Uma 'palagi' na Samoa

Bruna Talarico
Gente Extraordinária
4 min readFeb 10, 2016

Sabe 'gringo'? Então — é pior.

Apia, 18 de janeiro de 2016. Nas ruas da capital da Samoa, uma multidão heterogênea e barulhenta se engalfinha em uma curiosa harmonia nas calçadas — e ruas, entre os carros — sob um calor opressor. Todos suam. Todos brilham. De raiva, acho que era só eu.

Havíamos chegado na ilha um dia antes, vindos da Nova Zelândia. No trajeto para o hotel passamos por muitos vilarejos. Foi a primeira vez que vimos este tipo de organização social, cultural e do espaço: fales, as casas de madeira sem paredes internas ou externas, são construídas de modo que formam uma semi-arena em torno de uma grande construção comunitária. Mulheres e crianças estão sempre deitadas no chão destas construções, vendo a vida passar lá fora. O sistema que rege a vida nestas comunidades, e que tentamos explicar no texto que fizemos sobre a Foketi, garante a sobrevivência de uns às custas do pagamento de ‘mensalidades’ de outros. Túmulos, todos luxuosos e incompatíveis com o cenário, ficam sempre na frente das fales de seus descendentes.

A beleza natural da Samoa destoa da forma que seus nativos cuidam da terra. Lixo, muito lixo, é jogado por toda parte. Nosso hotel, um prédio de dois andares com apartamentos caros e desocupados na frente e um submundo extremamente barato e precário na parte dos fundos, onde ficamos, era infestado de baratas e formigas. Havia lixo até nos corredores.

Mas higiene não foi o problema. A cultura, sim.

Voltemos às ruas de Apia no dia 18 de janeiro.

Andava com Felipe ao meu lado, e nem isso impediu olhares sexualizados e comentários de canto de boca. Eles eram feitos em samoano, mas qualquer mulher que já sofreu este tipo de violência cotidiana sabe — e sente — quando ela acontece.

Um homem em um caminhão-baú sem uma das portas enfiou a mão dentro da calça quando cruzamos a rua. Outro me puxou pelo braço, com força, quando Umu, nosso anfitrião em Savaii, nos levou a uma boate local. Em um restaurante, um terceiro se aproximou quando Felipe não estava, puxou papo e, mesmo diante das minhas negativas, mandou um drink pelo garçom. Quando a bebida chegou na mesa, congelei de nervoso enquanto ele e seus amigos tentavam chamar minha atenção em inglês. Como defesa, disse para o garçom que estava grávida. De sorridente e cúmplice dos outros clientes, o funcionário se retirou desconfortável.

A Samoa é um país com uma forte presença religiosa e respeita muito a cultura polinesia. Por isso me causava tanto estranhamento este tipo de comportamento masculino. Palagi é a palavra local para se referir aos estrangeiros. Alguns defendem que ela surgiu na época em que os missionários europeus chegaram às ilhas: pa quer dizer portões e lagi quer dizer do céu: brancos, os europeus evangelizadores eram ‘os que traziam a palavra divina’. Muito tempo se passou desde então, inclusive um período abusivo sob a administração do governo da Nova Zelândia, de maioria branca. Talvez por isso, talvez não, palagi hoje vem com uma carga depreciativa. Os turistas são todos palagis e enquanto muitas meninas, como a Foketi, sonham em se casar com um, outros tantos pensam apenas em possuir a sua branca.

Não é sempre assim, é claro. Na nossa última noite em Upolu, a ilha pequena da Samoa, conhecemos Sandra. Ela é neozelandesa de Auckland, e quando contamos do nosso projeto, ela se ofereceu para ser entrevistada. Aqui vai um resumo.

Sandra tem uma história de vida pesada. Casada por quase 20 anos, mãe de dois filhos, adotou uma terceira criança, filha de um parente falecido do marido, e descobriu, meses depois, que ele a traía há anos com uma pessoa próxima. Chame de karma, chame de destino, o marido desenvolveu um câncer agressivo no pâncreas e, contrariando as expectativas dos médicos, sobreviveu por mais seis anos. O amor de Sandra não resistiu, mas eles se mantiveram juntos pela família. “Ele foi um excelente pai e marido durante estes anos finais”, diz Sandra, sem nenhum carinho na voz. Após a morte do marido, decidiu viajar o mundo e se deu de presente “um ano de primeiras vezes” — cantou num karaokê, fez uma tatuagem e transou com alguém que não era o marido, entre outras conquistas inéditas — e “um ano de dizer sim”, onde aceitaria todos os convites que recebesse.

Foi neste segundo que conheceu um samoano 23 anos mais jovem. Ela estava em um resort na Samoa, onde ele trabalhava, e se gostaram fisicamente. Isso foi há seis meses. Já voltou outras duas vezes nesse meio tempo, conheceu a família do namorado e faz planos de um futuro a dois. Fomos apresentados a ele. Foi extremamente respeitoso conosco e com ela na nossa frente. Sandra não se esquiva de dizer que se sente feliz como não acontecia há décadas.

Minhas lembranças, infelizmente, não serão tão coloridas quanto as de Sandra.

Quando tivemos que dormir no aeroporto de Apia, passei a noite inteira entre cochilos, apreensiva com o que podia acontecer comigo. Quatro caras se sentaram perto de nós naquela madrugada e puxaram assunto. O último, quando o dia já clareava, foi mais invasivo que os anteriores. Respondi agressiva, até que ele se apresentou como policial. Disse que, da próxima vez, podemos dormir na patrulha, do lado oposto da estrada. "Lá você vai se sentir segura", insistiu. Sinceramente, acho que não. Mas quem sabe numa próxima visita.

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Bruna Talarico
Gente Extraordinária

Jornalista brasileira, estudo Media Management em Nova York para encontrar novas maneiras de comunicar o mundo. Co-fundadora do projeto Gente Extraordinária.