O grito que glorifica o goleador é o mesmo que mortifica o goleiro

Lewd D Sistinas
Genus irritabile vatum
10 min readJan 2, 2016

-Vai levando Victor Hugo Morales, ultrapassa a linha divisória do gramado. Olha a categoria desse argentino, vem o volante no primeiro combate… ihhh! Lindo drible, passa debaixo das pernas, deixou o marcador falando sozinho! Betão esperto na sobra, não, não Betão! Se enrolou coitado! Ainda Morales, inteiro no lance, vem conduzindo pelas quebradas da esquerda… belo passe, serviu Dico, tá na área… tem que chutar artilheiro, senta o dedo! Cortou pra dentro, vai, vai OPA PÊNALTI! O juíz tá dando!

Bola na cal, peeeeeeeeeeeenalidade máxima!

-Genial o lance do Dico! É um craque da bola! Na bacia das almas, 44 do segundo tempo! O jogo já tava resolvido, aí ele usou toda sua malandragem e cavou um belo pênalti e…

-Cavou? Pra você não foi falta, Simão?

-Eu não apitaria. Dico é malandro, né? Ele é craque, mas nunca foi convocado. Dizem que apronta demais fora das quatro linhas…

-Vamos ver no replay, né? Pode custar o título da Associação Atlética Nova Academia, que ‘tava sendo campeã com esse empate sem gols. Olha o pé do zagueiro ali ó Simão: pegou. Pra mim pegou, entrada criminosa no Dico!

-Não pegou não, acompanha a trajetória da bola. Ele bate na bola primeiro e DEPOIS pega a canela, choque normal. Digo e repito: eu não apitaria esse pênalti!

-As análises sempre justas e imparciais do ex-árbitro Simão, nosso comentarista de arbitragem. Mas o juiz lá no campo não tem o replay das nossas quarenta e oito câmeras exclusivas para essa transmissão e deu o pênalti! A esperança da torcida da Atlética agora é que o Bilé opere um milagre. Ele é pegador de pênaltis hein? Defendeu quatro já esse ano, tá cotado pra substituir o Novikov na Liga dos Campeões. Vamos falar com nosso repórter lá no gramado: o que conseguiu ver daí, Junior?

-Pra mim foi muito pênalti. E sobre o Bilé, dizem que ele já assinou um pré-contrato com os europeus durante a semana, tá só esperando acabar o campeonato pra formalizar.

-Boa Junior, show de informação é aqui com a gente. Vamos lá, o árbitro já controlou os ânimos. O tempo ameaça fechar… OPA! Olha lá o capitão da Atlética! Tá sendo expulso por reclamação! O estádio inteiro na expectativa agora. O Dico já tá ali na cal, esperando pra bater. Bilé bebeu uma água ali junto a trave, tá indo ali catimbar um pouco, olhos nos olhos… fala uma gracinha pro artilheiro Dico. Alguma câmera pegou pra fazer a leitura labial? Essa malandragem faz parte, né Simão?

-Sim, mas o Dico é experiente, não vai cair nessa.

-Autorizado pelo juíz. Metade do estádio seca o artilheiro enquanto ele vai pra bola. Caminha devagar, vai bater com categoria. Foi pra bola, bateu…

DEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEFENDEU BILÉ! Milagre! Sensacional!

-Foi buscar no cantinho! Incrível! Pode correr pra galera que essa defesa garante o título e entra pra história!

-Daqui de onde estou já dá pra ver vários torcedores invadindo o gramado!

-Ah, mas também depois dessa defesaça não tem mais jogo, né? Com esse lance magistral termina um dos campeonatos mais disputados da história, um dos maiores jogos que já tive a oportunidade de narrar com o patrocínio das…

Sempre que assisto esse vídeo eu pauso no momento da invasão do gramado. Perdi a conta de quantas vezes assisti esse lance esperando que as coisas acontecessem de maneira diferente, esperando o gol! Se você já assistiu um VT mesmo sabendo que seu time perdeu, então entende essa minha vã esperança. Agora multiplique por mil, pois esse pênalti marcou todos os anos da minha vida.

Não sou daqui. Acabo de chegar do futuro, me valendo de um procedimento experimental de viagem no tempo.

Se tivesse uma oportunidade de mudar sua história, você mudaria? Vou perguntar de novo, e melhor: e se tivesse apenas UMA chance, e uma chance clandestina, sem volta?

Pois é. Eu quis mudar. Vou te explicar como.

Minha mãe não gosta de falar desse fatídico lance. Dona Débora, que nessa época era conhecida como “Debs”, me criou sozinha. Ela era o que vulgarmente chamamos de “Maria Chuteira”, ou seja, uma jovem linda, tão deslumbrante quanto deslumbrada com esse mundo milionário dos jogadores de futebol. Esses caras saem da pobreza e se tornam milionários da noite pro dia. Mal entram na vida adulta já ganhando salários absurdos; são os deuses do planeta bola. Meninas tatuam seus nomes no corpo. Minha mãe tem o apelido artilheiro do meu pai, Dico, tatuado no antebraço.

