Glenn Miller, o sobrevivente

Felipe Carneiro
Gente Extraordinária
6 min readMay 2, 2016

Fraser Coast, Australia. Abril de 2016.

Aos olhos de um brasileiro, Glenn Miller é branco. Filho de um alemão com uma aborígene australiana, ele jamais se sentiu assim. Nunca o deixaram se sentir assim. Aos 67 anos, ele recorda sem saudades de um tempo em que muitos de seus parentes e conhecidos eram arrancados de sua terra e enviados para partes não habitadas do território (e sem recursos naturais, por supuesto). Não havia possibilidade de entrar numa faculdade, participar do governo ou mesmo de votar. Até 1967, os indígenas sequer eram contados no censo australiano. De família pobre, Miller ia para escola com roupas doadas ou herdadas, quase nunca do tamanho certo. Contava os dias para o aniversário de 14 anos, quando poderia entrar como cadete na polícia e, assim, ganhar uniforme engomado e bota lustrosa. Hoje, ele concentra seus esforços em duas frentes: ajudar velhos como ele a manterem afastadas a solidão, a depressão e o fantasma do suicídio; e conquistar respeito e poder para o seu povo, os Butchulla. Glenn Miller não o faz por bondade. Ele faz o que faz, como sempre fez, por instinto.“Felicidade é consequência de ter sucesso como sobrevivente. Sobrevivência é uma questão de ser esperto e saber usar o que está ao redor”.

Sabedoria Butchulla: o que é bom para a terra vem primeiro; se você tem o suficiente, precisa dividir; não toque ou pegue o que não lhe pertence.

Acontece no Brasil, em toda a África, e é igual na Austrália. Os povos nativos não tem a individualidade respeitada. São índios, são africanos, são aborígenes. Pouco importa se tratam-se de nações completamente díspares, muitas vezes inimigas, ou com nada em comum a não ser morar no mesmo continente. Na Austrália, os aborígenes foram dizimados até representarem, hoje, 3% da população. A região costeira no nordeste do país é, tradicionalmente, a terra dos aborígenes Butchulla. Esqueça ideias de sujeitos com a pele pontilhada de tinta branca a tocar didjeridu. O pontilhado é, na verdade, exclusividade das comunidades nativas da Austrália central, e o didjeridu é uma tradição das do norte. Podem parecer detalhes, mas os brasileiros sabem bem o desrespeito que significa um gringo dizer que a capital do Brasil é Buenos Aires. Vida que segue, ainda assim. O que não pôde seguir foi o modo de vida Butchulla depois que os ingleses chegaram à Austrália. A primeira coisa que fizeram foi desarmá-los todos — museus de todo o país têm vasto arsenal aborígene, já que todas as armas foram tomadas pelos europeus. Sem suas lanças, facas e machadinhas, os homens não podiam guerrear nem caçar. Ficaram perdidos, sem função. As mulheres, que não representavam um perigo militar, foram deixadas quietas, e aos poucos tomaram o protagonismo na sociedade Butchulla.

