A Arte, Seus Signos, Significados e Significantes… E a Indústria!

Diego Nantes
O Gerador de Van de Graaff
7 min readNov 20, 2017

Em Watchmen, “novela gráfica” de Alan Moore e Dave Gibbons, publicada entre 1986 e 1987, há uma história dentro de uma história. O conto base refere-se a como seria o mundo real se existissem heróis e vilões encapuzados, ambos à margem da justiça formal, e sobretudo quais os rumos a humanidade tomaria se um único ser extremamente poderoso (de forma metafísica) vivesse na Terra e como os Estados Unidos da América o usaria na ainda mais terrível Guerra Fria desta realidade. Repleto de desconstruções e recriações acerca do gênero, de questionamentos filosóficos inquietantes sobre a própria natureza do Século XX (com sua violência estatal e individual) e o “custo-benefício” do mal menor pra um bem maior, Watchmen estourou suas fronteiras e ganhou prêmios de literatura como o Hugo Award na categoria “outras formas”.

Na distópica história em quadrinhos de vanguarda, que também denunciava o ridículo e incoerente de seu próprio gênero até li, há como se ingenuamente colocado um menino que lê um conjunto de revistas perto de uma banca, mas sem nunca comprá-las. Essas cenas salpicadas por entre a trama principal mostram a reação das ruas ao que ocorre proximamente ao fim do mundo (uma Guerra Fria mais tensa nesta ficção), a reação aos desdobramentos das ações das personagens principais e também o conteúdo em si do material (uma grande metáfora do enredo superior) na mão do moleque, mostrado ao leitor do mundo real… Ao ler toda a trama que passou por suas mãos, mesmo assim o garoto nunca sai dali, e ao ser questionado pelo dono da revistaria sobre o por que dele continuar folheando, o mais jovem diz: “É que não faz sentido… É por isso que eu leio e releio”. Faz sentido, visto que só se pode compreender todas as nuances de Watchmen após algumas leituras. A complexidade marca aquele que usufrui da arte, este levando consigo uma experiência realmente construtiva.

A posição dos signos é um fator crucial de reflexão sobre os rumos que a arte vem adquirindo, sobretudo a partir do início da década de 1980. Estes ícones e símbolos podem transitar numa espécie de medida de profundidade de uma criação artística, desde uma superfície extrema (como os insetos que andam sobre a água) até um intimidador profundo (como as Fossas das Marianas), onde seus significados e significantes os acompanham, uns mais aparentes outros mais “invisíveis”. O cerne da questão é que há, de forma relevante, uma relação direta entre a riqueza da informação e o quanto ela não está tão claramente “chapada”, isto é, de que o óbvio, num pacote onde nem se precisa desatar o laço (a caixa já vem até aberta), trata o decodificador como um imbecil e este em reação imbeciliza-se.

De nenhuma forma pretende-se escarnecer aquilo que é popular ou até massificado (que aqui compõe um significado diferente a industrializado). A arte popular, algumas vezes simples e de objetivos culturais claramente expostos, possui em sua essência algo de extremo valor para a criação: A “originalidade” e a “espontaneidade”. As aspas servem ao intuito de fazer notar que praticamente nenhuma obra do engenho humano é uma bolha impermeável às influências anteriores e concomitantes, sejam também de ordem artística ou histórico-social.

Milton Nascimento e Fernando Brandt, em algumas de suas obras, simplesmente escreveram sobre coisas corriqueiras, de superficialidade aos signos considerável, sem maior “remelexo mental”, mas porque queriam fazê-lo… Porque assim o desejavam. Porque seus impulsos artísticos levaram-os a isso. Da mesma forma como também engenhavam coisas como esta:

(…)

Um espelho feria meu olho e na beira da tarde
Uma moça me vê
Queria falar de uma terra com praias no norte
E vinhos no sul
A praia era suja e o vinho vermelho
Vermelho, secou
Acabo a festa, guardo a voz e o violão
Ou saio por aí
Raspando as cores para o mofo aparecer

(…)

(Milton Nascimento e Fernando Brandt — Ao que Vai Nascer)

Em entrevista ao site da internet Memórias Reveladas, em 09 de Novembro de 2012, Fernando Brandt revela “Esse mofo, é que na época do Médici havia muitos cartazes com propagandas coloridas”. Para a revista Histórica, em artigo publicado na edição nº 54 de Junho de 2012, Brandt expõe: “Na época, um dos slogans de propaganda do governo Médici era ‘Brasil — País do Futuro’. Eu escrevi ‘Brasil é o país do futuro/meus filhos, meus netos o futuro está aqui’, e continuava por aí com esse tom irônico. Eles proibiram essa parte. Então mudei para ‘queria falar de uma terra com praias no norte/e vinhos no sul/a praia era suja e o vinho vermelho/vermelho secou’. Acho que assim ficou ainda mais forte. E passou. Azar deles.”

