Ao Que Vai Nascer — Clube da Esquina (1972)

Diego Nantes
O Gerador de Van de Graaff
9 min readNov 20, 2017

Clube da Esquina é uma jóia absolutamente brilhante. Uma obra maravilhosa e de absoluta relevância artística da música brasileira. É um lamentável fato que seu brilhantismo, sua importância, sua alma e até sua própria existência sejam desconhecidos por gigante parte dos brasileiros. O álbum fora criativamente liderado por Milton Nascimento e Lô Borges, fruto do movimento Clube da Esquina, que possuía nomes como os outros irmãos Borges (Márcio e Marilton), Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Tavinho Moura, Wagner Tiso, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta e o 14 Bis.

Pode-se dizer, de forma efetiva, que o movimento era multicultural, conectando horizontalmente (de igual para igual) vários elementos globais e locais, a serem citados: Beatles (e bastante do Rock Psicodélico), Jazz, Bossa Nova, ritmos “latino-americanos”, folclore mineiro, religiosidade mineira, ritmos do interior de Minas Gerais, Rock Progressivo, Folk Rock e até elementos erudito-populares característicos de Villa-Lobos. Se tivesse sido criado em um país hegemônico, em um país rico de língua inglesa, talvez Clube da Esquina pudesse ser um clássico mundial. Apesar disso, é importante notar, o trabalho do Clube é bastantemente reconhecido em sua qualidade no exterior, mesmo cantado totalmente em português (e com inserts em espanhol)

Capa do Clube da Esquina (1972)

Aqui, tomando a liberdade agora para escrever em primeira pessoa, a música favorita do álbum brasileiro favorito de quem esta análise escreve:

Memória de tanta espera

teu corpo crescendo, salta do chão

e eu já vejo meu corpo descer

um dia te encontro no meio

da sala ou da rua

não sei o que vou contar

Respostas virão do tempo

um rosto claro e sereno me diz

e eu caminho com pedras na mão

na franja dos dias esqueço o que é velho

o que é manco

e é como te encontrar

corro a te encontrar

Um espelho feria meu olho e na beira da tarde

uma moça me vê

queria falar de uma terra com praias no norte

e vinhos no sul

a praia era suja e o vinho vermelho,

vermelho, secou

acabo a festa, guardo a voz e o violão

ou saio por ai

raspando as cores para o mofo aparecer

Responde por mim o corpo

de rugas que um dia a dor indicou

e eu caminho com pedras na mão

na franja dos dias esqueço o que é velho,

o que é manco

e é como te encontrar

corro a te encontrar

Ao que Vai Nascer — Milton Nascimento e Fernando Brant (Clube da Esquina)

(Canta: Milton Nascimento — Órgão e piano: Wagner Tiso — Violão: Milton Nascimento — Baixo: Luiz Alves e Beto Guedes — Bateria: Rubinho — Guitarra: Toninho Horta — Percussão: Robertinho Silva e Luiz Alves)

Numa tentativa ao máximo de fugir ao senso comum, faz-se necessária uma análise do discurso sobre preceitos da sociologia cultural e da memória societária. A primeira tarefa a ser feita neste tipo de reflexão é definir o objeto de foco, isto é, aquele algo essencial e fundamental mas abstrato que só ganhará forma (existirá efetivamente) quando de sua definição. O objeto para a arte verdadeira, ou seja, de cunho consideravelmente espontâneo e autêntico é a sociedade. Essa definição é de extrema importância para o pensamento aqui exposto, visto sua intrínseca relação com os desejos mais primários que levaram à produção de tal música (seu texto o relevante aqui).

A natureza e a cultura são elementos inerentes da análise desta “letra de música”, aquela representando o universo físico (independente da criação e/ou invenção humanas) e esta é tudo produzido pela humanidade, nos campos materiais e imateriais. Citando Clifford Guertz: Cultura é uma teia de significados tecida pelo homem. De forma simples e direta, podemos identificar para o primeiro “tópico” os seguintes elementos textuais: “corpo”, “salta”, “vejo”, “descer”, “dia” (rotação da terra), “te” (referindo-se à outra pessoa), “rosto”, “me” (pessoa que declara), “eu”, “caminho”, “pedras”, “mão”, “olho”, “tarde” (período entre a metade do dia claro e o pôr do sol), “moça”, “vê”, “falar”, “terra”, “praias”, “voz”, “mofo”, “mim”, “rugas”. Para o segundo “tópico”: “memória” (sentido cultural), “sala”, “rua”, “respostas”, “tempo” (como concepção perceptiva criada), “velho” (juízo de valor), “manco” (juízo de valor), “espelho”, “norte” (convenção), “vinhos”, “sul” (convenção), “suja”, “vermelho” (convenção), “festa”, “violão” e “cores” (convenção).

