hospitalidade. Agora, é à mesa que se dá o clímax da história. Os discípulos não esperavam mais nada, pois já acham que atingiram o clímax; chegaram à mesa para descansar do caminho, satisfeitos com o novo entendimento que têm. Mas são surpreendidos mais uma vez. Afinal, é Jesus que está com eles! No momento em que o reconhecem, puff, desaparece.

“Jantar em Emaús” (Caravaggio, 1606).

Na minha última releitura, pude refletir sobre vários pontos de contacto que esta história tem com a minha caminhada dos últimos anos. Encerra-se o meu período de assessora do GBU, mas não só. É o fim de uma fase de dez anos de acompanhamento direto e intenso deste movimento, e naturalmente um período de nostalgia e muitas lembranças. Coincide, também, com aquela fase em que começamos a aprender a ser pessoas no mundo. Assim, ressaltam algumas aprendizagens que desejo partilhar com companheiros de caminhada.

1. Assumir o pó.

O pó do caminho é real. Por vezes, ignoramos o facto, por vezes menosprezamos ou escondemos esta realidade. A verdade é que é impossível caminhar sem ficar sujo. A verdade é que a tristeza, desesperança, desilusão e solidão atingem todos. Passei por momentos muito difíceis nos últimos dez anos. Senti, por vezes, que me tiraram o chão, e que aquilo em que colocava a minha esperança ruiu. Senti a dor acutilante e sufocante da solidão. Senti, por vezes, desesperança e falta de vontade de viver. Houve dias em que não sentia alegria, e o levantar-me de manhã acontecia por hábito apenas. Andar no caminho assim é duro e difícil. Temos de assumir isso com maior franqueza. Mas é aqui que Jesus se junta e anda connosco. Aqui, no pó, no caminho. Jesus junta-se e pergunta o que se passa, e aqui temos de ser radicalmente honestos. Não adianta esconder ou aligeirar. Temos de aceitar e admitir como estamos, o que sentimos. E nem é numa perspetiva automática de resolução de problemas — o quanto gostaríamos que assim o fosse sempre! Jesus enceta caminho; ele não resolve logo o problema patente ao revelar a sua identidade. Há estados e situações que não se resolvem facilmente, e outros que nunca se vão resolver. É um caminho. Caminhamos. O destino não é a única coisa que importa: o próprio caminho é importante, e por isso o pó também faz parte.

Fotografia: Roya Ann Miller

2. Caminhar acompanhados.

Caminhamos acompanhados por Cristo, mas não só. O companheirismo é das coisas mais bonitas que o GBU proporciona. Um dos lemas é “amizades eternas”. Isto nem é uma afirmação lamechas, porque há pessoas que nunca vamos mesmo deixar de ver. Nesta história, ambos os discípulos estão tristes, mas caminham juntos. A importância de caminharmos juntos é algo que aprendi nos últimos anos. Aqueles que me conhecem sabem que sou mais do tipo lobo solitário, mas percebo que preciso de comunidade. Graças a Deus, aprendi isso a partir de vários amigos companheiros de caminhada. No entanto, vejo muitas vezes que o andarmos juntos é tido como garantido. Não é porque estamos sempre acompanhados que estamos a viver em comunidade. A prova de comunidade real é quando partilhamos as nossas fraquezas e angústias, e juntos caminhamos no pó da estrada da vida. Foi assim que eu o aprendi: ao ser vulnerável. Estranhamente, é nesses momentos de partilha que a amizade amadurece e aprofunda.

