De nanômetros a trilhões: os problemas de medir o tamanho econômico da pandemia

Carlos Eduardo Frickmann Young
GEMA IE/UFRJ
Published in
7 min readJun 1, 2020

“Nunca pensei que um lindo frasco tão pequeno

Pudesse comportar, meu Deus, tanto veneno”[1]

É muito difícil entender o tamanho do novo coronavírus (SARS-CoV-2): entre 60 e 140 nanômetros[2] (um nanômetro mede uma bilionésima parte de um metro). É tão pequeno que mesmo os mais potentes microscópios não conseguem uma imagem nítida — só podemos representá-lo por ilustrações.

O Produto Interno Bruto (PIB) mundial está do outro lado do espectro, como uma cifra tão grande que também é de difícil compreensão. Em 2019, esse PIB foi estimado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em torno de US$ 87 trilhões, ou R$ 468 trilhões.[3] A perda econômica global estimada como consequência da pandemia oscila entre -3% (FMI) e -9% (Organização Mundial do Comércio) do PIB mundial. Isso seria equivalente a uma perda entre 14 e 41 trilhões de reais. É como se, de repente, desaparecesse de duas a seis anos de toda atividade econômica brasileira.

O que significam esses números recheados de zeros, à direita ou à esquerda da vírgula? A explicação mais simples é que um microrganismo infimamente pequeno pode causar um estrago extraordinariamente grande. Além dessa percepção, qualquer previsão está num campo minado por incertezas.

É notório que há subestimação do número de casos e óbitos por COVID 19 no Brasil e em outros países, especialmente em desenvolvimento. Aliado a isso, há uma falha significativa dos governantes brasileiros em lidar com a pandemia: tendo chegado no país relativamente tarde em relação à Europa, não houve preparação técnica para a pandemia. Sem estratégia, equipamentos, materiais para teste e coordenação de ações, o Brasil tornou-se presa fácil para a propagação do coronavírus — no momento em que escrevo, é o país do mundo com maior número diário de novos casos de contaminação (epicentro), mesmo com grande subnotificação.

Como tentativa de desviar atenção da incapacidade técnica e falta de propostas concretas para lidar com a pandemia, criou-se uma falsa dicotomia entre proteger a saúde ou a economia. Surgiu o jargão de que “é preciso salvar vidas, mas também o PIB”. No entanto, PIB não se salva, apenas se mede.

O PIB é uma celebridade sobre a qual se fala muito, mas se entende pouco. Seu significado é bastante específico: trata-se de uma estatística agregada sobre o montante total de bens e serviços produzidos em uma economia em um determinado período. Ou seja, não é medida de desenvolvimento, bem estar ou mesmo riqueza. É simplesmente uma métrica para saber se o conjunto da economia teve maior ou menor atividade em relação ao período anterior.

É inexorável que a violenta retração da atividade econômica resultará em indicadores igualmente dramáticos de queda. Quanto mais adequadas forem as medidas de política econômica, menor será essa retração. O que recomenda a teoria macroeconômica nessa situação? Aumento de gasto, com papel preponderante para compras públicas e políticas de renda mínima para garantir o poder de compra da população (uma receita que o Ministro Guedes resiste a aceitar). Políticas monetárias expansionistas (que facilitem a criação de moeda) são benvindas, mas insuficientes por falta de disposição para o gasto (demanda efetiva). A “armadilha da liquidez”, na qual o investimento não aumenta mesmo havendo crédito abundante e taxas de juros desprezíveis, foi bem descrita por Keynes enquanto ainda se vivia a depressão dos anos 1930.[4]

Ao argumentar que as livres forças de mercado não apontam para o pleno emprego das forças produtivas, Keynes estabeleceu a necessidade de que os rumos da economia sejam conduzidos pelo controle das principais variáveis macroeconômicas: a quantidade de moeda, a carga tributária e o gasto público. Para isso, uma métrica foi criada para acompanhar continuamente o nível de atividades, o PIB, e é nesse contexto teórico que, tal qual o conhecemos hoje, ganha significado.

Repito: como uma métrica de comparação entre dois períodos, o PIB não visa medir o estado absoluto de uma economia, mas apenas se a atividade econômica está crescendo ou diminuindo em relação ao passado recente. Essa perspectiva temporal da medição do PIB causa sempre um efeito de “herança” do período anterior. Isso significa que, em algum momento, quando a população estiver protegida contra a COVID-19 (seja por vacina, tratamento eficaz ou imunidade generalizada), a atividade econômica voltará a níveis próximos aos de antes da pandemia, resultando em crescimento do PIB em todo lugar.

Certamente os dirigentes políticos desse momento irão apresentar essa melhoria como o “sucesso” de suas gestões. Mas, na realidade, isso representará apenas a retirada alguns dos “bodes da sala”: não será uma constatação de melhoria absoluta, mas de que parte dos problemas criados pela pandemia serão resolvidos por inércia, quando não houver restrições físicas ao trabalho ou queda de demanda por medo de contaminação.