Aos 17 anos, Miller se casou com uma moça de origem inglesa. Eram namorados de escola, e uma gravidez não-planejada selou o futuro do casal. Os anos 60 não foram nada liberais numa cidadezinha no nordeste da Austrália, mais de 2 000km distante do eixo Sydney-Melbourne, o Rio-São Paulo deles. Miller abandonou a academia de polícia e foi para o interior trabalhar nas minas de carvão em Moura. Viveu sozinho em uma tenda por um ano e meio, até conseguir um trailer para trazer a família. O salário era bom, dava para sustentar a casa e ainda gastar em carros, motos e armas, mas não apontava para um futuro melhor. Voltou para Brisbane, onde era cadete, e arranjou um emprego ajudando especialistas do governo a encontrar e identificar sítios arqueológicos aborígenes no estado de Queensland. Pela primeira vez, sentiu orgulho de sua ancestralidade, e estudou a fundo sua cultura. Como Miller gosta de dizer, foi ali que ele aprendeu a sair da ‘bolha aborígene’. Em seu emprego seguinte, na Secretaria de Turismo do estado, já chegou avisando que não se contentaria em lidar exclusivamente com seus pares. Se provou ao fomentar a indústria de duas maneiras: incentivando algumas famílias a investir no ramo, enquanto convencia outras, sem um plano de negócios promissor, a desistir da ideia. “Muita gente ficou furiosa comigo, mas eles queriam hipotecar a casa para criar um negócio sem futuro! Me xingaram, mas não perderam a casa. Sobreviveram”. Galgou postos e passou a gerenciar os mercados de mochileiros, LGBT, esportes, pescaria e hotéis-fazenda. “Somos uma minoria de 3% da Austrália, e se passarmos todo o tempo discutindo entre nós mesmos o quanto somos sacaneados, sucumbiremos! Os povos indígenas de todo o mundo sobreviveram por tanto tempo porque privilegiam a sobrevivência do grupo frente ao indivíduo. É fácil ficar em casa bebendo, fumando maconha e reclamando dos brancos, mas não resolve nada. Se um indivíduo não está ajudando o grupo a sobreviver, precisamos nos livrar dele. O grupo é mais importante”.

Lake Mckenzie, em Fraser Island: território sagrado para a nação Butchulla

Primo Levi, escritor italiano que sobreviveu ao campo de concentração alemão de Auschwitz, desenvolve a ideia de que a primeira chave para a felicidade é a ausência de dor. E que a felicidade plena é inalcançável, pois a certeza da morte é uma dor incontornável. Para Miller, o fim de seu povo é quase palpável. Sua língua já não existe há algumas gerações. Sua terra já não lhe pertence há mais de um século. Sua cultura se perde a cada dia — o que os guias turísticos garantem ser tradição Butchulla, Miller jamais ouviu de sua mãe ou seus avós. A proximidade da morte, do esquecimento, é forte demais para que ele pense seriamente sobre felicidade. O tempo é precioso, e há muito que se fazer para salvar a nação tribal. “A tradição aborígene é toda transmitida oralmente, não há língua escrita. Então precisamos lutar enquanto ainda há quem lembre, porque os jovens já estão muito distantes dos anciões”.

A Ilha de Fraser é um caso emblemático. Seu nome é uma homenagem a Eliza Fraser, a esposa do capitão James Fraser. O navio em que viajavam veio a pique nas perigosas águas da Grande Barreira de Corais, e um motim nos botes salva-vidas largou o casal à própria sorte na imensa faixa de areia (125km de comprimento, 22km de largura em seu ponto menos estreito). A história não registra o motivo da morte de James, ainda na ilha, mas Eliza conseguiu fugir com a ajuda de um prisioneiro inglês que acreditava que o feito lhe garantiria o perdão da Coroa inglesa. Ao voltar para o Reino Unido, Eliza fez fortuna cobrando ingressos para contar os maus bocados que teria passado nas mãos dos aborígenes. O problema é que os detalhes da história mudavam um pouco a cada dia, e as torturas ficavam mais cruéis e sofridas à medida que o público ia minguando. Os Butchulla garantiram que não encostaram a mão na moça e, ao analisar as versões, é mesmo pouco provável que uma donzela fosse capaz de escapar de uma ilha dominada por uma tribo guerreira sem o seu consentimento. Nada poderia ser mais insultante, pois, do que celebrar uma senhora que acusava os Butchulla de canibalismo dando-lhe o nome daquela terra. Desde a década de 70 que Miller e alguns amigos lutam para trocar oficialmente o nome da ilha, chamada pelos aborígenes de K’Gari, uma homenagem à divindade que teria ajudado a criar as montanhas e os mares. Conseguiram uma meia vitória: o nome passou a ser K’Gari/Fraser Island. De resto, nada mudou. Os lugares sagrados continuam sendo palco da farra dos turistas, e os quase duzentos dólares por cabeça que entram na ilha passam longe dos bolsos Butchulla. “Felicidade, para nós, é sermos reconhecidos como os tradicionais donos desta terra. Mais que isso, felicidade real vai ser quando tivermos um papel relevante na tomada de decisões nesse país. Neste momento, não temos”.

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