3. Caminhar com a Bíblia.

Fotografia: Hannah Busing

A Bíblia é um companheiro em si nesta caminhada. Não há melhor passagem para perceber a importância e a força de um estudo bíblico. Estes discípulos não conheciam já as Escrituras? Não as tinham ouvido e aprendido desde pequenos? Este texto sublinha a importância da interpretação bíblica e da reflexão teológica, e coloca-os num contexto de vida quotidiana: uma conversa, uma caminhada. Faz lembrar vários estudos bíblicos nas faculdades por onde passei. O GBU foi um dos meus recreios bíblicos e teológicos. Nele conheci outros teólogos amadores (como todo o cristão deve ser) — incluindo aqueles que já não estão entre nós, através de livros. Tornaram-se companheiros de caminhada na interpretação das Escrituras. Por outro lado, se houve algo que me deu imensa alegria nos últimos anos, foi estudar a Bíblia com pessoas que não se identificam com o Cristianismo. A surpresa delas ao ver Jesus interagir com as pessoas traz-me de forma fresca aquele que está à minha frente, mas que já não reconhecia.

4. Pôr os olhos em Jesus.

O fator determinante desta conversa e caminhada foi, sem dúvida, a forma como Jesus dirigiu a conversa e o estudo bíblico. Os discípulos não conseguem senão exclamar em êxtase, no final do episódio, “não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava, e quando nos abria as Escrituras?” (v. 32). Mesmo assim, no decorrer do dito estudo bíblico, eles não perceberam quem ele era e o que se estava a passar. Sentiam um quentinho no coração, mas ainda não percebiam tudo. Faltava um último momento em que Jesus lhes abrisse o coração de outra forma. Se isto me ensina algo, é a lentidão do meu próprio coração. Tantas vezes, Jesus estava mesmo à minha frente e eu não o vi. Sem ele, estou mesmo perdida, tal como estes discípulos. Não se trata da salvação da minha alma, mas do meu dia-a-dia! “Tenhamos os olhos postos em Jesus, de quem a nossa fé depende inteiramente.” (Hebreus 12:2).

5. O estilo da Hospitalidade.

“Brunch com amigos” (Fotografia: Ali Inay)

A hospitalidade é resultado de passar muito tempo com Jesus. Na verdade, o estar à mesa era como Jesus fazia o seu ministério. Era nesse ambiente que ele estava com as pessoas, e é nesse ambiente que o GBU faz muito do seu trabalho. A mesa é importante na cultura portuguesa, mas a hospitalidade num sentido mais completo não é o seu forte. Aprendi isso da pior das formas. A solidão não é fácil de viver nem encarar, mas foi útil para perceber uma série de coisas. Nomeadamente, refletir sobre o tema da hospitalidade num sentido mais abrangente. Concluí, com ajuda de vários amigos, que o cristão tem de ser um anfitrião. Não apenas em sua própria casa — isso também procurei desenvolver, e tenho ainda muito a aprender nesse sentido — mas na sua própria vida. É nessa casa que ‘amamos o próximo como a nós mesmos’. Estamos rodeados de pessoas perdidas, em busca do lar. Se não tomamos tempo e criamos espaço para as “receber”, não estamos a ser bons anfitriões. Para isso, temos de estar atentos a quem está à nossa volta. Temos de ter flexibilidade para responder a imprevistos. Mas acima disso, temos de estar à vontade na nossa própria casa, e para isso, voltamos à casa da partida. Há uma casa que eu levo para todo lado. Hospitalidade, assim, é um estilo de vida. Porque vivemos para Cristo, começamos a viver como ele vivia (à mesa), e começamos a viver mais para os outros (de casa aberta).

6. Praticar a presença de Deus.

“A ler em solidão” (Fotografia: Ben White)

Esta história mostra-me a importância e a realidade da presença de Cristo na estrada da vida. Estes discípulos ignoravam com quem caminhavam. Eu nem sempre noto, mas Cristo está lá. Está mesmo. Recentemente, tenho andado a pensar em como tornar mais presente esta realidade da presença de Cristo na minha vida. Afinal, dizemos que Deus está em nós, mas esta realidade é difícil de se evidenciar e raramente penetra as profundezas do ser. Foi no momento do partir do pão que Cristo se revelou a estes discípulos. Esta foi a primeira Ceia de que temos registo. Os símbolos e a intencionalidade aqui são imprescindíveis. Henri Nouwen fala de memoria Christi, procurar lembrar Cristo intencionalmente. E temos de o fazer, porque se não o fazemos, somos comidos vivos pela azáfama da vida, especialmente a universitária.

