O Novo Velho Normal da Mobilidade Urbana

Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
GEMA IE/UFRJ
Published in
7 min readMay 16, 2020
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O sistema de ônibus do Rio de Janeiro e de outras grandes cidades do Brasil passa por grave crise financeira, desde período anterior ao Covid-19. A principal razão para isso é a redução na demanda por transporte público ao longo das últimas décadas. Essa redução ocorreu, dentre outros motivos, pela política nacional de incentivo à utilização do automóvel, que modificou também o perfil do usuário de ônibus, cada vez mais direcionado à população de baixa renda e moradores de periferias.

No momento atual, com a pandemia do coronavírus, o problema se agrava. Afinal, com a realização de quarentenas, a demanda pelo uso de transporte público diminui ainda mais. Estima-se que a demanda caiu em cerca de 87% no Rio de Janeiro desde 16 de março de 2020 [1]. Por isso, já estão sendo discutidos ajustes de equilíbrio econômico-financeiro de diversos contratos.

Mas, se diminuiu o número de usuários de ônibus, não deveríamos ter menos transportes lotados? Dentro desse cenário (queda de demanda estrutural de usuários de ônibus seguida de uma pandemia), como continuamos com transportes públicos lotados?

Para responder essas perguntas, podemos analisar uma situação hipotética. Vamos considerar que os usuários pagam uma tarifa única por viagem e que os ônibus possuem 46 assentos (com lotação máxima permitida de 70 passageiros). Nesse exemplo, dois ônibus possuem 20 pontos em seu percurso, mas há uma diferença no fluxo de usuários: no primeiro veículo (Linha 1), entram e saem 10 passageiros em cada ponto; no segundo (Linha 2) entram 80 pessoas no primeiro ponto e todos os usuários só saem na última estação. Nesse caso, fica claro que a Linha 1 tem maior receita e, com o fluxo de passageiros, não fica superlotada, ao contrário da Linha 2.

Nesse sentido, devemos buscar compreender mais problemas do Rio de Janeiro (e de diversas outras metrópoles, sobretudo na América Latina) que tornam deficitário o sistema de transporte público local, seja em termos financeiros para os concessionários ou em relação ao serviço oferecido para a população.

Com a mudança do perfil do usuário de ônibus, cresceu proporcionalmente o número de usuários moradores de periferias, que precisam se deslocar para seus trabalhos todos os dias. A maior parte deles trabalha em centros urbanos, bastante distantes de suas residências. Como a distância média entre a origem e o destino padrão do usuário de ônibus aumentou, o custo para as operadoras de ônibus por quilômetro também subiu; e o usuário sofre mais com o tempo perdido em deslocamento e todos os problemas associados.

A diferença entre os perfis de renda da população e a qualidade da mobilidade urbana ofertada pelo serviço público é um problema notório. Em resumo, quanto menor a renda de um indivíduo, maior o tempo perdido em trânsito. A exceção ocorre apenas para grupos de rendas muito baixas, pois são indivíduos que, geralmente, não possuem condições financeiras para sequer sair do bairro onde vivem. No entanto, em média, pessoas com maior renda realizam um número maior de viagens por dia. Por exemplo, o tempo de ir ao trabalho para um habitante de uma periferia pode ser o tempo de um habitante de uma área central ir ao trabalho, fazer compras e buscar os filhos na escola.

Assim, o transporte é mais uma dimensão das desigualdades existentes na vida urbana: o cidadão com menos renda perde mais tempo em trânsito, realiza menos atividades no período, tem condições de mobilidade piores (com problemas como ônibus lotados) e paga, em termos proporcionais à sua renda, mais que os outros [2]. O gráfico a seguir mostra o tempo de deslocamento por perfil de renda no Brasil.

Tempo de deslocamento por decil de renda no Brasil
Pereira e Schwannen, 2009. https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=16966

A oferta de emprego se concentra em áreas com maior oferta de bens e serviços, enquanto a expansão urbana leva as pessoas a viverem cada vez mais longe, em função da disponibilidade e do preço da terra (o preço é menor em áreas não ocupadas e/ou sem infraestrutura). A demanda imediata dos indivíduos, decorrente das necessidades latentes, é a oferta de transporte para onde precisam trabalhar (ou seja, da periferia para o centro). Quando esse foco se torna prioridade política (o que é comum), se geram mais incentivos para o aumento da concentração de empregos em áreas centrais e para a expansão urbana em áreas periféricas. Ou seja, a inércia com relação ao funcionamento do transporte público leva à piora dos problemas de ineficiência e desigualdade já existentes.

A expansão urbana e o aumento longitudinal do sistema de transportes (ao invés de uma estrutura de redes) também são um problema ambiental. Afinal, maiores distâncias percorridas significam maiores gastos em combustíveis. Assim, podemos dizer que o problema da mobilidade urbana é, de maneira integrada, ambiental, econômico e social. A questão da expansão urbana também é prejudicial ao estado na oferta de infraestruturas essenciais para seus habitantes. Custos para oferecer água e esgoto, além de artigos importantes para o entorno dos domicílios, como pavimentação e arborização, ficam mais caros, em função de perdas em rendimentos de escala.

