Michael Colonna estava de saco cheio

Bruna Talarico
Gente Extraordinária
8 min readJan 6, 2016

Auckland, Nova Zelândia. Dezembro de 2015.

Michael Colonna estava de saco cheio. Achava sua vida maçante, não tinha paciência para a própria família e sentia que o mundo fervilhava lá fora enquanto ele perdia tempo cumprindo com obrigações que não via como suas. A única válvula de escape era a sua banda, a Frank E. Evans Lunchtime Entertainment Band, mas no fundo sabia que ele e seus amigos não tinham talento — muito menos fãs — para viver da música. Gastava todo o tempo, o livre e o ocupado, se debatendo com a dúvida do que fazer para mudar o rumo, para não atolar na armadilha da rotina casa-trabalho-casa-‘boa noite querida’. Foi com tudo isso na cabeça que Colonna saiu de casa numa sexta-feira de verão para encontrar os amigos, tomar cerveja e fumar uns baseados em um festival de rock nos arredores deWaihi, 140km a leste de Auckland. Entre um show e outro, achou que seria engraçado assistir à apresentação de um artista circense, Mr. Acorn. E foi ali, entre risadas frente a um espetáculo de marionetes, que vislumbrou seu futuro: Michael Colonna queria ser palhaço. Aos 30 anos, deixou para trás a esposa alcoólatra, uma filha de 3 anos e um currículo recheado de trabalhos braçais em fábricas e escritórios para cair na estrada com o circo.

Os neozelandeses adoram a estrada. Converse com qualquer kiwi ou maori, os brancos e os nativos locais, por mais de 2 minutos e ele te embrenhará em um longo colóquio sobre as maravilhas naturais que cercam as rodovias do país. Não que eles gostem de ser lembrados disso o tempo todo — eles detestam — mas o motorista realmente se sente num cenário de O Senhor dos Anéis, filmado nestas paragens, o tempo inteiro. Um terço do território total da NZ, de 268 mil quilômetros quadrados (o equivalente ao estado do Rio Grande do Sul), é de parques nacionais.

São florestas intermináveis, vastos rios de cor turquesa, lagos rodeados de montanhas com picos gelados, praias de areia branca ou de formações rochosas espetaculares… tudo isso dentro de uma viagem de algumas horas. A Ilha Norte pode ser percorrida de ponta a ponta em 13 horas, e a Ilha Sul em 12, com um ferry de três horas e meia entre as duas. Não é de se admirar que eles gostem tanto de dirigir para lá e para cá. Existe toda uma cultura de campervans, housetrucks e trailers para aproveitar o cenário. São verdadeiras casas ambulantes, com cama, banheiro e cozinha, e elas estão em toda parte. Só o maior clube de viajantes da região possui mais de 18 000 carros como esses registrados, e aí não estão contabilizadas as centenas de “apartamentos sobre rodas” para aluguel de turistas. Eles levam tão a sério o livre viver que o Congresso aprovou, há cinco anos, a Lei da Liberdade de Camping, que permite expressamente o estacionamento e pernoite desses carros em qualquer lugar, a não ser que as prefeituras insatisfeitas consigam provar que os viajantes estejam abusando do seu direito. Infelizmente, isso acontece e hoje boa parte dos 364 campings gratuitos oficiais só aceita carros “auto-contidos”, aqueles que têm estrutura para guardar os dejetos do vaso sanitário e água suja de chuveiro e pia. É claro que a maioria da população zanza por aí só nas férias, mas sempre tem quem leve a coisa longe demais. “Eu e Acorn construímos nossas próprias housetrucks. Não existiam essas maravilhas prontas de hoje, e passamos anos morando e viajando nelas”, diz Colonna. “A gasolina era barata, eu tinha público querendo pagar para me ver por toda a Nova Zelândia, e estava sempre querendo chegar na próxima cidade, no próximo lugar”.

Housetruck, ou caminhão-casa, construída pelo próprio Colonna em 1979

“Hoje, não penso mais a minha vida em termos de felicidade”, reflete um Colonna sexagenário, num fim de tarde em sua casa na beira da cratera de um dos 48 vulcões da cidade de Auckland.
“Cansei de correr atrás do meu próprio rabo”.

Pudera. Nos últimos 37 anos, foram dezenas de turnês de Cabo Reinga a Bluff, o ‘Oiapoque ao Chuí’ da Nova Zelândia. Na maior parte deles se apresentou como Walnut, the clown (Noz, o palhaço, numa tradução literal). Antes disso, Colonna tinha como sonho e ideal de felicidade viver na estrada e se sustentar. Até conhecer Acorn, de quem ficou amigo, conseguia uma coisa ou outra. Se sustentava batendo ponto diariamente nas fábricas principalmente como linotipista, e nos finais de semana viajava com sua banda para tocar músicas da I e II Guerras Mundiais. Numa época em que o rock psicodélico e progressivo já fazia a cabeça cabeluda de sua geração, tocar contrabaixo não rendia mais que uns trocados de uma audiência já grisalha. Mr. Acorn não era nenhum guitar hero — nenhum dos 3 milhões de neozelandeses da época o era — mas pagava suas contas sem precisar de endereço fixo. O primeiro passo do aspirante a palhaço, pois, foi colar naquele que já vivia o sonho dourado. Colonna começou como uma espécie de empresário. Fazia cada cidade saber que Acorn estava a caminho, promovia os espetáculos e organizava apresentações em escolas. A filosofia coletivista dos anos 70 os levou a se juntarem a um circo, onde se virou como engolidor de fogo. “Eu queria aprender a ser palhaço, e achava que o circo me ensinaria”. Bobagem. Tudo o que se fazia ali eram números bem ensaiados, sem personalidade e, para o gosto de Colonna, sem graça. “Fui estudar palhaçaria por conta própria, e assim faço até hoje”.

