Foketi Saamoe e a Pérola do Pacífico

Felipe Carneiro
Gente Extraordinária
6 min readFeb 1, 2016

Fagamaloe, Samoa. Janeiro de 2016.

A Samoa é tudo que se idealiza sobre o paraíso na Terra. Floresta tropical praticamente intocada, praias de areias brancas e águas cristalinas. Na mata, Freiras de garganta branca, Pardelas do Pacífico, Estorninhos Samoanos e outras aves bicam cocos, bananas, frutas-pão no pé ou caídos no chão, e flores pontuam a mata com todas as cores. Basta um mergulho para que a fauna e flora ficarem ainda mais impressionante — os corais ao redor da ilha abrigam mais de 1 000 espécies de plantas, peixes e crustáceos. Ela merece o epíteto que carrega de "A Pérola do Pacífico". A jovem Foketi Saamoe, de 22 anos, não parece dar muita bola para nada disso. Ela passa seus dias conversando com o túmulo do avô (tradicionalmente os mortos são enterrados na frente da casa da família; o melhor amigo de Foketi descansa logo embaixo de sua janela), raras vezes se aventura na praia a poucos metros de onde mora, e seu sonho é seguir os passos do velho. Ela quer ser a grande chefe da vila onde mora, e estuda para ser a próxima herdeira de Faamoe Etene. Hoje, quem ocupa o posto é seu tio, Faamoe Lagi, de quem até os 14 anos acreditava ser cunhada. “Todos te respeitam porque você é o chefe, todos obedecem às suas leis e seguem suas ordens. Mas sem medo, porque eu sempre tento ser engraçada e amorosa com as pessoas”.

Na Samoa, o governo federal tem um poder bem limitado. A capital Apia, na ilha de Upolu, tem menos de 40 000 habitantes, é a única cidade do país e funciona com algumas instituições que conhecemos no Brasil: universidade, escola, polícia. Mas não há prefeitos ou governadores. Quem manda são os Matai — os chefes de cada vilarejo. Mesmo Apia não conta como um só município, mas como a conurbação de várias vilas, cada um com seu próprio Matai, o que torna a cidade um caos administrativo. Mas esse é outro assunto. No resto da Samoa, onde os povoados são mais isolados, a lógica é um pouco mais simples: cada vila tem um conselho de Matais, formado pelo Matai de cada família local. A família que conseguir convencer às outras que tem a linhagem mais direta até os 16 Matais que estabeleceram este sistema, no início do século XIX, tem o poder de sentar na cadeira de Matai Title — o chefe supremo dali. É ele quem dirime os impasses no conselho, que por sua vez concentra os poderes executivo, legislativo e judiciário: recolhe dinheiro, decide como vai usa-lo, faz as compras e obras que julga necessárias, decide as regras, pune quem se desvia, e assim por diante. Até os anos 80 só os Matai votavam para eleger o Parlamento, e ainda hoje é preciso ter o título de chefe para ser votado ou ocupar qualquer cargo de alto escalão. “É muito difícil se tornar um verdadeiro samoano e merecer o título Matai dos anciãos. Preciso conhecer a fundo nossa cultura, nossas lendas, nossos provérbios, e ter sabedoria para tomar conta da família e de seu povo, e estou aprendendo com os mais velhos para poder ocupar meu lugar”, conta Foketi com um ar sério que não combina com seu jeito de adolescente risonha.

A relação dela com a família não é usual, de jovem aprendiz dos mais velhos. Até os 14 anos, ela vivia como filha do Faamoe Etene, chefe do vilarejo. Não só como filha, mas a preferida, a que caminhava com ele todos os dias pela manhã até a igreja, sendo treinada, sem nem perceber, para a responsabilidade de assumir o posto no futuro. Foi quando faleceu sua avó Finoa, que ela pensava ser sua mãe, que tudo mudou. A sua verdadeira mãe, Arasi, apareceu no velório, se apresentou, e lhe contou sua história: engravidara muito nova e seu namorado fugiu à responsabilidade de pai. Era chegada a hora de as duas se juntarem novamente. A pancada não foi forte só porque Foketi perdeu a mãe/avó. Também foi maior do que a percepção de que vivera uma mentira por toda a sua vida. De uma hora para a outra, e em seu momento mais vulnerável, suas até então irmãs, que sempre a trataram como uma igual, vestiram a carapuça de tias bruacas e passaram a lhe dar ordens.

Foketi é tudo isso, mas é também uma adolescente criada em um vilarejo perdido no meio do Oceano Pacífico. Gosta de ouvir músicas locais, que parecem saídas de um aparelho de karaokê ou de bases pré-programadas num teclado Yamaha, e é fã de sucessos do pop americano e internacional. Canta e dança tanto umas, quanto as outras, e vibra quando soa a voz de Justin Bieber nos versos de Sorry. “Ele é meu namorado, fez essa música para mim. Eu estava chateada com as bobagens que andou fazendo, mas agora ele pediu desculpas (na música Sorry, ‘desculpa’ em inglês) e eu o perdoei. Eu amo ele”, gargalha Foketi. Ela já tem um plano bem claro para a sua vida. No fim de 2016, pretende ir para Melbourne, na Austrália, onde tem tios e primos migrados da Samoa, e lá quer arranjar um emprego de meio expediente e voltar para a universidade — ela estudava pedagogia e artes na capital Apia quando o avô morreu, no ano passado. Como era ele quem pagava seus estudos, Foketi voltou para sua vila para trabalhar e ajudar a criar os meio-irmãos. Quando terminar o curso, pretende voltar para Fagamalo, seu vilarejo. “Meu avô tinha muitas terras aqui, e quero desenvolver algum negócio em um dos terrenos. É o caminho para mostrar que posso cuidar da família, e ganhar meu título Matai”. Mas antes disso ainda precisa conhecer outro país, casar-se com um pālagi (pronuncia-se ‘paalangui’, e é o termo usado para homens e mulheres brancos, similar ao nosso gringo), e tocar a vida como uma chefe Matai ao mesmo tempo que aproveita as benesses da vida num país ocidental desenvolvido. “Eu quero experimentar a vida num país estrangeiro porque dizem que é muito diferente daqui. A Samoa é pequena e nunca saí daqui. Quero viver o mundo”.

Não é só ela. Segundo algumas estatísticas, não confirmadas pelo governo, existem cerca de 100 000 samoanos vivendo fora do país (para 200 000 que moram na terra natal), a imensa maioria deles na Nova Zelândia (a NZ registrou cerca de 140 000 samoanos em seu território no último censo, mas esse número inclui filhos de polinesios nascidos na NZ). Outdoors ao longo das estradas fazem propaganda não de carros ou comida, mas de serviços de transferência internacional de dinheiro, como a Western Union ou a Send Money Pacific. A Samoa foi colônia neozelandesa entre 1914 e 1962, e até hoje estabelece uma cota anual de 1 100 vistos permanentes para os polinesios. Conversando aleatoriamente com as pessoas, é comum ouvir histórias de quem está esperando tirar “o número da sorte”, como eles chamam, para poder migrar para a lá, quase sempre para encontrar parentes que já conseguiram os documentos. Muitos, como sonha Foketi, querem a usar a cidadania kiwi como trampolim para a Austrália, que tem acordo de livre fronteira com a NZ. Mas, diferente da maioria, Foketi não admite deixar para trás seu vilarejo. “Alguns dos meus amigos não ligam para a cultura daqui, gostam mais do que veem no Facebook e na televisão. Eu acredito que aqui é nossa raiz, em nossos ancestrais, na sabedoria dos mais velhos. Nunca vou deixar isso para trás”.

--

--