Outra questão ligada aos problemas expostos é a violência. Por um lado, a expansão urbana leva ao crescimento da desigualdade social e à maior dificuldade de vigilância (seja do estado ou da sociedade civil) favorecendo a ocorrência de atos ilícitos. Por outro, a expansão urbana que vivemos há décadas foi um dos fatores para que diversas áreas sejam, atualmente, dominadas por grupos clandestinos, o que inviabiliza (ou dificulta bastante) a oferta de bens e serviços e ações do poder público nesses locais.

Ou seja, uma política de sistemas em linhas de transporte, ao invés de redes, gera inúmeros problemas para a população e para a administração local, como: prejuízos para as empresas de ônibus, transporte público lotado, maior perda de tempo em deslocamentos (sobretudo para a população de baixa renda), aumento do consumo de combustível, expansão urbana, aumento dos custos para a oferta de infraestruturas essenciais e aumento da violência.

Para romper esse ciclo vicioso, é preciso uma política integrada entre questões de mobilidade, econômicas, ambientais e urbanas. O objetivo deve ser tornar a cidade mais compacta, com ofertas de bens e serviços convivendo com habitações ao longo de todo o espaço. Para isso, as rotas de transporte devem ser pensadas para conectar áreas com potencial para se tornarem novos centros urbanos, com integração entre habitação e oferta de emprego. Pode-se criar diferenças tarifárias de acordo com as distâncias percorridas (incentivando viagens casa-trabalho menores), desde que se crie mecanismos para não prejudicar (ainda mais) os mais pobres. Políticas econômicas, como moedas sociais por área, também podem dinamizar regiões estratégicas. Evitar o espraiamento urbano pode ser feito através de políticas habitacionais que privilegiem áreas centrais, além de controlar a ocupação de áreas de risco e buscar oferecer serviços essenciais em áreas já ocupadas com potencial de adensamento [3].

Com a dinâmica anteriormente comum das cidades, era muito complexo colocar tudo isso em prática. Seria mais difícil implementar tantas mudanças com o número de pessoas se deslocando diariamente de casa para o trabalho até o mês de fevereiro de 2020. Interromper o funcionamento de linhas de transporte público possui elevado custo social e econômico, por isso as transições têm que ser planejadas e espaçadas no tempo. Porém, com o avanço da Covid-19, vivemos muitos problemas e mudanças, incluindo redução significativa do uso da estrutura de mobilidade das cidades.

Em diversas dimensões que afetam nossas vidas, temos que nos preparar para o período pós Covid, considerando que haverá um período de transição, até se estabelecer um “novo normal”, diferente do que estávamos acostumados. Com a mobilidade urbana é igual. Espera-se que a demanda por transporte público se reduza em termos estruturais, pois o home office será cada vez mais comum e o vírus continuará circulando por um tempo. Sem mudanças de estratégia, a demanda por transporte público vai continuar reduzindo e o tempo de viagem médio dos passageiros vai continuar aumentando. Nesse caso, dificilmente a qualidade do serviço de transportes públicos poderia melhorar, e a sobrevivência de empresas do ramo passaria a depender (ainda mais) de subsídios estatais.

No entanto, esse momento não deixa de ser uma oportunidade para rever as rotas de transporte existentes e buscar, em um próximo momento, a criação de novos centros de bens e serviços em áreas atualmente periféricas. Mesmo com muitos funcionários públicos deslocados para soluções emergenciais contra o coronavírus, ainda existe gente planejando o longo prazo. Os benefícios de políticas urbanas e de mobilidade seriam diversos e alcançariam várias dimensões que impactam a qualidade de vida de habitantes das grandes cidades. Os benefícios seriam vistos em termos de eficiência econômica, de distribuição de oportunidades e renda, para o meio ambiente e para a oferta de infraestrutura urbana. Porém, os incentivos de curto prazo para realizar as ações necessárias ainda parecem ser poucos.

[1] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/16/com-isolamento-social-rio-mostra-queda-de-ate-87percent-em-transporte-publico.ghtml

[2] Exemplos de artigos que mostram esse problema:

  1. https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=16966;
  2. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-98482015000300366&lng=pt&tlng=pt
  3. https://www.revistaaber.org.br/rberu/article/view/185
  4. https://www.scielo.br/pdf/rec/v19n3/1415-9848-rec-19-03-00403.pdf

[3] Um site com exemplos de boas práticas de políticas de mobilidade (incluindo políticas emergenciais para a covid-19) é nacto.org.

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Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
GEMA IE/UFRJ

Textos curtos para (tentar) elevar o nível da discussão em uma conversa de bar.