Não há problema em vender, em ganhar dinheiro com a arte, sobretudo ao adotar-se o pragmatismo consciente de sobrevivência a um mundo frio e cruel capitalista, mas o ponto tenso está na pura e simples industrialização da arte. A banda Chico Science e Nação Zumbi conseguiu muito relevante sucesso comercial, inicialmente somente no Recife e posteriormente em todo o Brasil com seu Manguebeat. Mesclando Maracatu, Rock, Hip Hop, Funk Rock e música eletrônica, com exalação de grande crítica social às mazelas brasileiras (e sobretudo nordestinas e recifenses) o eclético estilo (até em seu movimento interno) foi digno de receber um documentário da BBC de Londres sobre seu nascimento, desenvolvimento e ampla relevância criativa. Incrivelmente, o Manguebeat é mais conhecido hoje na Europa do que no Brasil:

(…)

A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce.
A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce.

A cidade se encontra prostituída,
Por aqueles que a usaram em busca de saída.
Ilusora de pessoas e outros lugares,
A cidade e sua fama vai além dos mares.

No meio da esperteza internacional,
A cidade até que não está tão mal.
E a situação sempre mais ou menos,
Sempre uns com mais e outros com menos.

A cidade não pára, a cidade só cresce
E de cima sobe e o de baixo desce.
A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce.

Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tú.
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus. (haha)
Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tú.
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus. (ê)

Num dia de Sol, Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior.

(Chico Science e Nação Zumbi — A Cidade)

Quem dera o grupo Chico Science e Nação Zumbi tivesse vendido mais, feito mais shows para milhares de pessoas excitadas e espremidas, aparecesse mais no Programa do Faustão, no Programa do Gugu, nas telenovelas, ou nas propagandas das diversas fontes midiáticas. Haveria de ser então, tudo isso, um mal menor. Mas urge aqui o questionamento de um “se”, baseado na engenhosidade amarga da indústria cultural: Essas “fábricas de arte”, quando se deparam com expressões espontâneas culturais, primeiramente tentam abafá-las, desacreditá-las, ofuscá-las com suas ferramentas de dispersão amebizantes. Tentam demolir a já pobre concorrência. Quando isto não dá certo, o empreendimento artístico capitalista “captura” o alvo subversivo a fim de também explorá-lo e usá-lo como meio de lucro, sobre os consumidores, muitas vezes descaracterizando e/ou arruinando o impulso criativo original. Se Chico Science não tivesse morrido em 1997, este ser criativo teria se vendido? Muito possivelmente não, assim como a Nação Zumbi (nome após a morte de seu líder intelectual) continuou fiel a seus ideais.

A maioria dos jovens no Brasil está constantemente excitada, buscando experiências efêmeras uma após a outra, sem preocupação com vivências mais profundas que gerem construção intelectual/moral/ética, sem saber suportar a dor, querendo sempre experiências prazerosas em alta sucessão (que, por serem facilmente encontradas, são fúteis), sem suportarem o próprio silêncio, a contemplação e a reflexão. As velozes telas coloridas de interação alienante, dentre muitíssimos outros apetrechos, geram isto. O lado mau da tecnologia, que de um lado torna possível a melhora da qualidade de vida de muitas pessoas, e que de outro ajuda a atrofiar suas mentes.

Entretanto, cabe assinalar que o problema não é da tecnologia em si, mas da forma como ela é usada e incentivada a ser usada pelas elites dominantes. Na verdade, a história sempre evolui. Se hoje um professor tem acesso a uma infinidade de vídeos à sua disposição, durante sua aula, só buscando-os instantaneamente na Grande Rede, é porque a tecnologia permitiu essa magnífica possibilidade… De alguns remédios quase miraculosos, passando por equipamentos que aumentam a produção de alimentos, até as respostas que vêm de além-Sistema Solar, a tecnologia proporcionou coisas maravilhosas. E terríveis também, certamente, como as máquinas de destruição em massa… Mas muito possivelmente a ciência tem um saldo na existência humana e não um prejuízo.

A perversidade sobre a técnica está localizada na forma como a maior parte das sociedades hipermodernas é influenciada a usar os inúmeros aparatos tecnológicos, isto é, na atuação reificante e alienadora. A última instância é a que a maioria das pessoas não sabe usar seus celulares, seus computadores, suas câmeras digitais, dentre outros, tornando-se operadores e operados pelas engrenagens elitistas. Esses utilizadores vazios, deixados desta forma por suas ferramentas digitais e a arte industrializada, tornam-se cada vez mais de fácil manipulação, por sua cegueira e estado de entorpecimento, em quase devaneio.

O mundo precisa de cada vez mais novos Glauber Rocha, que uniu seus utensílios de primazia da técnica (seus equipamentos de grande tecnologia, para a época) à sua primazia do humano (suas brilhantes ideias e consciência).

Glauber Rocha. Fonte: http://www.planocritico.com/especial-glauber-rocha/

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