Tsukumogami

Lewd D Sistinas
Genus irritabile vatum
7 min readJan 2, 2016
© Discover Nikkei

Era um 14 de dezembro quente e a cabeça de Beatriz doía como se o cérebro estivesse solto lá dentro, batendo contra o crânio a cada passo vacilante que ela dava.

De acordo com o pessoal da previsão do tempo, a culpa da alta temperatura daquela tarde era a falta dos ventos úmidos da Amazônia. Como podia a floresta, tão distante, afetar o clima do país inteiro? A sensação térmica já passava dos 40 graus quando ela abriu a bolsa e procurou por um lenço de papel para limpar o suor da testa. Só encontrou lenços ordinários. Tinha esquecido os umedecidos em casa.

Apesar do calor insuportável, Beatriz não suava. Passou o lenço pela testa e ele continuou seco. Surpresa, tentou outra vez, descendo pelo rosto, pescoço e nada. Sentia a pele esturricada, tão seca e áspera quanto seus lábios.

Ela estava no coração do Japão no Brasil, bem no meio do bairro da Liberdade. Gostava de andar por ali pela culinária, cultura, pelos eletrônicos, fofurices e pela magia ancestral que se concentrava naquelas ruas. Mas agora procurava nas vitrines uma sombrinha para comprar e se proteger daquele sol forte que levantava um vapor turvo do asfalto escaldante. Algumas pessoas passavam por ela de maneira acelerada. Outras se limitavam a observá-la de longe e algumas até apontavam em sua direção, cochichando. Sua visão embaçou até falhar completamente e Beatriz enfim desmoronou, desmaiando no calçamento quente.

Mergulhou num pesadelo alucinado, caindo no meio de uma procissão de coisas que marchavam como pessoas e conversavam em japonês. Uma lanterna de papel chorava, consolada por um rosário. Sandálias desgastadas caminhavam junto à um guarda-chuva com perna humana. Atrás deles um kimono vazio levitava no ar, dançando ao som de dois instrumentos musicais de corda, um se parecia com uma cítara e o outro com um alaúde. Uma garrafa de sakê corria, derramando seu conteúdo mas sem se esvaziar. Beatriz, assustada, percebeu que era hora de acordar daquela angústia.

Enquanto recobrava a consciência aos poucos, ouviu duas vozes, ambas muito velhas:

-Ela está melhorando, dê-lhe mais água.

-Hai.

-Devagar, não é para afogá-la!

-Ee!

Abriu os olhos, mas a claridade do ambiente fez com que piscasse. Suas costas acusaram que estava deitada numa superfície fresca e lisa. Beatriz tentou se levantar num movimento brusco, mas a tontura a desorientou, então sentou-se devagar, apoiando as costas na parede. O lugar era bem arejado e calmo. Era assistida por um velhinho com semblante preocupado e uma garrafa de água quase vazia, desbotada e sulcada. Parecia ainda mais antiga do que ele.

-Fique tranquila. Teve um começo de insolação, mas nós hidratamos você.

“Nós?” — Beatriz se perguntou, enquanto procurava pela outra voz. Tentou girar a cabeça mas a vertigem não deixava. O velho japonês colocou suavemente a mão esquerda em seu ombro:

-Acalme-se. Quando estiver melhor poderá se levantar. Teve sorte, não bateu a cabeça na queda. Como se sente?

-Bem… melhor. — ela respondeu, sem firmeza alguma na voz — Onde estamos?

-Na minha loja de utilidades.

-Oh — Beatriz massageou a nuca — Que bom. Preciso de uma sombrinha, por acaso teria uma aí para me vender?

-Ah, não. Aqui é uma loja de ferramentas. Se quiser comprar um esquadro japonês importado eu tenho, mas sombrinha não.

Ela olhou ao redor. Realmente, o velho tinha uma infinidade de apetrechos, utensílios e ferramentas das mais diversas.

-Minha neta Mayumi está em casa fazendo o Susuharai. — ele continuou — Nosso ritual de limpeza do fim de ano. Mas eu a chamei pra cá, pra me ajudar com você.

-Ritual de limpeza?

-Ah, vocês brasileiros não tem nada parecido com isso, né? Limpamos tudo, jogamos fora as coisas que não tem mais utilidade, reorganizamos papelada, livros, móveis, tudo.

-Nossa, minha casa está uma bagunça. — Beatriz sorriu — Seria uma boa fazer uma faxina dessas, sabe?

-Não é apenas uma faxina. É uma limpeza física mas também espiritual. Com esse ritual dissipamos toda a energia estagnada do ambiente e o preparamos para o ano novo que se inicia. Casa renovada, energias renovadas!

-Que ritual lindo. É budista?

-Xintoísta. Eu me tornei xintoísta durante a Segunda Grande Guerra. Tento iniciar minha neta no “Shinto”, por isso repassei esse ritual da limpeza para ela. Sabia que, para o Xintoísmo, até mesmo objetos inanimados podem alcançar a iluminação? Está ao alcance de todos. Existe uma lenda, ou parábola, como quiser chamar… que conta como alguns objetos adquiriram consciência quando completaram cem anos de existência.