A dualidade conceito e imagem em arte textual de música é bastante complexa de ser pensada. Como algo puramente composto de textos poderia possuir imagens? Quando se lê “Ao que vai nascer” uma das primeiras imagens (portanto, algo impactante) que surge é a partir de “e eu caminho com pedras na mão”. Dá para imaginar Milton, o intérprete, ou Brant, o compositor, caminhando numa rua com vários pedregulhos em suas mãos. Rua urbana. Mãos sujas do pó das pedras. Mas e que conceito é esse? O conceito da resistência! De usar cascalhos, pedregulhos, paralelepípedos como armas físicas contra um inimigo. Mas que inimigo seria esse? Isso será discutido acerca das subjetividades, depois. Pode parecer forçado, mas não é: Em “queria falar de uma terra com praias no norte e vinhos no sul” imediatamente uma imagem geográfica, como em mapas artísticos-estilizados, surge. O Brasil, com seu litoral apontado para o Leste, com o norte/nordeste e o sul mais “brilhantes” nessa imagem mental. O conceito é o nosso país, antes, agora e depois, como um todo, como ser físico-social, não só como lugar geográfico.

“Acabo a festa, guardo a voz e o violão” proporciona a imagem de um festejo interrompido, bloqueado, descontinuado. Do Clube da Esquina, em Minhas Gerais ou Teresópolis, precisando, por algum motivo, guardar seus instrumentos. Milton, Lô, Brant e companhia ressabiados, recolhendo sua arte no salão. O conceito é o de fatores externos influenciando na livre expressão artística. Talvez censurando? O que estaria, a contragosto destes artistas, interrompendo a arte?

A estética da comparação (ou “filosofia dos contrários”) possui duas facetas: A visível e a invisível. Aquela encontra-se em: “memória” (passado, valores, ideais) → “espera” (futuro, pretensão, objetivo)”; “corpo crescendo, salta do chão” → “meu corpo descer”; “sala → rua”; “respostas virão do tempo” → “responde por mim o corpo”; “norte → sul”; “praias no norte” → “praia era suja”; “vinhos no sul” → “vinho vermelho, vermelho secou” e “rosto claro e sereno” → “de rugas”. Esta encontra-se em: “não sei o que vou contar” → “sei o que vou contar”; “esqueço o que é velho, o que é manco” → “lembro o que é novo o que é perfeito” e “acabo a festa” (invisível: passividade, aceitação da opressão) → “ou saio por aí raspando as cores para o mofo aparecer” (invisível: resistência, luta).

Os símbolos talvez sejam os elementos mais difíceis de serem identificados nesta “letra”; O logotipo de uma faculdade (como a FACHA) e o escudo de um clube são ótimos exemplos desses, mas possuem essência visual. Eles servem para reforçar o discurso, mas se não existissem ainda sim o discurso seria o mesmo (talvez mais enfraquecido). O simbólico também está muito conectado ao mito, este sendo a projeção imaginária que habita o inconsciente coletivo da memória de um povo. “No meio da sala ou da rua” representa, de fato, qualquer lugar. Algum dia, Brant encontrará algo ou alguém (que será discutido nas subjetividades) em qualquer lugar, no privado ou no público. Esse é um símbolo da universalidade deste encontro e, em última instância, da universalidade do próprio ser ou ente a ser encontrado. De sua necessária existência em todo o tecido social.

A “franja” citada para os dias é um símbolo do “desfiamento” ou “repicação” desses. Da mudança de natureza pela modificação na estrutura de um pano. De sua descontinuidade, de sua quebra de paradigmas, do rompimento do status quo. Quando os dias (sistematizados por padrões e vigilâncias rígidas do sistema) conseguem mostrar suas “franjas”, seus lados “subversivos”, o Clube da Esquina corre para encontrar algo. As “rugas” são símbolos de algo muito maior: Do cansaço, do envelhecimento pela opressão, pela extenuação de uma luta árdua, de “cicatrizes” de um tempo áspero.

Mas, afinal, qual é a “moral da história” de Ao que Vai Nascer? Qual seu fruto pelas subjetividades? Há dois trechos que certamente são os estopins perfeitos para a devida compreensão da essência da obra, isto é, daquilo que é mais importante. São eles: “e eu caminho com pedras na mão \ na franja dos dias esqueço o que é velho \ o que é manco \ e é como te encontrar \ corro a te encontrar” e “queria falar de uma terra com praias no norte \ e vinhos no sul \ a praia era suja e o vinho vermelho, vermelho, secou \ acabo a festa, guardo a voz e o violão \ ou saio por ai \ raspando as cores para o mofo aparecer.

