Miss Annie ri à toa

Felipe Carneiro
Gente Extraordinária
5 min readFeb 22, 2016

Port Vila, Vanuatu. Fevereiro de 2016.

“Eu morro de saudade de Tongoa. Lá você consegue tudo o que precisa de graça, da natureza. A gente é feliz com o que tem”. É com essa simplicidade que Annie Obed, nascida em uma das ilhas do arquipélago que forma Vanuatu, gostaria de viver. Ela mora na capital, Port Villa, desde 1992, mas acredita que seus parentes e amigos de Tongoa são mais felizes. “Você pode dormir o quanto quiser, aí acorda e cuida das suas plantações. Se preferir, pode simplesmente ficar em casa e não fazer nada. Com esse calor que faz no verão, às vezes nem vale a pena trabalhar duro e semear, porque é tão quente que nada vinga”.

A sra Obed tem, hoje, 46 anos de idade. Ela é assistente de classe na Port Villa International School, a escola onde estudam os filhos dos expatriados em Vanuatu, onde todos a chamam de Miss Annie. Acorda todos os dias às 5h30 da manhã, com o sol ainda por raiar, prepara o café da manhã para o marido e três filhos, e pega um ônibus para chegar ao trabalho às 7h. O trajeto pode demorar 15 ou 45 minutos, mas não porque o trânsito seja imprevisível. Imprevisível é o caminho até a escola: ônibus é como os locais chamam as vans que fazem lotação, sem qualquer organização de linhas ou itinerário. A rota é moldada de acordo com o destino que cada passageiro dentro do carro.

Na escola, ela organiza a chegada das crianças, auxilia os professores com tarefas diversas, puxa o canto do hino nacional, ajuda os alunos com sua leitura e a matemática mais básica. O batente termina às 15h, mas logo começa o segundo expediente: fazer compras no mercado, lavar roupa, passar, cozinhar a janta. “Os homens são mais felizes em Vanuatu. Enquanto nós fazemos todas as tarefas, eles vão descansar, conversar com os amigos, tomar kava, fazer o que bem entendem”. Annie só faz o que bem entende depois do jantar, quando gosta de assistir filmes até tarde. “Adoro filmes com negros americanos”.

“As pessoas em Vanuatu são as mais felizes do mundo”. Annie diz isso, há cartazes na rua dizendo isso, todo mundo por aqui gosta de afirmar isso como um mantra. É uma mania das ilhas do Pacífico Sul. O mesmo papo é repetido em Fiji, e também em Samoa. Em Tonga, dizem que são o último bastião da felicidade polinesia legítima, sem contaminação ocidental. Pouco importa que a imensa maioria das populações jamais tenha tido qualquer experiência fora de sua própria ilha, são os mais felizes e não se discute. Em Vanuatu, no entanto, a atmosfera é mesmo leve. Trata-se de um país inventado pelos europeus, que uniram ilhas diversas, com tribos as mais diferentes, debaixo de uma mesma bandeira sem nenhum critério geográfico ou cultural. A língua oficial — junto com o inglês, predominante no sul, e o francês, predominante no norte — é o Bislama, uma mistura de palavras inglesas com uma pitada de francês, mas com som puxado para os dialetos Malesianos. (Por exemplo, conta-se até três usando wan, tu, tri; “por favor” e “obrigado” são plis e tangkyu, derivados do inglês. “Eu vou” é ale mi go, do francês). Na prática, cada tribo/vilarejo tem a sua própria, num total de 112 idiomas catalogados. É o país com a maior concentração de diferentes idiomas por habitante do mundo. Isso não impede que todos se comuniquem livremente, nem que seja só na base do sorriso. As cerimônias, tanto as tradicionais quanto às religiosas, jamais segregam ninguém, todas as tribos, vilarejos e estrangeiros são convidados indiscriminadamente e recebidos com o onipresente sorriso vanuatuano. “Apesar da pobreza, a polícia não tem trabalho aqui. Todo mundo é amigo, mesmo os desconhecidos”.

Annie não tem boas lembranças de sua infância. Seus pais deixaram Tongoa quando ela ainda contava 4 anos de idade, para trabalhar em plantações de côco na ilha de Epi. Por maior que seja seu carinho pelos avós que a criaram, foi o vazio que marcou sua memória. Aos 12, foi-se ela para Epi, mas a ausência só ficou mais forte. Era interna numa escola secundária, e a dificuldade para viajar dentro de Vanuatu só permitia que a menina visse a família no Natal. Ainda hoje, o tráfego entre as ilhas é feito em ferries velhos e lotados, em travessias que duram até 3 dias. Sozinha no dormitório, Annie tirava forças para continuar com os estudos de sua vontade de ser professora. O sonho foi derrubado pela dura realidade econômica: sem dinheiro para pagar a faculdade, não viu outra alternativa a não ser voltar para Tongoa e cuidar dos avós. Eles tinham outros planos para a neta, e arranjaram seu casamento com um primo 3 anos mais velho. “Eu não tive escolha, tinha que obedecer e fazer meus avós felizes”. O casal foi tentar a vida na capital Port Vila; ele como jardineiro, ela como empregada doméstica e babá.

Vanuatu é um país de desempregados. Apesar de a taxa oficial de desemprego ficar na casa dos 4%, mais de 70% da população em idade economicamente ativa não recebe salário. O número é camuflado nas estatísticas oficiais porque a maioria se vira como os parentes de Annie em Tongoa: vivendo da terra, vendendo o excedente no mercado. Num ambiente como esses, estrangeiros são encarados com mais do que curiosidade; são uma benção que traz empregos.

Os anos dedicados a cuidar da casa e dos filhos de uma britânica de nome Patricia fatalmente chegariam ao fim, como sempre acontece com quem trabalha com expatriados. Mas o que é um fim, senão o marco de um recomeço? “A Patricia chegou para mim e disse que os filhos já estavam crescidos, e que não precisava mais de mim”. A patroa era diretora em uma escola da capital, e a demissão trazia uma proposta embutida. “Vai abrir uma vaga de assistente de classe na escola internacional, acho que é uma oportunidade para você”. Oito anos depois de ver seu sonho de ser professora naufragar, Annie conseguiu trabalhar com a educação das crianças. “É como se eu tivesse 30 novos filhos todos os anos, eu amo meu emprego”. E tem vontade de voltar para Tongoa? “Na verdade não, comprei uma terra aqui em Port Vila e vou construir uma casa para toda a minha família poder morar comigo”.

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