O que desejamos? Princípios para uma transição socioambiental sustentável pós-pandemia

João Felippe Cury M. Mathias
GEMA IE/UFRJ
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10 min readJun 8, 2020

“Não queremos voltar para o normal, porque o normal que tínhamos era justamente o problema.” (Grafite num metrô de Hong Kong, 2020)

A pandemia de COVID-19 trouxe à tona problemas de natureza multidimensionais. Os mais visíveis e imediatos são os de natureza econômica, que afetam o mundo do trabalho, as decisões empresariais, o pacto federativo, entre outras dimensões. Mas somam-se a esses problemas de natureza social e ambiental, condicionados e catalisados pelo problema da saúde pública em curso.

A unicidade da crise econômica causada pela pandemia tem a ver com seu caráter peculiar: é ao mesmo tempo uma crise associada simultaneamente a choques de oferta e demanda. Conforme divulgação dos dados referentes ao PIB do primeiro trimestre de 2020 nos EUA e no Brasil nota-se um forte impacto produtivo na ótica da produção (oferta de bens e serviços)[1] e na ótica demanda, particularmente o consumo das famílias.

Um cenário drástico ocorre — ensinam os manuais de macroeconomia básica — quando há um choque de oferta, que acaba por alterar as condições estruturais (curto e longo prazo) levando a uma situação de estagflação[2]. No entanto, a crise atual não tem a ver com um choque exógeno típico (petróleo, por exemplo) que altera as condições de custo e tem consequências inflacionárias. Nesse caso da pandemia a depressão do consumo, causada pela compressão da renda do trabalho formal e informal tem apontado para tendências deflacionárias. É um choque simultâneo de oferta e demanda cujas causas são de origem sanitária e de saúde pública, que exigiram políticas de lockdown e distanciamento social para seu enfrentamento[3].

Tomando como pressuposto a resposta ética para lidar com os efeitos imediatos da pandemia — “façam o que precisa ser feito” uma questão salta aos olhos. Para lidar com os problemas imediatos (garantia de emprego, falta de emprego e renda, redução de arrecadação, etc.) muitas ações de políticas macroeconômicas são postas em curso. Isso é o que nos cursos de ciência econômica chama-se de “macroeconomia de curto prazo”. É um artifício para lidar com os problemas imediatos da atividade econômica, geralmente associados à questão da demanda. Os impactos econômicos são rápidos e oferecem um rápido alívio para as partes envolvidas.

Dado a situação inédita e não antecipada pela Ciência Econômica, cabem algumas provocações que vão além das ações típicas para lidar com os efeitos de curto prazo por meio do uso de políticas econômicas não convencionais. Sobre o curto prazo não há muito mais o que fazer, senão “fazer o que for necessário”, conforme indicam os policy makers de todos os países que estão lidando com seriedade e maturidade em relação aos impactos da crise[4]. Com esse imperativo ético direcionado aos problemas de curto prazo (durante a pandemia) pode-se refletir sobre como se aliam as políticas econômicas de curto prazo com as políticas públicas de médio e longo prazo (após a pandemia). De um lado, as políticas de curto prazo garantem padrões mínimos de segurança do ponto de vista da demanda agregada (garantia de renda básica, por exemplo), de um lado, e do acesso ao crédito produtivo, de outro.

Não é difícil concluir que com a partir dos planos de retomada após o controle da pandemia e afrouxamento das condições de distanciamento social muitas atividades econômicas voltarão ao “normal”. Um rol de atividades, particularmente os serviços (turismo, comércio, entretenimento, serviços prestados a família, etc.) voltarão sob bases já conhecidas. Mas, se de um lado, algumas atividades voltarão ao normal, outras não, seja porque se tornaram obsoletas ou desnecessárias com o modus vivendi forçado pelas quarentenas, seja porque, como destacado na epígrafe deste texto, potencializavam aquilo que era visto como problema.

Não se trata de um problema específico, mas de natureza multidimensional. Social, porque envolve a existência crônica e crescente de desigualdades de oportunidade, de resultados e de tratamento na sociedade. Ambiental, porque envolve elementos que afetam a vida cotidiana em nível local (mobilidade, poluição, etc.) e global (desmatamento, emissões de gases, etc.). E, como destacado, econômico, que potencializa os demais anteriores, num cenário iminente de colapso produtivo. O grafite em questão aponta para a reflexão do “novo normal” que queremos. Se há algo foi (e está sendo) exigido no período de pandemia é ampliação do senso de coletividade.

O que queremos, então? Que “novo normal”? Não há indícios de que haverá uma ruptura drástica com os padrões de acumulação anteriores, mas as mudanças podem se dar na margem, ou dito de outra forma, podem se dar de forma “incremental”. Nesse sentido cabe a percepção de que um “novo normal” pode emergir de uma transição (lenta, gradual, porém estrutural). Nesse movimento fica claro que os problemas postos serão condicionados por um novo protagonista: a indústria da saúde[5].

