O desastre nada natural da Covid-19

Lucas Costa
GEMA IE/UFRJ
Published in
4 min readApr 20, 2020

Nesse momento de comoção mundial pela pandemia causada pela Covid-19, a ciência vislumbra seu protagonismo como poucas vezes se viu, inclusive nos meios de comunicação mainstream — apesar do senso comum e das fake news ainda ocuparem alguns corações e mentes. Além do acesso à informação e reflexão que os cidadãos médios estão entrando em contato, esse momento mostra como as mais diversas áreas da ciência, como as da saúde, as exatas e as sociais são relevantes para entender o contexto em sua totalidade.

No caso das ciências ambientais e economia do meio ambiente, um dos temas mais relevantes ultimamente tem sido o estudo das causas e consequências dos desastres naturais. Ao contrário do que muitas vezes se pensa e do que o termo pode sugerir, desastres naturais não devem ser entendidos como fenômenos estritamente naturais. Na verdade, eles são caracterizados pela coexistência de duas condições simultâneas: a ocorrência de um evento climático extremo e da vulnerabilidade socioeconômica de uma comunidade — daí a motivação para o título, inspirado pelo artigo de nome semelhante “Not so Natural”, de André Albuquerque.

Eventos extremos, apesar de existentes desde sempre, são cada vez mais frequentes e severos, como resultado das mudanças climáticas e do nosso modo de vida e produção. Por outro lado, a manutenção ou o crescimento da vulnerabilidade das comunidades brasileiras e do mundo é fator determinante para que a maior frequência de eventos climáticos extremos resulte em mais desastres.

Foto: Felipe Werneck/Ibama

Portanto, ao estudar desastres naturais, é importante reconhecer e ser ativo no combate simultâneo das mudanças climáticas e das desigualdades e vulnerabilidades sociais. Mitigar os efeitos de eventos climáticos extremos requer compreender como o déficit de políticas públicas, a falta de infraestrutura, a injustiça ambiental e a vulnerabilidade socioeconômica agem como vetores da propagação de desastres naturais e seus efeitos perversos — como o agravamento da desigualdade e de problemas sociais.

Com um breve esforço de reflexão, parece claro como a atual pandemia causada pela Covid-19 pode ser entendida como um desastre natural: um evento natural extremo, tal como a propagação do vírus, acomete algumas pessoas de forma mais grave, levando ao óbito ou à necessidade de tratamento intensivo, ao mesmo tempo que atinge outras pessoas indiretamente, impedindo-as de trabalhar ou de ter acesso à bens e serviços básicos. Assim como um desastre natural, como as tempestades e as secas que acometem o Brasil todo ano, a Covid-19 impacta e impactará de forma distinta quem tem acesso à saúde, moradia de qualidade, saneamento básico.

Tanto a causa quanto muitos efeitos do Covid-19 de fato têm suas origens em um fenômeno exógeno de causa biológica — mas que nem por isso são tão inesperados. Porém, dentro de contextos de vulnerabilidade social e econômica conhecidos e perpetuados em boa parte do mundo, os efeitos acabam se revelando muito mais perversos e difíceis de serem contornados.

Como convencer trabalhadores a ficarem em isolamento quando não há proteção trabalhista? Como convencer o cidadão a procurar assistência médica e realizar exames quando há déficit de cobertura hospitalar e de testes clínicos? Ou pior, quando ir ao médico significa contrair dívidas altíssimas — como é para grande parte dos cidadãos estadunidenses?

Além de questões diretamente relacionadas com o tratamento da pandemia, como a disponibilidade de saúde e saneamento de qualidade e o incentivo à ciência, outros gargalos de desenvolvimento socioeconômico se manifestam de forma oposta à superação dessa crise. Problemas relacionados à moradia e ao transporte urbano, por exemplo, são velhos conhecidos e se acumulam nessa pilha de vetores que dificultam a implementação do lockdown e o impedimento aglomerações.

Apesar da negligência e da falta de senso comunitário de muitos cidadãos, muitos outros são vítimas desses gargalos socioeconômicos. No auge do privilégio de muitos que mantém relativamente seu padrão de vida, com emprego e moradia de qualidade, não se pode ignorar que a dificuldade de conter a doença, convencendo as pessoas a ficar em casa e longe das outras, tem origem no déficit de políticas públicas que alcancem plenamente a sociedade.

Questões de natureza social e econômica que muitos governantes acabam tratando como menos relevantes acabam sendo vetores que acentuam os efeitos de eventos como esse. Nesse caso, seguir as recomendações científicas de proteção socioeconômica não são o máximo a ser feito. Não se deve enxergar a situação como se o máximo esforço no presente fosse o suficiente para reparar os erros do passado — ainda mais quando o esforço presente tem estado aquém do máximo que poderia ser feito. Se a pandemia é um evento de ordem natural e “imprevisível”, os seus efeitos são resultados de contextos muito bem conhecidos e perpetuados.

Se por um lado muito se errou no passado, no presente a regra deve ser mitigar os danos para que, no mínimo, se tire lições para o futuro. O planeta Terra não pode ser refém de regras criadas pelos próprios seres humanos, como se não fosse possível criar melhores condições sociais e econômicas, reduzindo as vulnerabilidades extremas muito conhecidas pela maioria de nós.

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Lucas Costa
GEMA IE/UFRJ

Mestrando em economia e pesquisador de economia do meio ambiente no GEMA/UFRJ