O sorriso indomável de Zane Huntress

Felipe Carneiro
Gente Extraordinária
6 min readApr 25, 2016

Gold Coast, Austrália. Abril de 2016.

Do alto de uma formação rochosa conhecida como Snapper Rocks, literalmente na fronteira entre os estados de Queensland e New South Wales, na Austrália, é possível observar três praias: Snapper Rocks Point à esquerda, Frogs no meio, e Duranbah à direita. O mirante fica sempre cheio de gente. Os turistas na torcida pela passagem de golfinhos e baleias, os locais admirando as ondas perfeitas para o surf, que quebram 300 dias por ano. Era ali que, ao meio-dia de uma sexta-feira, o adolescente Zane Huntress matava o tempo com o amigo Zac King, os dois com a pele curtida e os cabelos esbranquiçado por 15 anos de sal e sol no mar de Gold Coast. A grade metálica do aparelho fixo bem que tenta, mas é impossível domar o enorme sorriso no rosto de Zane. Sua vida é acordar ainda no escuro, ver o sol nascer de dentro do mar a 10 minutos de sua casa, estudar entre 8h40 e 15h10, voltar para a praia, assistir vídeos de surfe ou filmes no Netflix, e começar tudo de novo no dia seguinte. Nos finais de semana, para quebrar a rotina, frequenta festas nas casas de amigos e volta e meia pratica mergulho de scuba nas praias mais ao sul — quem está acostumado a aproveitar sozinho a força da natureza não vê sentido em disputar com centenas de locais e visitantes um pico que certamente estará no mesmo lugar quando a segunda-feira chegar. “Se eu tivesse o poder de mudar qualquer coisa na minha vida? Eu moraria na beira da praia. O resto está maravilhoso, pode deixar como está”.

O centro comercial de Gold Coast chama-se Surfers Paradise, ou Paraíso do Surfista. E nem é a melhor onda da região. São bem mais concorridas as vagas de Burleigh Heads, Duranbah e Stradbroke Island, por exemplo, mas o nome nada modesto daquela faixa de areia dá a ideia da atmosfera na cidade. O Superbank, resultado da dragagem em 1995 da foz do rio Tweed que transformou uma série de pequenas praias no formato de lua crescente em uma grande faixa costeira de 2 quilômetros de comprimento (irritando muitos moradores), é considerada a melhor formação de fundo de areia do planeta, e permite nos melhores dias que o surfista deslize na mesma onda pelos quase 2 000 metros. Mesmo antes de 1995, as à época independentes Kirra e Snapper Rocks já eram coalhadas de pranchas e tubos. O primeiro campeão mundial do esporte na era profissional, Peter Townend (1976), nasceu na cidade, bem como o uma vez campeão e ex-chefão da Associação dos Surfistas Profissionais Wayne Rabbit Bartholomew. O tricampeão Mick Fanning aprendeu a se equilibrar na prancha justamente nas águas de Snapper Rocks, mesmo point que serviu de aprendizado e recebeu a aposentadoria do pentacampeão Mark Richards. O lugar respira parafina. Zane deu suas primeiras braçadas no finalzinho do Superbank, em Greenmount, e até hoje lembra da sensação. “Eu tinha 4 anos, meu pai me empurrou na onda e eu fui deslizando naquela prancha de espuma até a beirinha. Foi demais!”, recorda, fazendo o impossível ao abrir ainda mais o imenso sorriso.

A psicologia positiva é um movimento surgido nos anos 1990 entre psicólogos que não queriam se restringir a tentar lidar com os problemas de seus pacientes, mas também trabalhar os pontos fortes da psique humana. Numa simplificação grosseira, a psicologia positiva queria ir além do conserto dos medos, traumas e neuroses para estudar e construir a felicidade das pessoas. Um dos pilares deste campo é o conceito de flow, que numa tradução literal quer dizer ‘fluir’, mas costuma ser chamado no Brasil de ‘estado de fluxo’. O flow seria, então, a perfeita harmonia entre corpo e mente; o alto poder de concentração que faz o sujeito perder a noção de tempo, agindo com precisão e controle sem pensar conscientemente em cada movimento. É experimentado normalmente quando a pessoa ama e domina o que está fazendo, e a excitação é descrita como uma sensação de felicidade plena. E, num sentido bem literal, poucas atividades são tão fluidas quanto flutuar sobre uma ondulação do oceano, onde essa harmonia entre corpo e mente incorpora ainda a sintonia com a força da natureza. Zane não tem a menor ideia do que é a psicologia positiva, mas sabe dizer com facilidade quando se sente mais feliz. “Num tubo perfeito de 6 pés (2 metros) em Greenmount, só eu e a onda, sem ninguém me rabeando, no flow”.

Falar sobre um moleque surfista em Gold Coast é como falar sobre um rapazote sambista no Estácio. É difícil fugir do estereótipo, porque foi ali que ele nasceu. Aqui, não é o cara que se encaixa no modelo: foi o modelo que se encontrou no menino magrelo com o cabelo branco de sol, olhos azuis, pele queimada fitando o Pacífico com a prancha debaixo do braço (a Tempestade Brasileira, alcunha dada à geração tupiniquim que está tomando de assalto o campeonato mundial e trouxe os dois últimos canecos para o Brasil com os paulistas Gabriel Medina e Adriano de Souza, está mudando essa imagem, mas isso é outro papo). Ainda assim, Zane não quer cair no cliché do surfista parafinado que só trabalha quando o mar fica flat (sem onda), de preferência numa loja de pranchas. Desde os 9 anos, ele enfiou na cabeça que quer ser biólogo marinho, e aos 15 continua firme na ideia. Estuda o assunto no colégio — na Austrália, o aluno escolhe as matérias que estuda de um leque que vai de matemática e física até teatro e massoterapia, passando por culinária, fotografia e… biologia marinha — e, de certa forma, vai na contramão da maioria de seus colegas e conterrâneos. Menos de 25% dos habitantes de Gold Coast têm diploma, e uma das sociedades menos desiguais do planeta (é a 4ª no ranking; onde o Brasil é o 76º) trata com o mesmo respeito quem não é "doutor". "Eu sou um cara do mar, é onde eu me sinto em casa. Detestaria sair de perto do oceano por qualquer motivo, aqui é onde sou feliz".

Se tirarmos o surf da vida de Zane, o que sobra é a vida de um adolescente como a de qualquer outro: escola, festinhas nas casas de amigos, meninas, um emprego no McDonald's (que ele largou recentemente porque cansou de chegar em casa fedendo a gordura todos os dias). Mas tirar o surfe de sua rotina é transformá-la em sobrevida. Para Zane, não se trata de um esporte. Trata-se de sua conexão com a natureza, e também consigo mesmo. "Mesmo que eu esteja furioso com algo antes de entrar no mar, eu não penso uma vez sequer nisso enquanto estou na água. Ali estou comigo mesmo". Zane também não leu o clássico Walden, livro em que Henry David Thoreau conta sua experiência de dois anos, dois meses e dois dias vivendo em uma cabana na floresta, isolado da vida na cidade. Mas, ainda que pensando mais em um tubo do que em um bosque, concordaria com a visão do autor americano sobre onde se encontra a felicidade: "O paraíso está sob nossos pés, bem como sobre nossas cabeças".

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