Karl Leonard: a felicidade se perde na tradução

Bruna Talarico
Gente Extraordinária
6 min readJan 10, 2016

Rotorua, Nova Zelândia. Dezembro de 2015.

Tā moko, a tatuagem Maori: defesa das tradições

De pé em uma área reservada de Te Puia, o maior centro de cultura Maori da Nova Zelândia, na cidade de Rotorua, Karl Rangikawhiti Leonard transfigura seu rosto em ódio e se põe em postura de ataque. Os pés bem afastados, as pernas semi-flexionadas e a coluna ereta garantem uma base firme, e quando a palma da mão bate e se fecha sobre o bíceps oposto em estalos ritmados, fica claro que não se trata de um amador. “É assim que se faz, para que seu inimigo não te derrube, para que ele sinta o seu golpe”, explica. “Você vê o que eles chamam de danças de guerra, e pode parecer muito maneiro e assustador, mas a maioria é meio ridícula. Mesmo quando os caras estão todos vestidos como guerreiros, todos pintados e tatuados, é patético. Os All Blacks, a seleção de rugby… pff. Aqueles caras não sabem o que estão fazendo”, zomba Leonard. Ele tem um padrão de exigência elevado quando o assunto é cultura Maori. Já representou o país com suas performances — a dança de guerra, ou haka, em Maori, incluída — em eventos na Austrália, Estados Unidos, Itália, Singapura, China, Japão e Alemanha. Mas foi nas artes em tecidos, criando roupas tradicionais Maori e tecendo painéis com fibras naturais e penas, que ele ganhou reconhecimento e respeito no métier. Ainda hoje, figura entre os artistas mais aclamados de toda a Aotearoa (nome Maori da NZ).

Os All Blacks, como é conhecida a seleção neozelandesa de rugby, realizam seu ritual de guerra: para Leonard, uma pálida versão do verdadeiro haka Maori

Mas Leonard deixou tudo isso de lado. Há dois anos, abriu mão de uma rotina dedicada exclusivamente à criatividade para assumir o cargo de gerente de operações na mesma escola onde foi aluno e professor de artes diversas, das performáticas às artesanais. Diariamente chega a seu escritório às 8 horas da manhã, e passa as nove horas seguintes azeitando o funcionamento do maior centro cultural e turístico do país — uma área de 700 000 metros quadrados que compreende gêiseres, piscinas de lama medicinal, área de conservação dos pássaros kiwi, a ave símbolo da Nova Zelândia, e uma vila Maori para apresentações aos visitantes, além do instituto de ensino que deu origem a todo o resto. Às 5 da tarde, volta para a rua que leva o nome de sua família — o quarteirão inteiro já foi a fazenda de seus avós, 19 tios e 11 irmãos — onde dá expediente de marido e pai de quatro crianças. Um papel que leva muito a sério. Faz questão de só conversar na língua Maori com elas, e gasta longas horas ensinando-as as práticas, costumes, obrigações tribais e lendas de seu povo. “Você tem que fazer concessões às vezes. O administrativo suga a vida da criação artística, mas se eu fizesse o que eu fazia antes, que era pura arte, eu não conseguiria sobreviver, ou alimentar minhas crianças. Viveria tenso… e isso não funciona também”.

Uma língua é muito mais do que a soma das palavras que a compõe, é a principal forma de expressar uma cultura e um pensar. Logo que chega na Nova Zelândia, o turista aprende que para dizer “oi” deve usar a combinação kia ora. Na verdade, os Maori não dizem um simples “olá”, eles se cumprimentam desejando saúde um ao outro: ora significa “vida”, e kia é “para você”. O costume tem a mesma origem polinésia do aloha havaiano, que, mais do que uma onomatopeia de surfista, significa “amor para você”. Assim, um Maori — ou o tradutor do Google — vai dizer que, para expressar felicidade, deve-se usar o termo harikoa. Leonard odeia o próprio emprego, e está tão cansado do trabalho e da educação dos filhos no fim do dia que só quer passar um tempo com a esposa. Exaurido, fica sem ânimo para fazer o que mais gosta: tecer trajes típicos como piupiu, poi tāniko e rāpaki. No entanto, se diz muito, muito feliz. “Para nós, tudo está entrelaçado entre você, as formigas, as pedras, as plantas… é como um tecido. Felicidade só para mim não existe, harikoa exige que as linhas do seu tecido familiar, da sua tribo, do seu entorno estejam bem, com o espírito harmônico. E eu tenho isso”.

