Esso Kapum, o neto do vulcão

Bruna Talarico
Gente Extraordinária
6 min readFeb 29, 2016

Tanna, Vanuatu. Fevereiro de 2016.

Pergunte para um mantanna, o habitante da ilha de Tanna, em Vanuatu, qual a sua idade, e terá uma resposta normal. Esso Kapum, ex-policial e hoje empresário, por exemplo, diz que tem 40 anos. Cavuque um pouco mais, porém, e entenderá que a matemática do tempo funciona um pouco diferente naquela parte do globo. “As pessoas aqui em Tanna não contam os dias e os anos, elas só sabem que hoje é hoje, e amanhã é amanhã. Eu tenho 40 anos, talvez um pouco mais… sei que nasci em 1972”. Não é que Tanna seja a Terra do Nunca — ali o tempo passa assim como em qualquer lugar. Se a criança for das que crescem rápido, inclusive, seus pais podem arranjar um marido/esposa para ela tão logo ela pareça “crescida o suficiente”, o que pode acontecer aos 11, 12 ou 13 anos. (A filha mais velha de Esso já passa dos 20 anos, mas ele não tem pressa para casar a menina.) Esso divide seus dias entre cuidar de sua hospedagem, guiar tours pelo Monte Yasur (o vulcão mais ativo do mundo) e administrar uma fazenda exportadora de café. Não existe divisão muito clara de quando ou quanto ele se dedica a cada um, porque a vida dá conta de organizar os dias. “Não nos importamos com o relógio, acordamos na hora que quisermos, está tudo bem. Às vezes eu fico olhando meus porcos, as galinhas, minhas bananeiras, o cafezal, os cavalos… é tudo tão bonito, é o que me faz feliz”.

Vanuatu é formada por 83 ilhas, mas é comum ouvir dizer que Tanna é especial. Mais de 100 tribos vivem naquelas terras, com graus diferentes de contato com a civilização moderna. O único canal de TV do país vive passando documentários sobre os povos mais isolados de lá. Um dos pontos de contato entre todos os habitantes é a inescapável relação com Yasur, a quem todos chamam carinhosamente de vovô. Se pouco valor é dado a relógios e calendários, é porque uma enorme montanha cuspidora de lava manda sinais claros sobre o dia-a-dia das pessoas. Esso dirige a sua Toyota Hilux novíssima com destreza por um vale desértico que literalmente se desfaz em cinzas sob os pneus enquanto ensina aos turistas como decifrar a língua do vulcão. “Quando o Yasur dá as explosões mais terríveis, sabemos que é hora de plantar o inhame, o taro. É a mãe natureza em sua explosão da vida, sabe?”. A expedição para ao pé do vulcão, Esso desce do carro para conversar com a garotada do vilarejo, aciona o 4x4 da caminhonete e começa a subida íngreme que passa facilmente dos 45 graus, sem aparentar preocupação. “Agora as explosões não estão tão fortes, e ele está começando a jogar cinza pela ilha inteira. Quando for tanta cinza que as plantas ficam cobertas de fuligem, é chegada a hora da colheita”. Vestidos em botas de caminhada e roupas confortáveis, os turistas penam para escalar à beira da cratera, o chão de cinzas cede a cada passo. Esso vai à frente, de chinelos e calça de brim, observando o comportamento do vovô. “Os pesquisadores vêm aqui olhando o vento, achando que é ele quem empurra a lava cuspida pra lá ou pra cá. Não é assim. Um pigarro mais forte joga a lava para cima, e ela se solidifica ao cair de volta, formando uma tampa. É essa tampa temporária que determina a direção da lava”.

Na capital Port Vila, a importância das igrejas pentecostais na cultura se mostra a partir do anoitecer do sábado até o pôr do sol de domingo, compromisso sagrado de contemplação e assistência às funções clericais. Mas numa ilha que não liga para o tempo, nem Deus é capaz de impor o dia santo. “Eu não fui à igreja hoje (a entrevista aconteceu em um domingo). A maioria das pessoas nem sabe se é quarta-feira ou domingo, que dia do mês é. Um dia a gente acorda e descobre que é Natal, então vamos celebrar o Natal”. É nestes festejos universais que todas as tribos em Tanna entram em sintonia. Cada uma fala uma língua diferente — Esso jura que sabe falar todas elas, além do inglês e da Bislama, o idioma oficial — , e têm diferentes costumes. As festas, no entanto, são de todos. “Todo mundo é convidado e se envolve em todas as celebrações, pouco importa se é tradicional da tribo, cristã, de John Frum (um tipo de culto à carga; acredita-se que, aqui, tenha origens na relação de Vanuatu com um soldado americano durante a II Guerra) ou a religião que for. Isso é felicidade na sua frente, todo mundo envolvido”.

