Três dentadinhas: Uma apreciação de “Cuidado com o Alemão”

GBU Portugal
Por Linhas Tortas
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5 min readOct 31, 2017

Ao observarmos os quinhentos anos da Reforma Protestante, o João Cid, estudante de Lisboa, considerou as consequências da Reforma até hoje através de uma recensão do livro de Tiago Cavaco, Cuidado com o alemão: Três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época.

Se, ao terminar de ler uma história, considero importante saber contá-la por alto, bem como lembrar um ou outro pormenor interessante, num livro tipo ensaio parece-me importante saber a opinião geral do autor em relação aos tópicos principais e lembrar-me de uma ou outra citação que me permita exibir a minha memória numa qualquer conversa de café.

Faço a nota prévia de que o título é muito honesto: este livro não é uma biografia. Tem uma parte biográfica para contextualização, mas a questão essencial é a que está lá estampada: Lutero é importante hoje, na nossa época.

No prefácio, o João Miguel Tavares realça que o livro é um bocadinho agressivo para com o catolicismo romano. É plausível. Mas há que não esquecer que o livro tem como pano de fundo a vida e ensino de Martinho Lutero, que era ótimo a dar porrada em tudo o que não lhe parecesse ortodoxo, e também que o autor é um pregador. Ele não esconde isso e diz mesmo que “este é um livro de um crente que quer impingir a sua crença a quem ainda não a tem”. Nem sempre os contrapontos são as armas preferidas dos autores, mas os pregadores tendem a gostar. E o Tiago Cavaco escreve como um pregador. Ele também admite isto. Se for lido como se estivesse mesmo a falar a sério, ele nem sequer será consensual entre os protestantes. E é um nadinha bruto, vá. O que até faz sentido, visto Lutero ser um outro bruto. Nem todos os protestantes vão gostar, mas os esquisitos vão-se divertir.

Retrato de Martinho Lutero (Lucas Cranach, o Velho, 1529)

O livro aborda três tópicos (as tais dentadas) em que o ensino de Lutero não só foi revolucionário e importante na altura, como hoje nos influencia. A maldade/visão do mal, a educação e a música são três áreas em que o protestantismo é diferente de tudo, porque a visão bíblica é diferente de tudo. Foi isso que Lutero descobriu e que devemos preservar e reforçar hoje: a centralidade da Bíblia.

A primeira dentada é a ‘maldade’, ou ‘a justificação mediante a fé’, diria eu. O sola gratia e sola fide de Lutero. Aqui há o reforço do reconhecimento do pecado como ponto de partida para o arrependimento. Parece óbvio, mas talvez nem seja sequer uma realidade na nossa conceção de nós próprios, mesmo cristãos, infelizmente. E não é, certamente, uma realidade na sociedade de hoje: “o pecado foi expulso da razoabilidade contemporânea e, quando muito, o que temos de mais parecido com ele é o erro que encontramos nas tais estruturas sociais coletivas que sejam tidas como opressoras — o mal deixou de ser primariamente uma coisa dentro de mim para passar a ser uma coisa fora de nós”. E se ninguém tem pecado, ninguém precisa de um Salvador.

Lutero a pregar as Noventa e Cinco Teses em 1517 (Ferdinand Pauwels, 1872)

A segunda dentada é a educação. Aqui há porrada da violenta com os católicos. É um capítulo com bolinha vermelha. Também é o mais comprido e, na minha opinião, o tema central. Se não se ensina a ler, não se lê a Bíblia. E se não se lê a Bíblia, não temos nada. Por isso é que o primeiro sola é o sola scriptura. É o primeiro embate de frente entre o protestantismo e o catolicismo: “Não insistimos que as pessoas leiam a Bíblia porque elas são umas leitoras excecionais. Insistimos que as pessoas leiam a Bíblia porque Deus é excecional a revelar-se nela. […] Numa igreja protestante o pastor não pastoreia porque entende naturalmente o que a ovelha não. Numa igreja protestante o pastor pastoreia porque aquilo que entender será entendido da mesma maneira que a ovelha o pode fazer.” O ensino é uma coisa séria. Não é brincadeira de crianças. Porque o ensino sério também é para as crianças. Isto é importante defender hoje.

Martinho Lutero a pregar aos fiéis (Igreja de Torslunde, 1561)

A terceira dentada é a música. Não é à toa que a música inserida na liturgia aparece no livro. O sola scriptura é novamente a ignição da abordagem ao tema: “Não faria sentido o protestantismo deslumbrar-se com a frescura acessível das Escrituras, para depois elaborar uma liturgia que contraditoriamente permanecesse complicada e artificial”. O Tiago ainda acrescenta: “A música protestante tem menos a ver com uma estrutura impressionante e especialmente elaborada, e tem mais a ver com a mensagem que é colocar em prática tudo o que se compreendeu no texto bíblico […] a música é para cantar e não para contemplar”. Mais tiros. Baixem-se os católicos e os protestantes que não cantam hinos.

Como nota final, ressalvo que apesar dos protestantes esquisitos se irem divertir logo à primeira, seria injusto dizer que o livro não é acessível a qualquer um que o queira compreender, porque é. Talvez não se divirtam logo à primeira, mas à terceira ou quarta lá deixam escapar um sorriso. Termino com uma das tais citações, a minha preferida: “se o catolicismo tiver apenas 5 segundos para passar uma mensagem sobre o ser humano, dirá: somos todos filhos de Deus. Se o protestantismo tiver apenas 5 segundos para passar uma mensagem sobre o ser humano, dirá: sem Deus estamos todos perdidos”.

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