O festival de Nambassa foi um marco na cultura neozelandesa. As principais bandas a tocar no evento foram a Little River Band e a Split Enz, que não passavam de sucessos localizados, sem grande relevância. Não foram, portanto, rockstars que atraíram as mais de 65 000 (os relatos variam até 75 000 pessoas) para uma fazenda no litoral neozelandês, mas a busca por novas maneiras de se encarar a vida. Enquanto eventos consagrados como Woodstock e Ilha de Wight reuniam entre 80 e 100 mil para assistir a bandas famosas em um palco, Nambassa já ia além com três ribaltas e dezenas de espaços para oficinas e palestras sobre os mais variados temas. Liberdade de imprensa e expressão, homeopatia, cultura Maori, astrologia, acupuntura, meditação, direitos humanos, ecologia, energia solar, energia nuclear, teatro, rádio amador, yoga, planejamento familiar, liberdades civis, vegetarianismo, agricultura hidropônica e orgânica… a lista é interminável. Em uma população de pouco mais de 3 milhões de habitantes à época (hoje são cerca de 4,5 milhões), mais de 2% dos neozelandezes estavam reunidos no mesmo lugar para se inteirar por esses assuntos. Havia uma óbvia demanda reprimida por mais liberdade de pensar. “A Nova Zelândia era muito fechada em si mesma neste canto do mundo, e a gente, os jovens, queríamos nos libertar disso. O Nambassa foi a nossa forma de parar de reclamar e fazermos nós mesmos a mudança”.

Na mesa do jardim de sua filha do meio, Victoria, Colonna conta suas histórias entre uma gargalhada banguela e outra. Seu neto Jacob, de 12 anos, quica de um lado para o outro, imita os convidados e conta piadas de toc-toc para chamar a atenção. Seus olhos, na verdade, buscam a aprovação do avô herói. Quando o moleque excitado é mandado para o quarto por uma mãe enfadada, todos sabem que é mera questão de tempo até que aconteça de novo. O garoto é fascinado pelo velho. Dias depois, em sua sala desarrumada na beira do vulcão, Colonna conta com um mal disfarçado orgulho que seu outro neto é ainda pior. “Ele canta a música do Walnut o dia inteiro”. Perguntado sobre a curiosa situação de largar uma filha de 3 anos para levar sorrisos aos rostos de crianças desconhecidas, Colonna desconversa incomodado. “Agora você está indo fundo demais”.

Há sete anos, ele foi passar umas semanas com a herdeira abandonada, Cindus, que passava uma temporada em Londres. “Finalmente pude conhecê-la, conversar com ela, e foi maravilhoso”, relembra emocionado. “Pedi desculpas e ela entendeu, porque, você sabe, aquele era eu nos anos 70”. Mirando o vulcão, Colonna, ou Walnut, recorre frequentemente a parábolas, frases famosas ou trechos de músicas para explicar uma vida calcada em extremos: de trabalhador braçal a artista itinerante e, por fim, pai e avô tardio, mas em tempo integral. “Muitas pessoas gostam de se manter ocupadas. Elas saem de barco, vão para o alto mar, pescam, limpam o pescado… mas não encontram a quietude. É importante ter uma missão, mas mais importante que isso é ser. É encontrar quietude”.

Ele pausa a entrevista para buscar um livro, ‘Carne Zen, Ossos Zen’, ao qual diz recorrer de tempos em tempos. Conta uma de suas histórias preferidas, sobre um sujeito que queria encontrar a felicidade. Um homem sábio o orientou a procurar a pessoa mais feliz do mundo, e pedir a ele sua camisa. O homem fez isso. Foi a uma cidade, achou o cara mais feliz de lá, mas ouviu que havia um homem ainda mais feliz no vilarejo seguinte. E isso se repetiu algumas vezes, até que finalmente ele achou quem procurava. Contou sobre sua jornada atrás da camisa da pessoa mais feliz do mundo. O homem feliz sorriu e disse: ‘Mas eu não tenho camisas’.

“Eu persegui a felicidade achando que quando eu conquistasse algo, ou tivesse algo, que eu seria feliz. Mas o que acontece é que as pessoas seguem mudando o objetivo toda vez. Quando você consegue algo, você já está tentando conquistar algo novo. Não que isso seja bom ou ruim, é simplesmente a natureza humana. Você precisa chegar a um ponto onde possa dizer ‘eu tenho tudo o que preciso, é o bastante’”.

A foto que abre o artigo e o vídeo acima são de autoria do projeto Gente Extraordinária.

Todas as outras são do arquivo pessoal de Michael Colonna.

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Bruna Talarico
Gente Extraordinária

Jornalista brasileira, estudo Media Management em Nova York para encontrar novas maneiras de comunicar o mundo. Co-fundadora do projeto Gente Extraordinária.