O kava, a bebida feita da raiz da planta de mesmo nome, também faz parte do costume de Tanna. Cada lugar tem uma relação própria com ela. Em Samoa ela é usada como afrodisíaco e diz-se que ajuda a trabalhar sob o sol forte; em Fiji é fraquinha e se bebe ao longo de uma noite inteira. Vanuatu, no entanto, é conhecida por fazer uma versão concentrada e fortíssima. Em Tanna, a tarefa de preparar o elixir cabe às crianças. Ao invés de macerar a raiz com um pilão, como em Fiji ou na Samoa, as crianças de Vanuatu mastigam a raiz e cospem a gosma em uma grande cuia, enquanto ouvem os ensinamentos do Yaramara(o grande chefe da tribo). Tradicionalmente, só ele pode autorizar o uso e ceder aos jovens a kava. “Se eu disser que meus filhos nunca tomaram kava, talvez esteja mentindo. Muitos jovens simplesmente bebem escondidos, como vou ter certeza?”. Além do Yaramara e seus escolhidos, que tomam o kava durante as reuniões em que são passadas as decisões e ensinamentos, os casamentos são arranjados, músicas são entoadas; também tomam o kava os Debunnis. Eles são os chefes das colheitas: há um Debunni do inhame, outro do milho, mais um do taro, e quantos mais forem as plantações. O Debunni tem seu próprio local para tomar o kava a sós. “Se não tivermos uma boa colheita do vegetal de determinado Debunni, é ele o responsável pelo problema. Por isso todos eles vão pros seus lugares sagrados rezar para quem quer que eles acham que estão falando quando tomam o kava”, diz, meio a sério meio a deboche.

Esso é o primeiro filho do Yaramara de sua tribo, a Louaneai. “É uma honra para mim, e também uma responsabilidade. Zelo, inclusive, pela felicidade das pessoas perto de mim”. Ele pede a palavra nas reuniões que seu pai preside, e tenta instruir seus compatriotas a desenvolver a economia local, sem que os jovens necessariamente se mudem para Port Vila. No verão de 2015, um dos ciclones mais poderosos já registrados no hemisfério sul, batizado de Pam, atingiu em cheio Vanuatu e deixou 16 mortos — muitos não por efeito direto da tempestade e ventos de 320km/h, mas sim por falta de comida, água ou cuidados médicos, consequência do isolamento. Para chegar a Tanna, por exemplo, são 3 dias de viagem no porão de um antigo ferry cargueiro, ou a bordo de um avião pequeno (a precária pista disponível não permite pousos de grandes aviões) que jamais conseguiria voar mesmo uma semana depois de um furacão. Esso doou 2 000 quilos de alimentos, a maior parte de sua própria fazenda, para ajudar os flagelados. Mas a tragédia não abalou a felicidade dos mantannas, ou de Esso em particular. “Essas coisas acontecem, são parte da natureza, provavelmente nos mostrando que é hora de mudança. Depois do Pam, por exemplo, nós tivemos colheitas espetaculares. Não sabemos se foram os deuses das colheitas, os rituais dos Debunnis, ou se as árvores caídas trouxeram nutrientes para o solo, mas foi uma dádiva”. Em outras ilhas de Vanuatu, quando um Yaramara se aposenta ou morre, o mais velho da tribo assume o posto. Em Louaneai o povo pensa diferente, e já se fala abertamente em eleger Esso para o lugar do pai. Ele não dá atenção ao disse-me-disse. “Eu estou feliz assim, não penso muito no assunto. Quando o dia chegar, eu penso na possibilidade. Deixa o tempo chegar”.

--

--

Bruna Talarico
Gente Extraordinária

Jornalista brasileira, estudo Media Management em Nova York para encontrar novas maneiras de comunicar o mundo. Co-fundadora do projeto Gente Extraordinária.