Como dizia o poeta
24/12/2017
Outro dia, chamou minha atenção uma manchete que merecia, senão credibilidade, pelo menos um soneto: “somente conseguimos sonhar em língua materna”. Uma boa dosagem de lirismo desperdiçada, porque a reportagem infelizmente não parava por aí e logo à frente vaticinou que, no futuro, os melhores testes de proficiência vão monitorar o sono dos examinandos, reputando fluentes apenas os que sonharem em língua estrangeira. Digo sem medo de errar que, empatada com a tomada de três pinos, se trata da pior ideia dos últimos tempos — cá entre nós, amigo, quem poderia sair impune de uma verificação minuciosa de nossos devaneios noturnos? Em vez disso, faço a sugestão de basear tais exames em insultos; afinal, se não é difícil enfileirar frases feitas e formalidades noutro idioma, raros são os que xingam como no vernáculo. Imagine a cena: os candidatos, numa experiência bem mais edificante, apresentariam à banca avaliadora todo seu vocabulário de baixo calão e, ao fim, quem injuriasse mais (e melhor) seria aprovado.
Isso reforça minha tese de que nada é tão revelador de uma cultura como o seu idioma, assim como nada é tão revelador de um idioma como os seus insultos; e a Língua Portuguesa tem muito a (mal)dizer sobre o tema, pródiga que é em impropérios, mas também em nuances. Quando, ainda criança, vi numa novela a esposa traída flagrando o marido infiel, esperei em seguida uma saraivada de ofensas, mas ela foi categórica: “Você é gentinha! Você é uma pessoinha!” Que dignidade restava àquele arremedo de ser humano, rebaixado a menos que um indivíduo, degradado sem o uso de um adjetivo sequer? Quanta malícia, quanto veneno aprendi caber no pequeno frasco dessa terminação. Por outro lado, explicar a um norueguês que a mesmíssima palavra neutra pode, a partir de uma simples flexão de grau, expressar desprezo ou afeto, conforme o contexto, não é uma tarefa digna de qualquer pessoa, mas do Pessoa com maiúscula, o multifacetado poeta lusitano.
Mas estrangeiro algum, nem mesmo português, poderá explicar essa fixação do brasileiro pela partícula “-inho”. E como só entende o Brasil quem conhece de futebol, recorro a ele: nenhum outro esporte em qualquer outro país produziu uma safra tão numerosa de atletas com nomes no diminutivo. Se o primeiro gol brasileiro na história das Copas foi de Preguinho, em 1930, de lá pra cá Zizinho, Jairzinho, Nelinho, Mazinho, Marcelinho, Ricardinho, Robinho, entre uma profusão de outros, foram apelidos que se tornaram títulos de nobreza no reino das arquibancadas. Até quando não há diminutivo, damos o nosso famigerado jeitinho — e assim, o Arthur Antunes Coimbra é conhecido como Zico, mas pode ser o Galinho de Quintino. De Juninho em Juninho, escalamos o Paulista para o Mundial de 2002, e levamos para a Alemanha, quatro anos depois, o Pernambucano. E o caso emblemático: quem sabe para rimar com “El Niño”, o Ronaldo, outro fenômeno tão avassalador mas mais imprevisível, já foi Ronaldinho; isso, porém, só até surgir o Gaúcho, herdeiro da alcunha e do troféu de melhor do mundo. Bem-aventurada a nação que conta com dois xarás entre os grandes da história do futebol, embora nenhum deles seja o maior dos Ronaldos, suplantados que foram pelo Cristiano. Este, entretanto, interessante notar que jamais poderia ser chamado “Ronaldinho” como os demais, pelo contrário — grandioso, homérico, máximo, o atual detentor da Bola de Ouro é não somente o jogador aumentativo por definição, mas o lusófono mais destacado do planeta (e que me desculpe o Secretário-Geral da ONU).
Talvez por isso o inesperado herói da última semana tenha sido tão gigantesco — o diminuto Romarinho, curinga zombeteiro num jogo de cartas marcadas, da bola que meteu nas redes do Real Madrid fez a funda de Davi, acertando na testa um incrédulo Golias e estatelando todo seu exército de torcedores. O embate do Al-Jazira contra o time de Cristiano, o Ronaldo superlativo, assumiu, dessa maneira, um quê de universal em si mesmo, ao retomar uma história antiga, mas que sempre fascina: o improvável triunfo do mais fraco sobre o mais forte, a exaltação do humilhado — e enquanto o português era épico como Camões e sua epopeia, o brasileiro era brejeiro como Macedinho e sua Moreninha. Pois torcemos contra os merengues, mesmo sabendo que fazê-lo era mais ou menos como querer que o Coiote apanhasse o Papa-Léguas, porque todos trazemos nas veias uma pitada desse sentimento de coiotismo. Por tal motivo é que, decretada a vitória dos madridistas, o fim da partida nos encontrou muito mais decepcionados do que era de se esperar. Pode ser que, no fundo, nós quiséssemos que o ex-jogador do Corinthians de alguma forma vingasse a soberba dos jornalistas espanhóis que reagiram com deboche à polêmica do Renato Portaluppi, autodeclarado melhor que o próprio CR7. Pode ser que, como eu, as pessoas desejassem que essa questão extracampo, de tão estapafúrdia, fosse encarada com um pouco mais daquilo que o Romarinho levou pra dentro do jogo: humildade, graça, superação.
Dizem que a palavra da Língua Portuguesa por excelência, intraduzível e sem paralelo em qualquer outro idioma, é o termo “saudade”, certa vez conceituado como “o charme brasileiro de alguém sozinho a cismar”. É uma boa descrição, levando em conta a situação do futebol mundial de hoje — causa nostalgia a época, há muito tempo deixada pra trás, em que o campeão sul-americano podia fazer frente ao campeão europeu. No entanto, ainda acho que nos representa com mais fidelidade o grau diminutivo, esse verdadeiro produtor de brasilidades. Por aqui, nunca se comeu arroz solto, mas, sem exceção, todos nós adoramos um arroz soltinho, feito o Coutinho pelos gramados da Europa. Aliás, se na opinião de algum desvairado ainda falta motivo para convocar o Paulinho pra Copa ano que vem, que seja ao menos como um talismã, cumprindo no time titular da Seleção nossa cota do sufixo. Tão ao nosso gosto, usamos o diminutivo para fazer rima com “carinho”; com ele, conferimos ao ídolo a intimidade necessária para que busque entre as quatro linhas, como numa procuração, os êxitos que tantas vezes nos são negados fora dos estádios. Comemorando o gol de honra marcado sobre a melhor equipe do mundo, o Romarinho nos recordou, inclusive pelo nome, que qualquer prêmio de consolação é, ainda assim, um prêmio; que qualquer pequena façanha, por menor que seja, deve ser digna de orgulho. De que outro jeito levamos os dias, senão celebrando cada mínima vitória, mesmo que num contexto geral de derrota? “A vida é muito importante para ser levada a sério”, afirmou um escritor que, tivesse nascido no Brasil, poderia estar se referindo também ao futebol, e com toda razão. Prefiro, todavia, a sabedoria nacional: “o futebol é a arte do encontro, embora haja por ele tanto desencontro” — em bom português, assim diria Vinícius de Moraes, o nosso tão brasileiro Poetinha.