Neste caso, nos últimos tempos, tenho procurado praticar a presença de Deus, como praticamos um desporto ou um instrumento. Intencionalidade e disciplina. Aprendi isto com um monge do século XVII, chamado Lourenço. Ele entrou para o mosteiro e queria fazer parte da então equipa de louvor, mas ficou para cozinheiro. Não poderia cantar e estar continuamente na presença de Deus, como desejava. Teria de descascar batatas, arrumar armazéns. Mas, ele não deixou que a banalidade das suas tarefas o incomodassem no seu desejo de estar com Deus, e procurou praticar a presença de Deus através da oração e conversa constante. A oração tem-se tornado uma prática imprescindível na minha vida. Tal como o coloca Eugene Peterson, a oração é a tecnologia do cristão. Onde outras ferramentas nos ajudam a fazer coisas, a oração ajuda-nos a ser. A ser humanos. A ser cristãos. A ser discípulos e estar com o nosso Mestre.

Pontos de reflexão

Estas aprendizagens vêm em jeito de reflexões, mas suscitam questões interessantes. Deixo-as endereçadas a estudantes universitários, mas facilmente podem adaptar ao vosso contexto se já não se consideram universitários. Pelo menos continuam como estudantes da vida, e poderão ser companheiros na estrada para Emaús.

  • Como seria se, como estudantes universitários, fôssemos mais honestos quanto às nossas dificuldades? Se entre companheiros cristãos, partilhássemos fardos e tabus e caminhássemos juntos com Cristo na estrada da vida? Como encaramos o pó da vida?
Fotografia: Davide Cantelli
  • Temos a expectativa de sermos surpreendidos na leitura das Escrituras inédita que Cristo nos pode trazer, tal como trouxe a estes discípulos? Não lhes faltava conhecimento, mas sim revelação e relação. O nosso coração arde quando lemos as Escrituras?
  • Como estamos a ler a Bíblia? Lemos em contextos diferentes? Sozinhos, com outros cristãos? E lemos com quem não partilha a nossa fé? Uma das leituras mais frescas dos últimos tempos foi ler com quem não crê nela como eu; curiosamente, fez-me apreciar ainda mais este livro, e acreditar ainda mais nas suas palavras.
  • Como está a nossa hospitalidade enquanto estudantes universitários? Podemos achar que somos nós que precisamos dela — e é verdade — mas, há também quem precise de ser recebido, e pode estar mesmo ao nosso lado. O problema é que temos de abrir o nosso coração para esta realidade. Podemos não estar com vontade para esse passo, porque acarreta riscos, desconfortos, vulnerabilidade.
Fotografia: Alexis Brown
  • Hospitalidade também não é apenas um espaço físico. Há uma “casa” que levamos sempre connosco. Estamos à vontade na nossa própria casa? Tenho uma amiga que uma vez partilhou uma imagem comigo. Disse-me que sentia que tinha recebido Jesus na sua vida, mas que o tinha deixado na sala de estar. A vida dela era como uma casa com várias divisões, e Jesus ainda estava na sala de estar. Ela levou-lhe um chá e tudo, mas ainda o estava a tratar como visita. Havia divisões na sua casa que ainda não lhe mostrara. Tinha medo… estavam desarrumadas. Nesta imagem, via que tinha de fazer uma tour da casa mais completa com Jesus, mas que isso lhe iria custar imenso.
  • Como é que Cristo se faz presente na universidade? Como é que Cristo se faz presente no nosso dia-a-dia?

O caminho de Emaús é a minha história com Jesus, mas acredito que é um caminho que todos temos de fazer. Esta é a história de todos aqueles que se dizem discípulos de Jesus. Anda, discípulo, faz-te ao caminho…

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