No primeiro trecho, citado acima, na interpretação deste estudo, há a seguinte ideia: O poeta tenta resistir, de forma física e imaterial, à ditadura militar. “Pedras na mão” contra aqueles que batiam, torturavam e até matavam, numa conexão simbólica aos protestos nas ruas. O álbum é de 1972. Certamente, para ser gravado e distribuído, teve de passar pelo crivo da censura. Além disso, muito mais importante do que “só” a repressão à arte era o controle, proibição, restrição e vigia do pensamento da sociedade civil como um todo. E de um sistema, perverso como ele era, aparelhador e alimentador de um Estado gigante onde não deveria ser (no cerceamento da livre expressão, opinião e estudo) e mínimo onde também não deveria ser (nas políticas de inclusão e justiça social). Nas tais “franjas dos dias”, nos momentos subversivos, aqueles mineiros tentavam “esquecer” (superar, opor-se, reagir) o “velho” (o retrógrado, o conservador, o paradigma, o modelo, o sistema perverso) e o manco (o errado, o injusto, o exploratório, o desumano). E sonhavam que encontravam. Aliás, mais do que isso, corriam a encontrar. Mas o quê, afinal? Um filho que nasceria, considerando o título da canção? Na verdade, muito possivelmente, era um filho que teria que renascer: A democracia com responsabilidade social.

O segundo trecho é também esclarecedor. O foco é o Brasil, isso já ficou claro. Mineiros compondo, com tanta emoção, sobre uma terra “com praias no norte e vinhos no sul”. A “sujeira da praia” era a corrupção, a perseguição, a manutenção dos latifúndios, o incentivo à rigidez da estratificação social, enfim, todas as mazelas conhecidas e reconhecidas do período da ditadura (e da atualidade também, por quê não?). O “vinho vermelho” simbolizando o socialismo e/ou o marxismo seca, pela coação já descrita. Pela estrutura injusta e rígida mantida, general-presidente após general-presidente. Novamente: Até hoje. Só mudam as faces. Parafraseando Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, a independência só mudou levemente as caras, os sotaques, os tipos de ordens e comandos. As terras continuaram nas mãos de poucos e o grande povo (sobretudo negro) continuou jogado à marginalidade ou ao trabalho desumano. Há, no final desse trecho, uma dúvida: Deveria-se permitir a subjulgação, “acabando com a festa”, calando a arte? Ou deveria-se arrancar os posters do governo, naquela época já muito coloridos, só deixando para trás o mofo que estes geravam nas paredes?

O discurso é, assim, em seu cerne, frankfurtiano. Não há escapatória. Se o objeto primordial de Ao que Vai Nascer é a sociedade, a afirmação acima mostra-se verdadeira. É importante frisar: O pensamento da Escola de Frankfurt possui preocupação com todo o objeto. A “letra” já amplamente analisada tem bases sólidas na crítica política-social, no coletivismo e no humanismo. O Brasil, implícito na obra, não é todo o mundo. Não é toda a humanidade. Porém, a letra escrita em português brasileiro, interagindo subjetivamente com a realidade de 100,1 milhões de pessoas (1972), possui sim caráter “universalista”. Possui fundo revolucionário. Obviamente, nem todos os problemas deste país eram fruto única e exclusivamente da Ditadura. Mas considerando a propagação consciente por parte desse regime de práticas segregacionistas (no social, no pensamento e no econômico) há a certeza de suas mazelas para dezenas de milhões de pessoas.

Há fragmentações no objeto para alcançar o objetivo artístico mais rápido? Sim, também. Há um foco na arte musical. O Clube da Esquina era composto de músicos. Utilizaram o silêncio por interrupção de sua arte para enfatizar as tentativas de calar por parte do governo. Ou até mesmo do acatamento silencioso, devido à violência, de tais atos intransigentes. Os posters são fragmentos de uma gigantesca propaganda para a tentativa de formação da opinião pública. Da autopromoção e/ou das ameaças do Estado (“Ame-o ou Deixe-o”). Fernando Brant, assim como o personagem que “observa e reflete dentro da música”, é uma única pessoa. É uma reflexão una. É só um humano com pedras na mão. É só um fragmento de, talvez, um enorme protesto pelas ruas do centro de uma capital.

Como em incontáveis “letras de músicas”, o artista foca-se em elementos específicos para realizar analogias, comparações, metáforas e desconstruções relacionadas a um todo. Há, como já dito, uma fragmentação para, de forma mais fácil, rápida e direta, estabelecer a comunicação. Há características, então, das Escolas Norte-Americanas também, embora, no final das contas, a mensagem final da obra possua muito mais fortemente Frankfurt.

Lô Borges, Duca, Márcio Borges e Milton Nascimento (da esquerda para a direita). Fonte: http://personaunesp.com.br/critica-clube-da-esquina/

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