Políticas econômicas não convencionais em tempos anormais

João Felippe Cury M. Mathias
GEMA IE/UFRJ
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10 min readMay 21, 2020

A Fernando José Cardim de Carvalho (in memoriam), nosso mentor e mestre.

“A história dá outra chance à comunidade de economistas de gerar mais conhecimento e menos ideologia, ainda que a um custo muito alto, para a sociedade que sofre os efeitos de políticas equivocadas e para a própria comunidade de economistas, que sofre com a erosão de sua imagem no interior dessa sociedade” (Carvalho, 2009, p. 101).

Alguns eventos históricos marcantes foram fundamentais para forjar aquilo que conhecemos como a Ciência Econômica moderna. A Crise de 1929 colocou em xeque o pensamento convencional (Neoclássico) vigente até os anos 1930. O fim do sistema de Bretton Woods somado a crise do petróleo e o período de estagflação contribuíram para desacreditar o Keynesianismo[1]. A grande crise financeira de 2007/8 abalou os fundamentos da política monetária que eram, até então, aparentemente sólidos e robustos.

Os eventos supracitados têm em comum o fato de romperem um longo período de normalidade econômica com a eclosão de eventos e crises não antecipadas. Isso trouxe a necessidade de, a partir da imersão naqueles contextos específicos, pensar em soluções não convencionais, não “canônicas”, ou, simplesmente, “fora da caixa” ou heterodoxas[2]. Em condições de normalidade os gestores de política econômica podem prever, com algum grau de segurança, eventos futuros. Em situações de anormalidade, não.

Como lembra Sicsú (1999) o desenrolar de um contexto macroeconômico pode seguir inúmeros caminhos e alcançar diversas situações que sob condições de normalidade são esperadas. A partir da reflexão conceitual de normalidade em Marshall e Keynes entende-se que um estado de normalidade econômica é aquele em que as decisões individuais de certos grupos de agentes correspondem a um padrão esperado. Mas quando o contexto foge dos padrões esperados? A história é prodiga em episódios de crises, pânicos e crashes (parafraseando Kindleberger). Mas eventos extremos, como uma pandemia, em tempos de globalização, potencializam seu caráter único e seus padrões não lineares e imprevisíveis.

Desde os anos 1970 emergiu um “novo consenso” dentro da macroeconomia[3], do qual se derivou uma percepção de que o avanço dessa disciplina teria sido capaz de lidar com a questão de prevenção das crises econômicas. Nesse consenso teórico a noção de normalidade e capacidade de previsão de eventos com segurança, acabou por levar a percepções triunfalistas e, até certo ponto, arrogantes. “O principal problema foi resolvido” é o título do capítulo inicial do livro de Paul Krugman, intitulado “A crise de 2008 e a economia da depressão”. O título é uma crítica direta as palavras de Robert Lucas, que em 2003, na reunião da American Economic Association, diz: “o principal problema de prevenção de depressões foi resolvido, para todos os propósitos práticos” (Krugman, 2009, p. 9). É também uma crítica ao discurso otimista de Ben Bernanke intitulado “A Grande Moderação” em que, semelhantemente a Lucas, argumentou que a política macroeconômica moderna havia resolvido o problema dos ciclos econômicos.

Sob todos os aspectos e propósitos práticos a história que se seguiu, com a crise de 2008 e a crise sem precedentes de 2020, desqualificou as certezas dos economistas que fazem parte do “mainstream”. Esta última, uma pandemia num mundo globalizado, trouxe elementos adicionais que incorporam o lado da demanda, o lado da oferta e as questões sanitárias e de saúde pública. Nesse sentido nem tudo que se refere aos modelos convencionais do debate econômico é necessariamente rico ou eficaz. O professor Fernando Cardim de Carvalho, em artigo escrito no contexto da crise de 2008, chamava a atenção para a empobrecida teoria macroeconômica que dominou o fim do século XX. Essa dura palavra fazia sentido num contexto em que se dizia vivenciar a pior crise econômica desde a de 1929. Mas poderia ser perfeitamente aplicável a esse fatídico ano de 2020. Continua, então, o professor a externar seu interesse pelo debate posto à época: “… é a discussão… a respeito das saídas imediatas da crise, como também a reflexão de como conduzir a reconstrução da economia pós-crise de modo a evitar que outro susto dessas dimensões venha a ocorrer” (Carvalho, 2009, p. 92).

O que o consenso tinha a dizer sobre políticas fiscais e monetárias em tempos de depressão claramente não deu conta para lidar com os problemas postos. E também não é capaz de lidar com os problemas derivados da pandemia de COVID-19 que assolou o mundo com um poder de devastação econômica sem precedentes. No quesito fiscal, o consenso macroeconômico se baseia numa visão intertemporal dos efeitos dos gastos públicos, considerando-os nulos em termos de efeito no produto. Tal visão se apoia na noção da existência da Hipótese da Equivalência Ricardiana, que se insere na tradição novo-clássica, sustentando que, tanto no curto como no longo prazo, a política fiscal não é capaz de estimular o consumo privado. Este resultado decorre do fato de que os indivíduos são capazes de prever que uma política fiscal expansionista hoje implica uma contração fiscal no futuro, logo não alteram seus padrões de consumo e poupança frente a este estímulo.

