Não há alternativa? Uma breve reflexão sobre o falso dilema ético e os efeitos da pandemia

João Felippe Cury M. Mathias
GEMA IE/UFRJ
Published in
6 min readApr 17, 2020

Nesses tempos de pandemia tem vindo à tona uma falsa dicotomia entre preservar vidas ou preservar a Economia. Alguns, com uma visão unívoca, são amplamente favoráveis à volta às atividades para que a Economia e os empregos não sejam penalizados pelos efeitos do lockdown sugerido pelas autoridades de saúde. Os tempos de elevada restrição (inclusive de ir e vir) têm sido raros para as novas gerações do Ocidente. Talvez isso acabe por forjar a percepção de uma parcela significativa da população que não contava com um baque dessa magnitude provocado pela pandemia de COVID-19. Em sua homilia prévia à Pascoa, o Papa Francisco alertou: “Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.

O contexto mudou drasticamente, mas a visão de algumas pessoas sobre os fenômenos concernentes à pandemia em curso bem como seus efeitos, não. Este breve artigo se propõe a por em xeque as visões que ignoram os contextos, a unicidade dos eventos em curso, e, sobretudo, as possibilidades de enfrentamento e possíveis saídas dos efeitos da pandemia sem precisar lidar com o falso dilema ético entre preservar vidas ou a Economia. O ponto de partida aqui é baseado em apenas uma ética possível: preservar a vida humana custe o que custar. Mas existem possibilidades? Alternativas? O que a História Econômica tem a nos contar quando o mundo enfrentou crises de elevadas proporções e globais, como a Crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial?

As perguntas acima são complexas e exigem enorme reflexão à luz da literatura. Portanto, por causa da brevidade deste artigo buscamos nos ater aos grandes movimentos feitos na Economia para lidar com as antigas crises bem como suas consequências. Com isso vamos oferecer um contraponto àqueles que enxergam o dilema ético e dizem não haver alternativa a não ser a volta imediata às atividades laborais e o rompimento parcial ou total da quarentena em curso.

A frase “There’s no alternative” (Não há alternativa) é atribuída à Margaret Thatcher. A então primeira ministra da Inglaterra foi um exemplo de radicalismo e inflexibilidade, o que lhe valeu o apelido “Dama de Ferro”. Ela tinha uma visão dogmática em relação aos fenômenos econômicos e sociais e era radicalmente favorável ao Estado mínimo, a ponto de declarar que “não existe essa coisa de sociedade. Existem indivíduos, homens e mulheres, e existem as famílias”. É de se imaginar que com esse tipo de visão dogmática a ideia de uma quarentena horizontal, que requer justamente um esforço coordenado da sociedade para o êxito da política de distanciamento social, não fosse uma opção plausível derivada desse tipo de pensamento. Essa visão é compartilhada por uma parcela não desprezível da sociedade atual. Mas o que podemos dizer para essas pessoas? Não há alternativa?

A resposta é que a História Econômica sugere que há alternativa. Que vem com custos, mas, sobretudo, colocando em xeque os pilares que sustentam o dogmatismo político e econômico do pensamento supracitado. A ideia de que mais Estado para o enfrentamento de uma crise como atual soaria como anátema aos pensadores dogmáticos que não veem alternativas. O que se quer apresentar aqui é justamente o contrário. O Estado é o principal agente de enfrentamento de crises agudas. É assim mesmo.

O fato é que os efeitos do lockdown (no Brasil e no mundo) já afetaram a atividade econômica, o emprego e a renda. É preciso reconhecer que todos de uma maneira maior ou menor vamos perder. Uma reflexão adicional deve se por sobre o depois. Qual o futuro que queremos? O alerta do Papa Francisco pode e deve ser ouvido e entronizado. Mas e o agora? O que pode ser feito agora para se atenuarem os efeitos da pandemia sem sucumbir ao dilema ético posto? A resposta é curta e direta: o Estado deve atuar como o garantidor em primeira e última instância de todos aqueles que são diretamente afetados pela paralisia das atividades econômicas, o que inclui desde os trabalhadores informais, aos demais autônomos, aos empregados formais e aos micro, pequeno e médio empresários. Inclui também o pacto federativo, com estados e municípios. As ajudas são multidimensionais. Muita coisa já tem sido feita no mundo. No Brasil, algumas estão sendo implementadas, mas infelizmente não com a celeridade exigida num momento de urgência.