Na ânsia de colher rapidamente os louros dessa vitória (de Pirro), o Governo Federal brasileiro vem insistindo em negar as recomendações da comunidade científica e acabar com o isolamento social e as medidas de restrição econômica para o imediato retorno a uma suposta “normalidade pré-pandemia”. Isso é contraditório com a necessidade de recuperação da saúde coletiva pois a contaminação não acabará por decreto ou ato institucional. Na ausência de medidas efetivas de controle, a epidemia trará mais afastamento de trabalhadores doentes, e os demandantes de serviços (restaurantes, hotéis, viagens, salões de beleza, etc.) ficarão ainda mais reticentes para retornar aos hábitos usuais de consumo, visto que o acirramento do contágio representaria risco maior a sua própria saúde.

Mas os problemas de se medir o “sucesso” da saída da pandemia apenas através do PIB vão muito além. Como já dito antes, o PIB não mede bem-estar ou qualidade de vida, mas atividade econômica. Se a pessoa afetada pela doença estiver fora da população econômica ativa, seu adoecimento ou óbito não representará perda da capacidade produtiva por ela não estar trabalhando. Como a maioria das vítimas da doença é idosa, boa parte já aposentada, então os efeitos da pandemia sobre o PIB são minimizados.[5]

Para piorar, o efeito direto do aumento dos serviços de saúde e produção de medicamentos pode inflar o PIB setorial, pois representa crescimento na produção de serviços e bens da área de saúde, que também é uma categoria econômica. Ou seja, o aumento na prestação de serviços na área de saúde (graças ao esforço e exposição ao risco dos profissionais da área, que são a categoria ocupacional mais afetada pela pandemia) pode significar um PIB maior para o setor. Como maior não quer dizer melhor, isso é mais um sinal da cautela que se deve ter ao olhar os números do PIB que serão apresentados daqui para frente.

Para as pessoas afetadas que são economicamente ativas, as consequências podem ser bastante desiguais. Estudos dentro e fora do Brasil apontam que a incidência e letalidade da COVID 19 é muito maior em áreas periféricas, mais pobres e com maior presença de grupos sociais desfavorecidos. A forma de medir a contribuição econômica dos indivíduos é pela sua produtividade em termos de rendimento monetário auferido. Por tautologia, trabalhadores de baixa renda apresentam menor produtividade do que os de alta renda. Portanto, o alastramento da doença nas regiões mais pobres pode afetar menos o PIB do que o mesmo número de casos em áreas mais ricas.

Desta maneira, se aceito o argumento de que o crescimento do PIB deve ter prioridade sobre cuidar da saúde da população, isso poderia justificar o alastramento da epidemia nos bairros pobres, de produtividade baixa, para manter em atividade os indivíduos de alta produtividade (ricos). Deve-se mencionar ainda que esses últimos dispõem de melhores recursos para se precaver da contaminação ou para tratamento, caso infectados, o que torna as consequências da pandemia ainda mais desiguais.

Todos os pontos acima demonstram que, sozinho, o PIB é uma medida inadequada para medir os efeitos da pandemia. Para ilustrar o argumento, basta comparar com o que se espera das medidas do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O IDH é obtido pela média geométrica de três indicadores: renda (medida ajustada do PIB per capita), educação (anos médios de estudo, observados ou esperados) e saúde (expectativa de vida). Espera-se que, além da redução de renda, o IDH decline em função da queda de expectativa de vida, por causa da grande letalidade por COVID 19. Os efeitos sobre escolaridade ainda não são conhecidos, mas é possível que a crise econômica e social retire alunos da sala de aula, o que traria efeitos ainda mais negativos. O declínio medido pelo IDH tenderá a durar mais do que o PIB, mostrando que análises multidimensionais são melhores para se compreender o efeito da pandemia.

Por fim, o ponto mais importante: alterações na qualidade de vida não são computadas pelo PIB ou outros indicadores convencionais. Sofrimento físico, psicológico ou espiritual, tristeza, angústia, depressão e outras dores, do corpo e da alma, não entram na métrica. Tampouco são consideradas as consequências sociais e políticas que a pandemia trouxe para todos nós.

O SARS-CoV-2 é tão pequeno que não se consegue ver. Mas o legado de problemas que deixa é tão grande que tampouco conseguimos adequadamente divisar toda sua extensão. As consequências serão muito mais trágicas e profundas do que mera a interrupção temporária da atividade econômica, e medir seu impacto deve ir muito além de focar apenas numa medida reducionista como o PIB.

[1] Nei Lopes, “Gotas de veneno”

[2] Cascella M, Rajnik M, Cuomo A, et al. Features, Evaluation and Treatment Coronavirus (COVID-19) [Updated 2020 Apr 6]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2020 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK554776/

[3] Taxa de câmbio de 29/05/2020 (R$ 5,34/US$). PIB global extraído de https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD

[4] Keynes, John Maynard, 1883–1946. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmillan, 1936.

[5] Um aspecto particularmente perverso é argumentar que a morte antecipada de pensionistas poderia melhorar as contas da Previdência Social no Brasil. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,morte-de-idosos-por-covid-19-melhora-contas-da-previdencia-teria-dito-chefe-da-susep,70003317874

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Carlos Eduardo Frickmann Young
GEMA IE/UFRJ

Professor Titular do Instituto de Economia da UFRJ. Membro do PPED-IE/UFRJ, PPGCA/UNEMAT e PPGCASA/UFAM. Coordenador do GEMA-IE/UFRJ.