Sim, meu pai é o Dico-que-perdeu-o-pênalti-decisivo. Eles se conheceram num churrasco na casa do goleiro Bilé. Esses caras só são rivais dentro de campo. Fora dele, eles formam um clubinho exclusivo de ostentação, atraindo moças com o perfil da “Debs”.

Vamos do começo, só assim você vai entender o que estou prestes a fazer: fui concebido num carro de luxo, na frente da casa da minha mãe, logo após essa final de campeonato. Depois desse jogo aconteceram muitas das coisas que me definiriam para sempre. Dico estava arrasado com a derrota e Debs quis consolá-lo. Pelo jeito não funcionou; a carreira dele depois desse pênalti foi decaindo até chegar nas drogas. Abandonado pelo time, Dico literalmente “cheirou” aquele carro. E depois seguiu sua vida por um caminho diferente do da minha mãe.

Ela me sustentava com o dinheiro que um estranho depositava mensalmente, um estranho que a abordou na rua naquela mesma noite fatídica. Sempre achei essa parte do meu passado esquisita. Esse estranho devia ser algum admirador secreto, já que ela era muito cobiçada. E ele lhe disse que dinheiro não iria faltar ao filho que nasceria. Como nem imaginava estar grávida, Debs aceitou.

A previsão do estranho se confirmou 9 meses depois. E eu nasci, mais fruto de um ato do que de um amor.

Só encontrei meu pai uma vez. Eu já tinha idade suficiente para fazer perguntas. Lhe perguntei o porquê, para tentar entender. A resposta seca dele ainda ecoa em meus ouvidos: “Sua mãe gosta de perdedores.

Só quando completei dezoito anos é que fui ter a oportunidade de compreender essa frase. Em 2030 teremos a primeira viagem no tempo clandestina. Sem futuro, só volta ao passado. Arriscadíssimo, sem garantias, viagem só de ida. Ou volta, sei lá. Enfim, mão única. Eu, que não tenho futuro, resolvi me inscrever no programa para salvar meu passado.

Passei a vida inteira ouvindo as histórias da minha mãe sobre como ela entrava no Estádio Municipal, com quem falava e quais gírias e códigos usava. Eu já tinha todas essas informações e o mapa do estádio na cabeça desde criança, então não foi difícil me infiltrar.

Agora estou aqui, dentro dos vestiários, pra modificar a história. Furtei uma camiseta da marca de água patrocinadora do evento, essencial pro meu plano. Vai começar o segundo tempo da final do campeonato, vou subir ao gramado e ficar atrás do gol do Bilé. E é lá, dentro das quatro linhas, que vou mudar minha vida para sempre!

Confusão na área. Aproveito e troco a garrafinha do goleiro pela minha que tem água “batizada”. Ninguém percebe, todo mundo está discutindo se foi pênalti ou não. O goleiro Bilé é o mais exaltado de todos, as veias do pescoço saltadas enquanto ele berra com o árbitro. Dico lá atrás sorri, já com a pelota embaixo do braço. O capitão do time escuta o juiz insinuar que um pênalti seria bom pro espetáculo e se descontrola de vez. Leva o cartão vermelho. Tudo o que assisti inúmeras vezes torcendo sem poder interferir agora acontecia ali, diante dos meus olhos. Aos poucos o juíz consegue controlar os ânimos e esvaziar a área. O goleiro pega minha garrafinha e bebe mais da metade do conteúdo num gole absurdo. Depois caminha na direção do Dico, que tá “conversando” com a bola enquanto a ajeita na marca fatal.

O estádio inteiro silencia para acompanhar a cobrança. Olho ao redor e vejo apreensão, ansiedade, fé.

Estou perto o suficiente para escutar a provocação do goleiro: “A Debs tá me esperando, sabia? Disse que tem uma surpresa pra me mostrar.” O artilheiro finge não se importar com o que foi dito. Vai bater na bola com mais violência do que me lembro. Isso Dico, capricha dessa vez!

Bilé dá um passo para a esquerda para iludir o atacante, para dar a falsa impressão de que o outro canto estava mais aberto. Já flexionava a perna pra dar impulso, saltar e ir buscar a bola com a pontinha dos dedos. Dico não vai na dele e mantém o olhar concentrado. O goleiro dá um segundo passo errático, vacilante. A água batizada fazendo efeito. Ali, naquele pedaço ingrato do campo onde a grama verde não vinga, ele não tem mais nenhuma convicção em qual canto deve pular. Perdera o duelo antes mesmo do chute.

O baque surdo, o som da bola estufando a rede… e o grito eufórico explode na arquibancada! O mais impressionante é que era o mesmo grito, o mesmo êxtase que eu ouvia no vídeo, só que agora vindo da outra torcida, da outra metade do estádio. A onda sonora arrepia meu corpo inteiro. Bilé cai de costas dentro do gol, resignado e meio tonto. Nem vejo quando Dico passa correndo por mim, pula no alambrado e vai pra torcida, que brada

Ão, ão ão, o Dico é Seleção!