A partir de agora, qualquer reflexão séria em termos de desenvolvimento econômico exigirá a consideração dos efeitos sistêmicos e multidimensionais de uma pandemia e quais os desenhos de políticas necessárias para evita-la e controla-la num menor período de tempo possível. Isso naturalmente vai envolver uma série de ações que já são conhecidas. Além disso, vai envolver o entendimento de quais são os princípios norteadores para a concepção de um modelo de desenvolvimento que proporcione um cenário para ao mesmo tempo evitar novas pandemias e tornar o enfrentamento de uma nova pandemia mais eficaz.

Um caminho para dar luz aos princípios vem de reflexões teórico-analíticas referentes à transição tecnológica e energética e das pactuações multilaterais sobre os problemas postos neste trabalho. Em linhas gerais, a linha central dessa reflexão é apontar as políticas em reação aos efeitos da pandemia sejam induzidas pelo setor público (government-led) com a adoção de supply side policies centradas na noção da sustentabilidade socioambiental. Supply side policies buscam o aperfeiçoamento do processo produtivo por meio do aumento da produtividade e afetam a inovação e o desenvolvimento de tecnologias ao induzirem atividades de P&D e projetos-pilotos e de demonstração. São traduzidas, via de regra, como políticas que afetam a infraestrutura de ciência e tecnologia (C&T) e são fortemente associadas a empréstimos em condições favoráveis e incentivos fiscais.

As referências de desenvolvimento econômico dessa abordagem preliminar que chamamos de “transição socioambiental” pós-pandemia são fortemente centradas nas metas associadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, conhecida como Agenda 2030. As temáticas da pobreza, fome, doença, desigualdade de gênero e degradação ambiental, tiveram suas metas e objetivos incorporados nos acordos internacionais, o que foi um grande avanço em favor de uma proposta mundial de desenvolvimento (Sachs, 2012). A interface multiforme com os temas referentes ao meio ambiente pode ser vista em todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável[6]. Uma transição socioambiental naturalmente inclui a transição tecnológica e energética (ODS 7 e ODS 9), bem como o combate às muitas desigualdades de oportunidade, tratamento e de resultados (ODS 2, ODS 6, ODS 11 e ODS 13).

Tal diretriz como visão de desenvolvimento deve se associar, portanto, às políticas públicas desenhadas para lidar com os problemas econômicos multidimensionais pós-pandemia (programas de reconstrução). Há exemplos históricos de grandes programas de reconstrução. No Brasil, o mais estudado em termos históricos é o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), para lidar com o choque do petróleo em 1973. Mais recentemente, tem-se estudado os impactos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). No caso dos EUA, o New Deal tem grande apelo histórico. No entanto, mais recentemente, para lidar com os efeitos da crise financeira de 2008, os EUA anunciaram seu maior plano histórico de reconstrução, conhecido como Recovery Act.

Esse plano tem elementos muito interessantes como princípios de ação norteadores de um plano de enfrentamento de crise, uma vez que sinaliza supply side policies, particularmente centradas nos valores associados à sustentabilidade. O “American Recovery and Reinvestment Act of 2009” teve como objetivo geral a recuperação econômica com o foco de medidas de estímulos ao investimento em infraestrutura nos Estados Unidos. Trata-se de um projeto de estímulo econômico criado para ajudar a economia dos Estados Unidos se recuperar da crise econômica que começou no final de 2007. Em síntese, o Recovery Act foi desenvolvido (United States, 2009):

• Para preservar e criar postos de trabalho e promover a recuperação econômica;

• Para ajudar os setores mais afetados pela recessão;

• Para fornecer os investimentos necessários para aumentar a eficiência econômica, estimulando os avanços tecnológicos da ciência e da saúde;

• Para investir em transporte, proteção ambiental e outras infraestruturas que proporcionam benefícios econômicos no longo prazo;

• Para estabilizar os orçamentos de governos estaduais e locais, a fim de minimizar e evitar reduções nos serviços essenciais e contraproducentes aumentos de impostos locais.

O Congresso dos EUA promulgou o Recovery Act em 17 de fevereiro de 2009, alocando 787 bilhões de dólares para financiar cortes de impostos e suplementos aos programas de assistência social, bem como o aumento dos gastos em educação, saúde, infraestrutura e do setor de energia[7].

Pollin (2012) destaca o viés da energia limpa previsto no Recovery Act, que incluía uma série de medidas de eficiência energética que envolvia múltiplas infraestruturas como transporte público, sistemas elétricos baseados em “smart grids”, bem como fortes investimentos em energia renovável (solar, eólica e geotérmica). A percepção não era apenas que as medidas criassem mais empregos, mas muito mais empregos que os setores tradicionais. O citado autor ressalta em seu artigo que os gastos com “investimentos verdes” (green investment) criam aproximadamente três vezes mais empregos do que os gastos em manutenção da indústria de combustíveis fósseis. A razão para isso é que os investimentos em energia limpa são mais intensivos em uso de trabalho e são muito concentrados na economia doméstica.

Em trabalho mais recente, Popp et al. (2020) investigam o impacto econômico em termos de geração de empregos a partir dos gastos públicos em investimentos verdes oriundos do Recovery Act. Os autores estimam que 17% de todos os gastos públicos do Recovery Act foram direcionados a investimentos verdes. Estimam, adicionalmente, que a cada US$ 1 milhão gasto gerou-se 15 novos empregos por conta desses investimentos, no período de 2013–2017.