Já a política monetária convencional sustenta a ideia de que o objetivo desta é controlar a inflação. Tal concepção é baseada na evidência de como as taxas de juros de curto prazo afetam a economia. A Regra de Taylor tem sido peça-chave para sustentar a operação da política monetária. Nessa abordagem a política monetária opera no sentido de afetar as taxas de juros de curto prazo por meio das operações no mercado aberto. Por meio da compra e venda de títulos junto ao sistema bancário, os bancos centrais influenciam o volume de reservas bancárias mantidas no sistema. Em tempos normais as flutuações nos volumes de reservas são simplesmente derivadas e não são alvo de foco ou meta da política monetária em si, mas são um meio de se atingir as mudanças desejadas nas taxas de juros.

As coisas mudam de figura quando o contexto de normalidade se transforma num contexto de crise profunda. Nesse momento, o aprisionamento em dogmas e em soluções de políticas usadas de modo corriqueiro pode ser não apenas ineficaz, mas paralisante. Não à toa uma lição fundamental deveria ser ensinada a todos os estudantes de economia no primeiro dia de aula: “A economia é contexto-dependente”. Se isso é verdade (as evidências parecem corroborar), os contextos específicos exigem políticas que funcionem neles e não em outros.

Como já foi salientado, muitas políticas convencionais simplesmente não funcionam em períodos de anormalidade. A culpa disso não é da política em si, mas do contexto em que se inserem. Aquele que se recusa a perceber isso por uma visão dogmática da ciência econômica só prorrogará os danos causados pelas ações tardias. Uma situação inusitada que já foi amplamente revisada na literatura econômica é a armadilha da liquidez. Ela é associada a períodos de elevada incerteza e seu resultado prático é a ineficácia plena das ações do Banco Central.

Nesse sentido, o pensamento econômico dominante (“mainstream”) pode não dar respostas em determinados momentos históricos. No caso da política monetária esse grupo aglutinou um consenso de que esta não poderia ser utilizada como instrumento de estabilização econômica. Isso abre espaço para soluções que eram taxadas como heterodoxas (não convencionais). No caso da política fiscal, a sua relevância como elemento central na estabilização é retomada em termos de discurso e prática para lidar com efeitos de crises/ depressões profundas. Isso é fartamente observado como respostas às crises de 1929 e de 2008.

Já no caso da política monetária moderna, a crise de 2008 colocou em xeque aquilo em que se acreditava fielmente como elementos basilares da eficácia da política monetária e na neutralidade da moeda (não afeta as variáveis reais). Em circunstâncias e contextos em que o problema da armadilha da liquidez volta a ser um problema real, as soluções pensadas para tempos de normalidade não mais funcionam.

A armadilha da liquidez ganhou grande relevância no debate econômico a partir dos desenvolvimentos teóricos de John Maynard Keynes[4]. Em sua “Teoria da Preferência por Liquidez”, a demanda por moeda é determinada pelo motivo de transação, mas também pelos motivos de precaução e especulação, dependendo assim das expectativas dos agentes em relação ao valor futuro da taxa de juro. Keynes destacou uma situação particular na qual a preferência por liquidez se torna absoluta: os agentes confrontados com uma situação de maior incerteza procuram ativos mais seguros o que, ao anular o funcionamento do canal de transmissão da taxa de juro, retira eficácia da política monetária convencional. Numa situação de armadilha da liquidez a taxa de juro nominal está próxima ou é igual a zero, logo o custo de oportunidade de deter moeda torna-se zero pelo que os agentes econômicos tendem a aprovisionar o excesso de moeda.

A partir de 2008 fundamentos da ortodoxia associada à política monetária foram colocados à prova[5]. Como destacam Joyce et al. (2012) a profundidade da recessão devida à crise financeira de 2008 fez com que as recomendações da regra convencional de política monetária — a Regra de Taylor — apontassem para taxas nominais de juros negativas uma vez que estavam próximas de zero. Isso exigiria a consideração de outras formas de política monetária[6].

Dentre o leque de respostas de política monetária não convencional à crise de 2008 aquela que ganhou maior proeminência uma política monetária que ficou conhecida como Quantitative Easing (QE)[7]. Em linhas gerais o QE diz respeito a um conjunto de medidas de política monetária não convencionais relacionadas com alterações na estrutura e/ou dimensão do balanço dos bancos centrais bem como programas de compras massivas de ativos para introduzir liquidez em quantidades elevadas na economia, procurando facilitar o acesso ao crédito por parte dos agentes não financeiros.