Com efeito, para evitar o dilema ético o Estado tem que gastar mais. Vamos utilizar o caso dos Estados Unidos, claramente uma nação historicamente guardiã dos princípios de mercado e motor do Capitalismo mundial há mais de um século. O período de análise inclui dois grandes eventos sistêmicos, da crise de 1929 ao término da Segunda Guerra Mundial em 1945. O que os dados estatísticos dos EUA têm a nos dizer sobre produto, desemprego, inflação e dívida pública? Recorremos à riqueza dos dados contidos no “U.S. Census Bureau, Statistical Abstract of the United States: 1999”.

Os efeitos da Crise de 1929 foram devastadores para os EUA. Diante da queda brutal de atividade econômica e do expressivo aumento do desemprego o governo recém-eleito de Franklin Roosevelt em 1933 implementou um grande programa de gastos públicos conhecido como “New Deal”. Como se pode notar com os dados do Gráfico 1, houve uma mudança de patamar para mais que o dobro da relação dívida/ PNB dos EUA, passando de 16% em 1929 para 39% em 1933. A mudança exponencial em 1945 é respondida pela entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial em 1941. Os gastos públicos para lidar com a guerra são explosivos.

Fonte: U.S. Census Bureau, Statistical Abstract of the United States: 1999

Os efeitos diretos dessa expansão fiscal foram muito positivos sobre a atividade econômica e para a recuperação do emprego, como vemos nos gráficos 2 e 3. Após queda acentuada entre 1929 e 1933 a atividade econômica responde positivamente aos efeitos do “New Deal” e depois à “Economia de Guerra”. O Gráfico 2 apresenta a evolução do PIB medidos a preços constantes, indicando a evolução real do produto. De 1933 a 1945 o produto praticamente triplica.

Fonte: U.S. Census Bureau, Statistical Abstract of the United States: 1999

Os efeitos positivos na atividade econômica foram claramente evidenciados no mercado de trabalho dos EUA. Isso tem muita relação com os efeitos multiplicadores e aceleradores do gasto público e na indução ao investimento privado. Ao término da Segunda Guerra Mundial a taxa de desemprego dos EUA que poucos anos antes era de quase 25% estava abaixo de 2%, conforme exposto no Gráfico 3.

Fonte: U.S. Census Bureau, Statistical Abstract of the United States: 1999

O mais interessante aqui é ver a potência do contexto em questão. Mesmo com essa elevada expansão de gastos não houve quaisquer impactos importantes sobre a inflação. Conforme exposto no Gráfico 4, a depressão econômica é associada à deflação (1929–1933), mas a recuperação econômica foi associada à inflação baixa. O contexto específico importou muito. Na verdade os contextos específicos importam sempre.

Fonte: U.S. Census Bureau, Statistical Abstract of the United States: 1999

O caso americano é bastante ilustrativo. Para lidar com os efeitos de crises é preciso levar em conta os contextos específicos. Isso serve para qualquer economia do mundo, inclusive a brasileira. Não é hora de titubear. A maioria dos países da OCDE já implementou políticas agressivas de aumento de gastos públicos (além dos “afrouxamentos monetários”) para lidar com os efeitos da pandemia e manter as recomendações da Organização Mundial da Saúde sobre a necessidade de lockdown horizontal. Isso resolve o dilema ético pelos meses que se seguirão.

Num segundo momento, sem a existência do dilema ético, quando os efeitos da pandemia estiverem mitigados, os governos lidarão com as eventuais inconsistências fiscais e monetárias se elas aparecerem. Quando o contexto mudar, novos problemas surgirão. Se o país não tiver lideranças inflexíveis e aprisionadas por seus dogmas novos desenhos de políticas públicas, econômicas e sociais serão feitos para enfrentar os novos cenários e seus problemas que surgirão.

É assim que a experiência histórica ensina. Que ela volte a nos ajudar nesses dias difíceis.

--

--