O vírus, o transporte e a cidade

Gabriel Pabst
GEMA IE/UFRJ
Published in
5 min readMay 12, 2020

Em meio a pandemia global envolvendo a disseminação e o agravamento dos efeitos provocados pelo COVID-19, coube aos entes subnacionais lidar com as mudanças provocadas por este em suas diversas políticas setoriais, particularmente a de transportes.

Integrando um setor considerado essencial, o transporte público por ônibus já experienciava dificuldades em sua gestão em escala nacional antes do surgimento do COVID-19. Estas dificuldades se revelam nos sucessivos ofícios emitidos pelos operadores de transportes aos seus órgãos reguladores indicando dificuldades na execução de seu modelo de negócios e mesmo na judicialização de aspectos de sua operação – como o clássico caso da climatização de suas frotas.

Entre os diversos fatores que explicam este fenômeno, destaca-se a queda expressiva na demanda por ônibus urbanos intramunicipais no Brasil desde os anos 90. Não por acaso, esta queda foi acompanhada por uma estabilização dos preços do barril do petróleo após os choques internacionais experienciados em 73 e 81; uma política nacional de incentivo à aquisição de veículos leves particulares movidos à gasolina e uma política também centralizada de subsídios aplicados a aquisição deste combustível.

Como resultado, houve uma transição expressiva da opção preferencial de modal da classe média, que grosso modo abandonou os ônibus urbanos por veículos particulares financiados por bancos públicos e privados e abastecidos por uma gasolina cujos custos estavam subsidiados por uma política federal. Esta transição provocou um fenômeno ainda pouco discutido pela literatura: as receitas dos operadores de ônibus municipais além de terem sido subtraídas (via choque de demanda) passaram então a ser compostas por consumidores pertencentes às classes média-baixa e baixa.

Taxa de viagens no Rio de Janeiro segundo modal e faixa de renda

Padrão municipal de demanda por tipo de modal

Os efeitos deste fenômeno são multifacetados e ainda pouco explorados. Entre eles, figura a reação cada vez mais violenta dos consumidores de serviços de transporte público a qualquer elevação ainda que discreta em seus custos – o que pôde ser constatado nas manifestações das jornadas de junho em 2013 no Rio de Janeiro sob o mote “não é pelos vinte centavos”. Representando qualquer aumento generalizado nos custos das passagens uma participação maior na renda mensal das classes econômicamente mais vulneráveis, estas têm se recusado a participar de processos de custeio de operações como a já mencionada climatização da frota e mesmo a transição para veículos baseados em tecnologias mais sustentáveis – o que faz com que os operadores não possam diluir estes custos com os usuários do sistema via repasse sobre o preço das passagens.

A partir de 16 de março de 2020 sobrepuseram-se a toda discussão desenvolvida acima os efeitos da pandemia do corona vírus sobre o sistema de ônibus urbanos na cidade do Rio de Janeiro. Ente os principais efeitos observados até o momento destaca-se a queda de expressivos 71% sobre a demanda já insuficiente dada pelo contexto estrutural do setor, conforme demonstra o gráfco abaixo:

Demanda do serviço de transporte por ônibus urbanos

Dada a média global de queda na demanda dos países observados de 67%, o caso do Rio de Janeiro não parece particularmente grave em uma primeira análise. No entanto, cumpre ter em mente nossos aspectos conjunturais: um município de elevada disparidade socioeconômica, infraestrutura médico-hospitalar distribuída heterogeneamente por seu território (cujo acesso é facilitado aos pacientes de renda mais elevada), população econômicamente vulnerável detentora dos menores índices de educação formal e condições de habitação social e irregular que favorecem a aglomeração no interior das residências da população de menor renda - sendo esta população o cosumidor preferencial dos serviços de transporte público.

Se existe uma boa notícia em meio a complexidade crescente do cenário que se apresenta, esta pode tomar forma nos índices observados de poluição do ar no município. Contrariando a tendência das projeções pré-pandemia, os índices de poluição se estabilizaram nas melhores faixas possíveis, atendendo a todos os parâmetros instituidos pela legislação nacional, conforme se pode observar abaixo:

Boletim de qualidade do ar da cidade do Rio de Janeiro

Ainda que este fenômeno careça de análises mais aprofundadas a serem desenvolvidas no futuro a respeito dos nexos de causalidade específicos (como a participação da indústria), preliminarmente se pode depreender o seguinte: a queda na atividade dos ônibus intraurbanos está intimamente associada à qualidade do ar no município. Ainda que a queda recente dos preços do barril de petróleo ofereçam uma solução atraente em um cenário pós-pandemia ao manter a opção de combustíveis em business as usual, cabe avaliar em que medida uma transição para o transporte sustentável representaria na mitigação das externalidades negativas produzidas pelo setor.

Em síntese, o cenário histórico de queda nas receitas dos operadores de ônibus urbanos com pedidos recorrentes de recuperação judicial de suas empresas, a dependência da população mais vulnerável de seus serviços de transporte e a exposição potencial desta mesma população face ao avanço do corona vírus leva a uma tempestade perfeita no setor, nos deixando com uma pergunta ainda em aberto: como conciliar o acesso à infraestrutura médico-hospitalar das populações vulneráveis com a continuidade da operação dos agentes econômicos em um modelo de desempenho sustentável que mitigue os impactos sobre a saúde da população?

Referências

[1] ABREU, Mauricio de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO. J. Zahar, 1987. Acesso em: 29 dez. 2019.

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[3] CARTIER, Ruy et al. Vulnerabilidade social e risco ambiental: uma abordagem metodológica para avaliação de injustiça ambiental. Cadernos de Saúde Pública, v. 25, n. 12, p. 2695–2704, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009001200016&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 18 out 2019.

[4] GOUVEIA N, DE FREITAS CU, MARTINS LC, MARCILIO IO. Respiratory and cardiovascular hospitalizations associated with air pollution in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica. 2006 Dec;22(12):2669-77.

[5] RIO DE JANEIRO. Monitoramento da Demanda do Sistema de Transportes e Sistema Viário da Cidade do Rio de Janeiro Durante a Pandemia da COVID-19/ CORONAVÍRUS. Disponível em: < https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMzdlMjgxMTEtZmNmZS00YTAyLWE3YTctYWU1YjI2MDg4ZTgzIiwidCI6IjhkYzFiNzM0LTEyYTYtNDNmZC1iMjdkLWE3Yzg0ZmQ0MzdkMiJ9>. Acesso em: 11 mai 2020a.

[6] ______. Plano de Mobilidade Urbana Sustentável da Cidade do Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: < https://www.rio.rj.gov.br/web/pmus>. Acesso em 20 mar 2020.

[7] ______. Boletim de Qualidade do Ar. Disponível em: <http://jeap.rio.rj.gov.br/je-metinfosmac/boletim>. Acesso em: 12 mai 2020b.

[8] ______. Perfil dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101668.

[9] SECRETARIA MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTE (SMAC). Estratégia de Adaptação às Mudanças Climáticas da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: < http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/6631312/4179912/ESTRATEGIA_PORT.pdf>. Acesso em: 20jan

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