Cecilia Lustosa
GEMA IE/UFRJ
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6 min readJun 4, 2020

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Novos hábitos, velhos padrões de consumo: possibilidades na pós-pandemia do Covid-19

#FIQUEEMCASA. Essa foi uma mensagem muito ouvida e lida durante a pandemia de Covid-19. Na ausência de vacina e de remédios específicos para seu combate, foram adotados diferentes modelos de intervenções não-farmacológicas: quarentena, lockdown, distanciamento social, isolamento. Independentemente das diferenças entre esses conceitos, o fato é que todos ficaram mais tempo em casa, reduzindo o acesso ao consumo presencial, seja de bens ou de serviços, adotando novos hábitos. Como esse fato pode repercutir nos padrões de consumo pós-pandemia? Algumas hipóteses podem ser levantadas, porém, vale lembrar quais são as bases de nossos atuais padrões de consumo.

A inserção dos países em desenvolvimento na atual civilização industrial foi marcada pela mimetização dos padrões de consumo do centro do sistema econômico mundial no século passado, com o processo de substituições de importações (PSI) iniciado Brasil já nos anos 1930, como nos mostrou Celso Furtado[1]. Com a consolidação da industrialização brasileira, a dualidade entre o “arcaico” e o “moderno” ficou cada vez mais evidente e a dupla exclusão — social e ambiental — apareceu em cena[2].

Na medida em que se acelerou o processo de globalização, aliado ao aumento da produtividade industrial, o consumo de massa, baseado no padrão de consumo das economias centrais, intensificou-se, imprimindo novos desejos e necessidades para a população e incutindo a noção de que quanto maior o consumo de bens materiais, maior a felicidade. Consequentemente, esses padrões de consumo, intensivos em matérias-primas e energia, ficaram cada vez mais compostos por produtos industrializados, refletindo diretamente no cotidiano da população. Um exemplo de fácil percepção é o padrão alimentar, adotando pela maioria das pessoas.

A dieta adotada com a reprodução de padrões de consumo vindos de fora, principalmente dos EUA, trocou a sopa de legumes pelo hambúrguer; os quitutes da vovó pelos biscoitos industrializados recheados com gordura hidrogenada; os sucos das frutas tropicais pelo refrigerante; o iogurte natural pelos “danoninhos que valem por um bifinho” misturados a corantes, conservantes e acidulantes; o peixe fresco pela salsicha; o pão caseiro pelo pão feito de farinha refinada cheio de bromato de potássio para ficar fofinho. E, assim, aumentou o consumo de sal, de açúcar, de refinados e de aditivos químicos, aumentando o lucro das indústrias alimentícias e de embalagens, mas também a quantidade de resíduos não orgânicos. A saúde da população ficou mais fragilizada com aumento de doenças como câncer, alergias, hipertensão, diabetes, obesidade, dentre outras, o que fez aumentar o consumo de medicamentos, para a satisfação da indústria farmacêutica.

Quando o mundo se deparou com o Covid-19, os profissionais da saúde foram quase unânimes na tese de que doenças pré-existentes são fatores de risco para o agravamento da situação do paciente com o vírus. Nos EUA, as pessoas com comorbidades representaram 78% das internações em UTI e 71% não em UTI. Por outro lado, 73% dos pacientes com Covid-19 que não foram hospitalizados não apresentavam tais doenças. O diabetes mellitus, as doenças respiratórias crônicas e cardiovasculares respondem por cerca de 30% destas doenças[3]. Vamos lembrar que a alimentação industrializada é responsável por várias doenças acima citadas e as respiratórias crônicas se agravam com a poluição do ar. Assim, o modelo de civilização industrializada acaba por ser um agravante da própria pandemia, cuja origem do vírus ainda está sob investigação.

A forma de transmissão do Covid-19, porém, já é conhecida e todos estão sujeitos a contraí-lo, mas ter a “sorte” de não pegar a doença não é aleatória, mas produto da dupla exclusão: social, pois a má distribuição de renda faz com que parte da população necessite de obter uma renda diária, dado que são trabalhadores informais, ou porque moram em domicílios em que há muitos familiares para poucos cômodos, logo, não podem fazer o isolamento. Ambiental, pois são as populações mais carentes que moram em lugares mais insalubres e, muitas vezes, nem possuem água potável — evidentemente, a exclusão ambiental também é resultado da falta de política pública. Para esses que não podem se preparar para ter “sorte”, pouca coisa mudou em termos de hábitos, provavelmente, os de higiene foram intensificados, mas o padrão de consumo continua o mesmo.

