Precisamos falar sobre Umu

Bruna Talarico
Gente Extraordinária
5 min readFeb 3, 2016

Ou ‘as entranhas da vida na Samoa’.

Umu alimenta suas galinhas em Faga, um vilarejo de Savaii, na Samoa

Assim que o bimotor pousou em Apia (Samoa) após o bate-volta em Pago Pago (Samoa Americana), travamos um curto e decisivo diálogo.

'Savaii?'

'Bora.'

O calor úmido, opressor, nos garantia uma inacreditável capacidade de síntese e uma invejável conjunção de força e mobilidade: carregamos dois mochilões + duas mochilas de equipamento + uma case com as pranchas de bodyboard com a leveza de dançarinos.

Savaii e Upolu, respectivamente: as ilhas da Samoa

Savaii é a ‘ilha grande’ da Samoa. Na semana anterior, havíamos ficado apenas em Upolu, a ‘ilha pequena’, nos dividindo entre Apia, a capital do país, e Lalomano, uma prainha de águas turquesas no extremo sudeste de lá, a duas horas de viagem do aeroporto. Estávamos à mesma distância de Salelologa, onde fica o porto de Savaii. Decidimos conhecer um lugar novo.

No porto de Savaii, fomos cercados por taxistas - uns tentavam pegar nossas mochilas, outros gritavam acomodações e praias que nos fariam conhecer - e até o motorista do único ônibus que restava na praça tentava nos convencer de que havia espaço para nós no colo dos outros passageiros da lotação.

Eram 5h da tarde e vivíamos um dia de bosta desde 9h da manhã, quando levamos um cano do taxista Martini lá em Lalomano. No meio de uma rodinha de taxistas que gritavam preços entre 80 e 120 talas para a corrida até Manese, gritei: só pago 50 tala. A essa altura, o ônibus já tinha ido embora, e um taxista mais atrevido desdenhou: vai pagar 80 ou vai ter que dormir na praça. Sorri debochada: eu durmo na praça. Foi aí que conhecemos Umu.

Levo vocês por 50 tala. Vamos.

Ele pegou nossas coisas, mas outros taxistas tentavam tirar nossos pertences da custódia de Umu, visivelmente ofendidos pela atitude dele. Uma selvageria que seria só intimidadora caso a gente estivesse em situações normais. Mas não estávamos. Estávamos frustrados, putos da vida com o incidente de Pago Pago, suados feito porcos, fedorentos, exaustos, famintos e, pra coroar, sem lugar para dormir. Acabamos levamos a coisa toda pro pessoal.

Umu foi de uma doçura e prestabilidade que nos deixou desconfiados. Oferecia insistentemente, com um inglês precário, sua casa para nos acomodar. Chegou a parar nela no caminho para Manese - nos apresentou a esposa e os três filhos. De fora, a casa era simples como são todas casas samoanas que vimos durante a viagem. Ele se gabou de que tinha até banheiro e, orgulhoso, complementou que o banheiro ficava do lado de dentro.

O mar de Faga e suas cores inacreditáveis

Acontece que precisávamos de internet para publicar o conteúdo do Gente Extraordinária e de um lugar só pra nós dois por pelo menos uma noite. E, não vou mentir, não queria me sujeitar a uma situação que eu não sabia qual seria, na casa de um desconhecido, no meio do nada.

Umu então nos apresentou o Blue Lagoon, o hotel em que passamos três noites. A gerente, australiana, logo o reconheceu:

'Vocês deram sorte. Semana passada tivemos uma enchente horrorosa do outro lado da ilha. Alguns hóspedes ficaram ilhados e Umu, que estava passeando com a família, os resgatou. Levou todos pra sua casa, deu de comer e um lugar pra dormir. Quando os hóspedes voltaram para o hotel, não conseguiam colocar em palavras a gratidão que sentiam.'

Protegidos por um mosquiteiro no único cômodo da casa de Umu

No momento em que escrevo este texto, estou sentada na cama de casal que Umu e sua esposa dividem em dias normais mas que foi designada como nossa durante a hospedagem. É nela que está o único colchão da casa e a única tela contra insetos. Ela é também a única parte da casa que conta com divisórias e porta e pode ser chamada de cômodo. Umu, sua mulher e os três filhos se dividiram durante as noites entre uma colcha estendida no chão e uma tábua de compensado coberta com um lençol na sala-cozinha-banheiro (privada e chuveiro ficam num dos cantos do quadrado que é a casa).

Umu cria galinhas e nos fins de tarde rala coco para dar de comer a elas. Em seu quintal, planta bananas, taro (uma raiz típica daqui), e kava, matéria-prima pra bebida entorpecente que é usada quando os samoanos precisam de energia para construir casas, levantar igrejas ou transar.

Não pagamos nada pela hospedagem. Umu não deixa. Fomos ao mercado comprar comida, e a simples menção de dividirmos a conta foi encarada como uma ofensa. ‘Eu sou capaz de pagar as contas da minha família’. De noite, a esposa cozinhou pra gente. Ela tem um inglês mais difícil que o dele, mas sempre que podia perguntava se eu estava feliz em estar ali, com eles. E eu estava feliz. Constrangida por eles estarem dando tudo o que tinham para dois estranhos, desconfortável com as condições de higiene do lugar, com (muito) medo dos insetos - mas feliz em reforçar minha crença no que a humanidade tem de melhor. O amor pelo próximo. A compaixão. A empatia.

‘Quando vocês falarem pros amigos de vocês daqui, quero que vocês digam que tem uma família na Samoa’, repetiu Umu todos os dias.

A gente tem, Umu. Obrigada por tudo.

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Bruna Talarico
Gente Extraordinária

Jornalista brasileira, estudo Media Management em Nova York para encontrar novas maneiras de comunicar o mundo. Co-fundadora do projeto Gente Extraordinária.