Beatriz automaticamente olhou para a intrigante garrafinha de água ao lado do velho. Parecia mais com a garrafa de sakê que sonhara e, pelas ranhuras em sua superfície, devia ter muito mais que um século de vida. Nesse instante uma moça entra correndo pela porta do estabelecimento:

-Jii-chan!

-Oh, essa é Mayumi-chan. — disse o velho, apresentando as duas — E essa é a moça que socorri. Vocês parecem ter a mesma idade.

Mayumi sentou-se à esquerda, tomando a mão de Beatriz entre as suas:

-Precisa se hidratar. Bebeu bastante água? Tome mais um pouco, por favor. — ela pegou a garrafinha velha e a encostou nos lábios ressecados da visitante. Beatriz estava meio desorientada, mas tinha certeza de já ter bebido toda a garrafa. Mesmo assim ainda vertia água ali de dentro.

-Aposto que meu avô já estava te contando sobre os objetos que ganham vida, os Tsukumogamis, certo? — Mayumi piscou — Eu gostaria muito de ter um celular tsukumogami.

-Você teria que viver cem anos pra testemunhar isso Mayumi. Além disso, duvido que exista algum celular que continue funcionando por tanto tempo. As coisas hoje em dia são feitas pra quebrar. E ainda tem a questão da eletricidade, que afasta os espíritos.

-Ela precisa de uma compressa fria de camomila, pra baixar a temperatura do corpo. — a neta desconversou. O velho então se levantou com uma vitalidade invejável, dirigindo-se para os fundos do estabelecimento.

-Seu avô tem uma saúde de ferro, hein? — comentou Beatriz, enquanto Mayumi a ajudava a se erguer do chão.

-Viu as manchas na pele dele? Jii-chan é um hibakusha.

-Hiba…? — Beatriz freou a língua. O jeito como Mayumi falou deu peso e importância à palavra, então ela teve medo de ser deselegante pronunciando errado.

-Um dos afetados pela bomba de Hiroshima. A cidade que foi bombardeada na Segunda Guerra, sabe? Ele sempre conta a história. Lembra da hora exata que a bomba caiu. Não teve barulho, apenas um imenso clarão repentino que derreteu prédios e pessoas e o lançou muito longe. A manhã virou noite e depois caiu uma chuva ácida, negra como petróleo, queimando os que não morreram com a explosão.

-Pelo pouco que sei, foi horrível. — comentou Beatriz, enquanto massageava os próprios pulsos.

-Foi pior. Jii-chan conta que pouco antes da bomba ser lançada teve toque de recolher e as pessoas se refugiaram em abrigos. Mas suspenderam o alerta pois não imaginavam que um avião pequeno poderia causar tamanha destruição. O povo voltou à sua rotina normal de segunda-feira e no minuto seguinte se desintegraram. Viraram marcas no chão.

-Foi um verão ensolarado, aquele. — recomeçou o velho, de maneira triste, voltando à conversa trazendo as compressas — Naquela época tirávamos fotos usando flash de magnésio. O brilho que vi era mil vezes mais forte. Minha pele ardeu alguns segundos depois.

-O rio Ota se encheu dos cadáveres de gente que se atirava para aliviar suas queimaduras. — continuou Mayumi — Os peixes morreram todos. As pessoas desesperadas bebiam a água que caía do céu e morriam envenenadas horas depois. Jii-chan estava soterrado nos escombros quando foi resgatado pelo Corpo Patriótico de Voluntários. Esses homens eram das cidades vizinhas e tinham ordens pra não deixar ninguém beber água, por causa da contaminação.

-Eu fiquei cinco dias sem beber daquele veneno. Sabia que morreria se bebesse.

-Cinco? Mas um ser humano normal não aguenta nem quatro dias inteiros sem água! Como o senhor conseguiu sobreviver?

Jii-chan e sua neta sorriram, cúmplices. E a velha garrafinha transbordante agora estava atrás deles, ao longe, lá no meio do balcão. Beatriz piscou para ter certeza, pois sabia que ela não estava lá antes. E enfim entendeu o que era um tsukumo…

“Como era palavra mesmo?” pensou. Como a cidade de São Paulo atravessava um período de seca histórica e grave crise no abastecimento de água, Beatriz não teve dúvidas e emendou um pedido:

-Sabe… Vou querer uma das suas garrafas de sakê, Jii-chan. A mais velha que tiver aí pra me vender. Nunca se sabe, né?

Ele tinha. Uma com uns quinze anos, ali na prateleira. Embrulhou o objeto com cuidado, quase com devoção.

Na despedida, tanto Mayumi quanto seu avô se inclinaram levemente, gesto que Beatriz repetiu com respeito e admiração. Qual a chance de alguém acreditar naquela história de uma garota que bateu a cabeça e acordou desorientada… se ela resolvesse contar um dia?

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Lewd D Sistinas
Genus irritabile vatum

Escrevo contos de terror e erotismo desde 2000 no site www.sistinas.com.br e pretendo postar aqui contos que não se enquadram no cenário de Sistinas.