Do Recovery Act podem-se reproduzir alguns bons princípios e linhas de ação e ampliá-los para a dimensão social. Mas a novidade de 2020 é a centralidade da indústria da saúde como objeto de especial direcionamento de supply side policies. Um modelo de transição socioambiental precisa, portanto, incluir a dimensão da saúde que vá muito além da igualdade de oportunidades (ponto de vista do usuário da saúde pública/ acesso a leitos/ etc./ infraestrutura de saneamento), mas sim das engrenagens que proporcionam uma resposta rápida e eficaz para lidar com os efeitos da pandemia: forte investimento em Ciência e Tecnologia para proporcionar diagnósticos (testes em massa), equipamentos (EPI) e, sobretudo, vacinas.

Naturalmente isso envolve grande coordenação e esforço do setor público e dos muitos stakeholders. Esse parece o maior desafio, que vai além da dinâmica convencional dos gastos públicos e políticas públicas, com seus múltiplos desenhos de incentivos, contratos e regulação. É certamente imperativo um pacto em torno do objeto desse plano de reconstrução. Se for para se conceber um plano desses, que seja para estabelecer novas bases, que não levem ao retorno ao antigo normal, cuja volta não parece uma boa ideia. Que façam o que precisa ser feito, mas o façam com sabedoria.

Referências

BLANCHARD, O. Macroeconomia. 2004. 3ª Edição.

CHODOROW-REICH, Gabriel et al. Does state fiscal relief during recessions increase employment? Evidence from the American Recovery and Reinvestment Act. American Economic Journal: Economic Policy, v. 4, n. 3, p. 118–45, 2012.

KLEIN, Barbara; STAAL, Klaas. Was the American Recovery and Reinvestment Act an Economic Stimulus?. International Advances in Economic Research, v. 23, n. 4, p. 395–404, 2017.

PAPANIKOLAOU, Dimitris; SCHMIDT, Lawrence. Working Remotely and the Supply-Side Impact of COVID-19. National Bureau of Economic Research, Working Paper 27330, https://www.nber.org/papers/w27330, June 2020.

POLLIN, Robert. Economic Prospects: Getting Real on Jobs and the Environment: Pipelines, Fracking, or Clean Energy?. In: New Labor Forum. Sage CA: Los Angeles, CA: SAGE Publications, 2012. p. 84–87.

POPP, David et al. The Employment Impact of Green Fiscal Push: Evidence from the American Recovery Act. National Bureau of Economic Research, Working Paper 27321, http://www.nber.org/papers/w27321. June, 2020.

SACHS, Jeffrey D. From millennium development goals to sustainable development goals. The Lancet, v. 379, n. 9832, p. 2206–2211, 2012.

UZIEL, Daniela. R. Políticas públicas e inserção no mercado de trabalho na área biomédica: uma comparação entre 2003 e 2014. Tese de doutoramento, Programa de Políticas Públicas Estado e Desenvolvimento, UFRJ, 2019.

The United States of America (USA, 2009). American Recovery and Reinvestment Act of 2009 (ARRA, 2009).

[1] No caso do Brasil o último choque de oferta foi causado pelo choque de energia elétrica em 2001. (“apagão”), afetando diretamente a capacidade de oferta do setor industrial intensivo em uso de energia.

[2] Esse é um caso bastante citado a partir das análises dos modelos macroeconômicos de equilíbrio estático de curto prazo, notadamente os modelos OA-DA. O exemplo clássico de choque de oferta é um choque do petróleo. Isso é bem documentado no capítulo 7 do manual de macroeconomia de Blanchard (2004).

[3] Alguns trabalhos começam a ser publicados sobre os efeitos econômicos da pandemia. Papanikolau e Schmidt (2020) investigam os efeitos no lado da oferta, com especial interesse em medir a capacidade de as firmas continuarem com suas operações e seus trabalhadores possam executar trabalho remoto.

[4] Por meio da adoção de políticas não convencionais (expansão fiscal e monetária) para ativar a demanda agregada.

[5] O trabalho de Uziel (2019) explora a delimitação analítica em torno da indústria da saúde à luz da Classificação Nacional de Atividades Econômicas 2.0 (CNAE/ IBGE).

[6] Alguns exemplos de destaque são: ODS 2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável; ODS 6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos; ODS7. Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia, para todos; ODS 9. Construir infraestruturas resistentes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação; ODS 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros e sustentáveis; ODS12. Assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis; ODS 13. Práticas que contribuam para a redução da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, ou que ajudem na adaptação para as mudanças climáticas que ocorrerão inexoravelmente, com especial atenção aos grupos sociais menos favorecidos.

[7] A essa altura já existem muitos estudos de avaliação de impacto do Recovery Act, com vistas a avaliar o cumprimento dos objetivos propostos no programa, em especial, os associados à preservação e criação de empregos e à promoção da recuperação econômica após a grande recessão. Veja Chodorow-Reich et al. (2012) e Klein e Staal (2017).

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