O artigo de Joyce et al. (2012) aborda o impacto do QE e outras políticas monetárias não convencionais seguidas pelos bancos centrais para lidar com a crise financeira iniciada em 2007 uma vez que o resultado das políticas monetárias convencionais foi ineficaz. Segundo os autores, as formas mais comuns de política monetária não convencionais envolvem uma expansão dos balanços dos bancos centrais com o objetivo de influenciar as taxas de juros e impactar a oferta de crédito, provendo liquidez. Entre 2008 e 2015 o Federal Reserve, banco central dos EUA, executou três rodadas de QE, comprando alguns trilhões de dólares de títulos governamentais e títulos imobiliários (lastreados em hipotecas). Até o ano de 2015 o balanço do FED foi inchado em US$ 4,5 trilhões. Os programas de QE foram considerados exitoso, com a taxa de desemprego caindo acentuadamente e o PNB sendo recuperado[8].

O momento crítico e único causado pela pandemia de COVID-19 vai exigir uma série de práticas não convencionais e não previstas para lidar com a recessão mundial e a profunda depressão que se avizinha. É possível que o contexto exija um esforço coordenado entre as principais economias do mundo. Mas vai exigir sobretudo dos gestores de política econômica de cada país soluções novas para o cenário novo e anormal posto. Se seguirem pensando com a cabeça de tempos de normalidade, os resultados serão paralisantes e catastróficos. Se pensarem em alternativas que coloquem em xeque seus dogmas e convicções mais arraigadas e oferecerem um a resposta para o caráter único dos efeitos dessa pandemia, talvez a recuperação venha mais rápido. Se as crises anteriores revelavam problemas graves do lado da demanda, a crise em curso aponta problemas graves do lado da demanda e da oferta, além de da imperativa consideração do caráter central e da integração da saúde pública na solução que vier a ser desenhada.

O momento, portanto, oferecerá uma chance histórica de gerar mais conhecimento e menos ideologia, podendo redefinir como a sociedade vê a imagem dos economistas. Esse esforço exigirá uma visão não convencional num período único e jamais vivido por qualquer economista moderno.

Referências

CARVALHO, Fernando Cardim de. O retorno de Keynes. Novos estudos CEBRAP, n. 83, p. 91–101, 2009.

JOYCE, Michael et al. Quantitative easing and unconventional monetary policy–an introduction. The Economic Journal, v. 122, n. 564, p. F271-F288, 2012.

KRUGMAN, Paul R. A crise de 2008 e a economia da depressão. Elsevier, 2009.

PINTO, João Vieira. Liquidity Trap and the Zero Lower Bound: Can Quantitative Easing be the answer to Euro Zone?. 2014.

SICSÚ, João. O conceito de normalidade econômica marshalliano e o discricionarismo monetário de Keynes. Nova Economia, v. 9, n. 1, 1999.

WOODFORD, Michael. Optimal interest-rate smoothing. The Review of Economic Studies, v. 70, n. 4, p. 861–886, 2003.

[1] Os desdobramentos observados a partir da década de 1970 colocaram em xeque o Keynesianismo na medida em que a conjuntura internacional era redefinida e críticas a esta abordagem surgiam no campo teórico. O rompimento do acordo de Bretton Woods, a crescente inflação e a volta do desemprego (estagflação) são alguns dos eventos que contribuíram para a contestação da abordagem Keynesiana.

[2] Como destaca Krugman (2009, p. 21, grifo nosso): “Hoje, praticamente todo o espectro de economistas, de Milton Friedman até a extremidade esquerda, concorda que a Grande Depressão foi provocada pelo colapso da demanda efetiva e que o Federal Reserve deveria ter combatido a desaceleração com grandes injeções de dinheiro. Mas, na época, essa não era, de modo algum, a sabedoria convencional”.

[3] Os economistas que não aderem a esse “consenso” são chamados de heterodoxos. Sobre este tema específico convém a leitura de Dequech (2007).

[4] Como lembra Pinto (2014) os diagramas do modelo IS-LM tem sido um meio de divulgação por excelência da possibilidade de tal situação. O modelo IS-LM é apresentado em todos os manuais de Macroeconomia básica em qualquer parte do mundo.

[5] Os fundamentos teóricos da política monetária convencional são tratados exaustivamente em Woodford (2003).

[6] Lembrando que instrumento mais comum de política monetária são as operações no “open market” com a compra e venda de títulos. Os outros dois instrumentos usados são as operações de redesconto e os compulsórios bancários. Há, ainda, instrumentos de cunho regulatório.

[7] A expressão Quantitative Easing foi introduzida para sinalizar um sinal de mudança no foco em relação às metas de variáveis quantitativas. O primeiro experimento prático dessa política ocorreu no Japão, que por um período prolongado conviveu com taxas de juros próximas de zero, conforme destacam Joyce et al. (2012).

[8] Veja em: https://www.cnbc.com/2017/11/24/the-fed-launched-qe-nine-years-ago--these-four-charts-show-its-impact.html. A taxa de desemprego que chegou a 10% em dezembro de 2009 caiu para 3,9% em dezembro de 2018. A queda do PIB que superou 8% do PIB no último trimestre de 2008 foi substituída por um longo período de crescimento consistente próximo a 3% durante vários trimestres.

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