Missão cumprida! Pressentindo a invasão da massa de torcedores, o juiz leva o apito aos lábios e trila, um encerramento inaudível no meio daquela catarse futebolística. Vou descendo as escadarias, nadando no sentido contrário do mar de gente que me acotovela para subir ao palco daquela final épica. Não consigo tirar da cabeça a frase provocativa do goleiro pro meu pai. Eu tinha que ir pra casa da Debs. Apesar de arriscado, tinha que visitar minha mãe!

Em meu caminho fui acompanhado pela torcida vencedora do clássico, que alegrava o ônibus e pintava a cidade com suas cores e bandeiras. Ficamos muito tempo presos no trânsito da capital, que parava pra saudar seu novo campeão. Entre um grito de guerra e outro, era possível escutar o radinho de pilha de algum idoso. Entre chiados e ruídos, algum cronista folclórico dava parabéns aos campeões e repudiava a atitude do time derrotado de abandonar o estádio logo após o término da partida. Entre buzinaços e provocações, escuto que a proposta de transferência do goleiro Bilé era uma mentira plantada na imprensa pra valorizar seu passe e conseguir um aumento de salário junto ao clube.

Eu desço do ônibus perto da casa da Debs. Longe dos radinhos e da gritaria, vejo uma Grand-Cherokee vermelha estacionada. O jeep brilha, destoando de todo o cenário, impossível não notá-lo. Demorei muito para chegar, eu não esperava mais encontrá-lo ali. Sem ter o que fazer, subo pela rua estreita (ainda mais estreita com aquele monstro de quatro rodas ocupando quase toda a passagem), pensando na conversa surreal que viria a seguir.

“Oi mãe! Sou eu, Edson, seu filho!” Não, não… e se eu disser meu nome e isso influenciá-la de alguma maneira? E se ela resolve mudar na hora de me batizar? Melhor não.

“Oi, você não me conhece, mas…” Não, não! Ela vai pensar que é uma cantada. Nessa época ela só tem dezessete anos.

Debs desce do carro nesse instante, sorrindo. As maçãs do rosto avermelhadas pelos momentos de paixão. Está linda, chamativa, cabelos e roupas em desalinho. Principalmente roupas. A Cherokee arranca, cantando pneus e passando rente à mim na calçada. E se ele me atropelasse, eu ainda nasceria? O quanto minha simples presença aqui pode modificar o passado?

-Você tá bem? — minha jovem (e linda) mãe me pergunta.

Pego de surpresa, gaguejo muito antes de conseguir responder um “sim” esbaforido. Não era desse jeito que tinha planejado puxar assunto com ela, mas tá valendo. Segue o jogo. Passo a mão pelo ombro esquerdo olhando para trás, para o jeep vermelho desaparecendo na curva. Pelo que ela me contava no futuro, essa foi a última vez que “estiveram juntos” de maneira íntima. Daí em diante a carreira do jogador declina, e ele se isola. Pra completar ela descobre estar grávida e vai atrás dele com essa notícia. Vem a esperada negação e as brigas. Mas eu mudei tudo isso agora, salvei a família. MINHA família. Dico é Seleção!

-Desculpe por isso. Meu namorado é assim mesmo, meio ciumento, esquentadinho. E ele perdeu o jogo hoje, tá meio puto da vida. — ela interrompe meus pensamentos.

“Peraí, perdeu o jogo?” — meu cérebro processa a informação e entra em parafuso. Abaixo a cabeça, ainda tentando adivinhar as mudanças e paradoxos temporais, quando ela põe a mão no meu ombro. Leio seu antebraço de relance e enfim entendo tudo. Sem muita escolha, procuro pelos bolsos um maço de dinheiro. Estendo uma quantia bem razoável a ela.

-O que é isso? — ela arregala os olhos, se afastando de mim. Na minha cabeça Dico repete, debochado: “Sua mãe gosta de perdedores.

-Não vai faltar dinheiro à criança. — eu digo essas palavras de maneira fria e calculada. Também estou chocado, mas o que mais poderia dizer? Acabo de chegar do futuro, acompanhado apenas de uma pequena fortuna em dinheiro vivo. Notas que não valem nada em 2030, por isso me deram em quantidade generosa para que eu topasse os riscos do procedimento experimental de viagem no tempo.

Debs soltou um risinho nervoso e esquivou-se, recusando o dinheiro. Insisti com mais firmeza, dessa vez me fixando em seus olhos sonhadores. Ela deve ter reconhecido algo em mim nesse momento — algo dela morando em meus olhos, talvez — nunca vou saber. Então pegou as notas devagar, com uma melancolia que só conheceria quando fosse mais velha. No seu antebraço brilhava uma tatuagem recente, ainda inchada e avermelhada: “Bilé”.

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Lewd D Sistinas
Genus irritabile vatum

Escrevo contos de terror e erotismo desde 2000 no site www.sistinas.com.br e pretendo postar aqui contos que não se enquadram no cenário de Sistinas.