Para aqueles que puderam ter “sorte” de reduzir as possibilidades de pegar o vírus, novos hábitos foram constatados: maior uso da internet para leitura de livros online, uso de plataformas de vídeos, lives e jogos (games), aplicativos (apps) de música, filmes, culinária e de atividade física, cursos à distância utilizando plataformas de e-learning; e-commerce, com vendas de produtos diversos, sobretudo de produtos de prevenção ao Covid-19 e remédios; pedidos de delivery de comidas e home office com uso de plataformas de web meeting[4]. Pela quantidade de palavras de origem inglesa, percebe-se que o padrão de consumo é também extensivo à cultura, nesse caso, à linguagem.

Esses novos hábitos e outros mais que podemos constatar em nosso dia-a-dia e no de pessoas próximas, não parecem revelar mudanças nos atuais padrões de consumo, que geram impactos negativos no meio ambiente e na saúde. Tudo parece ser mais do mesmo, sendo que a mudança ocorreu na maneira de comercialização e veiculação dos produtos, sem os espaços físicos de consumo de bens e serviços. Mas será que nada ficou de lição nos tempos de #FIQUEEMCASA?

Podemos vislumbrar alguns aprendizados. Os movimentos de solidariedade cresceram, muitas pessoas perceberam que consomem muito mais do que precisam e que o padrão alimentar pode ser melhorado, cozinhando em casa, comendo alimentos mais saudáveis e gastando menos. Os circuitos curtos de comercialização, ou circuitos de proximidade[5], passaram a ser utilizados com mais frequência, ajudando os produtores familiares e orgânicos a se inserirem no mercado, com venda direta ao consumidor. Além de preços mais acessíveis, pois tiram o intermediário do circuito de comercialização, são estabelecidos laços de confiança, dado que os consumidores ficam cientes do impacto social e ambiental dos alimentos consumidos e os produtores ficam com uma renda mais elevada e garantida. Os micro e pequenos empresários estão reinventando seus negócios. Isso propicia a inovação de gestão e comercialização de produtos e serviços, e incentiva a economia local.

Os padrões de consumo estão estritamente vinculados à cultura da população, o que parece que a pandemia do Covid-19 não foi capaz de alterar. Mas, mudanças estruturais, como da cultura, andam a passos lentos, principalmente quando se trata de padrões adotados pela sociedade que estão enraizados há várias décadas. Foi aberta, portanto, uma janela de oportunidade para políticas públicas que incentivem os circuitos curtos de comercialização, com os consequentes benefícios de alimentos menos contaminados por agrotóxicos e outros aditivos químicos, incentivando os produtores locais, a identidade cultural, a segurança alimentar e nutricional.

Reinventar estilos de vida ambientalmente e socialmente mais saudáveis é o início de uma marcha para nos prepararmos para as próximas possíveis pandemias e para uma ameaça em curso que, apesar dos inúmeros alertas, continua invisível para a maioria da população: as mudanças climáticas, que impõem a mitigação de suas causas e a adaptação aos eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, podendo gerar escassez de alimentos, deslocando populações que moram em áreas afetadas e fragilizando a estabilidade dos ecossistemas.

[1] FURTADO, C. O Mito do Desenvolvimento Econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

[2] YOUNG, C.E.F.; LUSTOSA, M.C.J.. A questão ambiental no esquema centro-periferia. Economia, Niterói-RJ, v. 4, n. 2, p. 201–221, 2003.

[3] ABRAN — Associação Brasileira de Nutrologia. Prevalência de comorbidades em pacientes com Covid-19 nos EUA. 2020. Disponível em: <https://abran.org.br/2020/04/28/prevalencia-de-comorbidades-em-pacientes-com-covid-19-nos-eua/>. Aceso em: 2 jun. 2020.

[4] Lenhard, P. (coord.). O legado da quarentena para o consumo. BTG Pactual-Decode, 2020. Disponível em: <http://mmimg.meioemensagem.com.br/EMK/2020-05-28/O-Legado-da-Quarentena-para-o-Consumo.pdf>. Aceso em: 2 jun. 2020.

[5] SIMABUKU, J. Circuitos curtos de comercialização beneficiam produtores e consumidores. EcoDebate. 2014. Disponível em:< https://www.ecodebate.com.br/2014/12/01/circuitos-curtos-de-comercializacao-beneficiam-produtores-e-consumidores/>. Aceso em: 3 jun. 2020.

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Cecilia Lustosa
GEMA IE/UFRJ

Pesquisadora do GEMA-IE/UFRJ e RedeSist-IE/UFRJ. Professora do Profinit/UFRJ. Membro da diretoria executiva Sociedade Brasileira de Economia Ecológica — EcoEco