A Violência Como Processo Cultural

Diego Nantes
O Gerador de Van de Graaff
5 min readNov 20, 2017

A violência é uma das maiores mazelas da humanidade, desde que esta começou a organizar-se em sociedades complexas. O primeiro conceito que foge ao senso comum é o da natureza dos atos violentos, não somente relacionada ao prejuízo físico em si, mas também a uma trama complexa de danos sociais, políticos, econômicos, históricos, culturais e das subjetividades das pessoas e seus corpos societários. A opressão muitas vezes toma formas intensamente aparentes, como por exemplo com Mao Zedong (China e Tibete, de 1958 a 1969) e sua liderança política assassina de 45 a 70 milhões de pessoas (através da fome ou perseguição). Outras vezes, entretanto, age de forma mais “invisível”, como por exemplo através da fria alienação midiática patrocinada pelas elite hegemônicas (tão forte como nunca no século XXI)… A coação, em seus mais variados níveis, assume diversos métodos de ação.

Segundo Foucault, a partir da formação dos Estados-Nação, o mundo ocidental possuía (dentre outras coexistentes) uma soberania principal, de maior relevância para a governamentalidade: A Soberania Moderna, regida pelo fazer morrer-deixar viver. A parte do binômio relacionada à vida refere-se, principalmente, a uma permissão do poder central, absoluto e monárquico ao direito da vida, contanto que o súdito não atentasse contra essa legitimidade real. O direito a receber uma violência menor (a condenação a uma existência amplamente explorada e imutável, por justificativas transcendentais) em troca de uma última e mais grave instância de repressão. O outro lado do par referente à morte é ligado às punições dadas aqueles subversivos a este funcionamento do mundo… A espetacularização da agressão já era há muitos séculos uma realidade, onde frente ao grande público, na França por exemplo, homens condenados sofriam a ostentação do suplício, furados, cauterizados e desmembrados por cavalos, seus tocos moribundos ainda queimados durante uma semi-vida agonizante.

Robert- François Damiens (9 de janeiro de 1715–28 março de 1757) foi um camponês francês acusado de atentar contra a vida do rei Luís XV em 1757 — Fonte: https://www.france-pittoresque.com/spip.php?article7518

Com o fim do festival de guilhotinamentos (também transformados em espetáculo) do Período do Terror e seu terrorismo de Estado, a Revolução Francesa adquiriu permanentemente um caráter burguês. Na Inglaterra, como a famigerada história conta, ocorreu o maior surto da nova ordem social, política e econômica, com o extrativismo reinante dando lugar ao foco pelo produtivismo, no surgimento de uma nova soberania: A burguesa. Nela, o fazer viver-deixar morrer tornam-se protagonistas, numa inversão dos paradigmas outrora existentes. O Estado busca o mínimo de saúde de sua população pra que essa possa trabalhar no engenho capitalista, sendo isto de fundamental importância ao projeto industrial do século XIX. E o mesmo governo, regente da e regido pela casta superior imperante, após exaurir a vida dos cidadãos em processos de trabalho alheios às suas reais necessidades, deixam-nos morrer quando inúteis, numa velhice medíocre, talvez não tão miserável pelas migalhas de uma previdência social pública.

A partir principalmente das duas Grandes Guerras um outro fato social surge, quase como de forma contraditória aos projetos estatais existentes: A eugenia. Como o Estado do fazer viver-deixar morrer (e seu imperalismo oriundo dessa dualidade refém do capital, gerador principal de ambos os conflitos) poderia se tornar, em pleno Século XX, assassino exterminador de judeus e também suicida? No Grande Expurgo de Stalin, no Holocausto nazista (e no pedido de Hitler de sua própria população se matar na tomada dos aliados de Berlin), nas bombas de Hiroshima e Nagasaki, dentre tantos outros exemplos, como governos se tornariam máquinas perfeitas da liquidação humana?

Por mais incrível que possa parecer, na hipermodernidade a violência toma contornos ainda mais graves. A extrema pobreza de uma enormidade de humanos em oposição à extrema riqueza de um grupo ínfimo é, talvez, uma ferramenta ainda mais destruidora do que qualquer campanha militar ou paramilitar que já tenha ocorrido na história. Muitos milhões de pessoas no mundo, num grande efeito “bola de neve”, marginalizadas ao sistema que preza pelo consumo extremo e pela exploração intensamente imoral da maioria, enfrentam desemprego severo e a ausência do Estado a trazer-lhes justiça social, num mundo onde governadores e suas esposas compram dúzias de relógios de ouro e crianças permanecem desnutridas. Há a desumanização direta, cruel e inexorável sobre seres na maioria das vezes impassíveis (ou até alienados) às engrenagens que os trucidam.

O sangue jorrado, a concussão, os furtos, os roubos, as ameças, tudo é visto como amplamente normal, como “parte inseparável do viver em sociedade”, sobretudo nos inchados centros urbanos. Esses mais variados ataques são levados com naturalidade pelo poder político, pela mídia e sobretudo pela população retirada de seu senso crítico… Se os roubos a carro reduzem, em estatísticas estampadas nos jornais e sites da internet, há comemoração e avaliação positiva da atual forma de governo, mas estas desconsiderando que não deveria haver um limite aceitável pra esse efeito colateral da desigualdade social. Ou melhor: Que não deveria existir tamanho abismo econômico entre seres humanos. Pior ainda é o homem ou a mulher que ignora a brutalidade que assola os outros enquanto essa permanecer longe de seu corpo.

Em 25/05/2017, a capa do jornal impresso Meia Hora estampava com dizeres enormes e coloridos a união de duas terríveis facções criminosas do Estado do Rio de Janeiro para fazerem frente a uma terceira, solitariamente ainda maior em seu poder financeiro (e político, mesmo que de forma subliminar). Os nomes delas estavam escritos, com todas as letras, numa espécie de glamourização do crime organizado. Há vários programas na televisão, apresentados por pessoas ensandecidas em discursos pseudoindignados, onde crimes hediondos são descritos em etapas minunciosamente relatadas, gerando dia a dia nos telespectadores a absorção de tal miséria humana, talvez até influenciando-os inconscientemente (ou conscientemente, ao absorver a “normalidade” da destruição).

A cultura da violência está enraizada no jovem desumanizado, criminoso, que nunca teve um pingo de oportunidade de enquadrar-se na economia e sociedade que o segrega, esquecido e excluído numa vivência de estrondosa pobreza que já herdou ao nascer. Como não há nada a perder e como nunca foi visto como um humano, matar ou morrer é só uma consequência de sua existência. Está também na classe média, meio epiléptica, meio “sonhando acordada”, em constante estado de excitação buscando o próximo produto a consumir, alheia às engrenagens que a transforma em medíocre (como o nome “média” sugere) e que massacra aqueles abaixo dela (que a mesma despreza)… A “arte” imbecilizadora (de signos superficiais, conceitos paupérrimos e experiências efêmeras) e a grade midiática sensacionalista e manipuladora aos interesses do topo da pirâmide social: Tudo serve pra manter a ignorância, o estado de devaneio e a reificação na mente daqueles (que com mais oportunidades do que os realmente marginalizados) poderiam refletir e mobilizar mudanças. É o arrasamento dos corpos mas também das mentes, devastando o indivíduo, o sujeito, a identidade e a subjetividade. É a violência perpetuadora das antiquíssimas ordens.

Crianças e adultos passam ao lado de corpos, no dia-a-dia das favelas. Fonte: https://oglobo.globo.com/rio/exposicao-de-criancas-violencia-na-rocinha-desperta-preocupacao-de-pais-especialistas-21934661

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