Nem todo Maori pensa assim, que fique claro. A sociedade neozelandesa é moderna e cosmopolita, e os nativos que buscam felicidade longe dos costumes de seus antepassados são muitos. Mesmo estas tradições são mutáveis e mutantes. “Minha visão de mundo é diferente da dos meus pais, que era diferente da dos meus avós. Para eles, felicidade significava que é melhor morrer em batalha do que de velho, mas a filosofia do ‘hoje é um bom dia para morrer’ não serve pra mim”, explica Leonard. Ele tenta, então, seguir o que acredita serem as pedras fundamentais da cultura Maori. Não foi à toa que decidiu morar em Rotorua e trabalhar em Te Puia. Ele deixou sua cidade natal em 2000 para fazer um mestrado em Otaki, no sul do país, onde conheceu a esposa, e chegou a ser diretor do departamento de Arte e Design na Universidade de Te Wānanga o Raukawa. “Foi um período incrível, e muito livre, porque longe de casa eu não precisava cumprir com uma série de obrigações tribais que se esperam de mim aqui”. Mas quando seu filho mais velho chegou à idade escolar, era hora de voltar para os ensinamentos dos ancestrais. Como a região da tribo de sua esposa, Te Whānau-a-Apanui, não tem bons colégios nem grande oferta de emprego, a única opção se mostrou retornar a Rotorua. O casal decidiu que Ruihapounamu Ruwhiu arrumaria um emprego formal, enquanto Leonard se dedicaria à criação da prole e de suas obras em tempo integral. “Eu e minha esposa podemos fazer essa escolha, porque fomos os dois educados e temos outros atributos para nos apoiar. O problema é que não foram suficientes para nos sustentar”. A escolha de voltar para Te Puia, desta vez em um cargo gerencial também teve fundo tribal. “Precisava achar um emprego, e usei como uma oportunidade para retribuir com o meu trabalho ao lugar que me ensinou quase tudo o que sei, que moldou minha natureza, para retribuir aos anciãos que sempre respeitei enquanto crescia aqui. Obrigações tribais, entende?”.

Em um documentário neozelandês, Karl Leonard fala sobre a importância da sua arte (áudio em Maori, legendas em inglês)

A cabeça grande coroada com um coque grisalho, a tez curada pelo sol, os brincos de osso em espiral nas duas orelhas, o corpanzil tatuado e as mãos largas e calejadas criam a imagem de um homem viril. A foto de um nu seu, mostrando os desenhos Maori gravados em sua cintura, nádegas e coxas viajou o mundo — passou o outubro de 2015 exposta no Jardim Botânico carioca — representando a arte guerreira Maori. “As tatuagens são uma conexão entre você, seus ancestrais, e seu povo; é a sua identidade tribal”, explica. Mesmo vestido em calça e camisa sociais, numa pausa do trabalho de gerente de operações, Leonard impõe respeito com a fala grossa e a aula de um haka bem feito. Nada que remeta a sua grande paixão, a arte de tecer. O contraste já chamava a atenção quando ele ainda era um garoto, e aprendia o ofício com a avó centenária, Ranginui Parewahawaha Teimana Leonard (ela viveu até os 112 anos). Os vizinhos riam dele, e as zombarias o acompanharam até a idade adulta. “Eu e um amigo éramos os únicos homens fazendo tecelagem na Nova Zelândia, mas isso jamais foi um problema para mim. Essa divisão das tarefas por gênero veio para cá com os ingleses, é bobagem. Maori faz o que precisa ser feito. Nossas mulheres pegam em armas se for preciso, e te arrebentam se você der motivo para isso, seja você um moleque ou o chefe da tribo”.

A foto que abre o artigo e o vídeo acima são de autoria do projeto Gente Extraordinária.

As demais imagens são do Arquivo Pessoal de Karl Leonard.

Os demais vídeos pertencem aos respectivos canais do YouTube.

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Bruna Talarico
Gente Extraordinária

Jornalista brasileira, estudo Media Management em Nova York para encontrar novas maneiras de comunicar o mundo. Co-fundadora do projeto Gente Extraordinária.