Pogba comemora vitória da França sobre a Bélgica (Foto: Lukas Schulze / FIFA via Getty)

Déjà vu (ou “em busca do tento perdido”)

Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos
5 min readNov 21, 2019

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15/07/2018

“Sensação, geralmente engatilhada por um objeto externo, de já ter vivido ou presenciado determinada situação corrente alguma vez no passado”. Para denominar o fenômeno conhecido por déjà vu, dicionários de todos os idiomas recorrem a um empréstimo do francês, também a língua materna da obra que talvez melhor retrate o tema da persistência das lembranças, sejam conscientes ou não. Enquanto escrevia Em Busca do Tempo Perdido, no começo do século passado, poderia Marcel Proust ter malucamente intuído que algum dia, num futuro distante, o planeta inteiro haveria de reconhecer que fala melhor sobre memória quem é da França? Pelo sim, pelo não, é o que me parece hoje, neste 15 de julho de 2018, quando assisto na TV a um vibrante Didier Deschamps erguer pela segunda vez a taça do mundo; e antes que eu me perguntasse onde já tinha visto isso, o Galvão respondia que, desde a última cena semelhante, em Paris, lá se vão 20 anos.

Mas o cabelo branco do técnico, outrora loiro capitão do primeiro título dos Bleus, denuncia que o tempo corre pra eles do mesmo jeito, quase tão rápido quanto Mbappé pelas defesas adversárias (ele que naquela ocasião nem era nascido). Desta vez, o destaque individual não é Zidane; do lado de lá, Luka Modrić, representante máximo da tradição balcânica de jogadores de grande técnica, herdou do craque francês, além da camisa 10 do Real Madrid, a capacidade de controle total do meio-de-campo. Não por acaso, tal foi a proposta que permitiu à Croácia, em seus meros 27 anos de existência, conquistar o vice-campeonato ao superar sua melhor participação em Copas até então, que era — adivinhe — justamente em ’98, quando abocanhou o terceiro lugar. Com certeza um déjà vu!, arremata o Leitor Apressado.

Depois da comemoração, Mandzukic ajuda fotógrafo a se levantar (Foto: Yuri Cortez / AFP)

Nem ouse pensar nisso, amigo: traçar paralelos com torneios pretéritos virou item fora de moda neste verão russo. Pelo visto, estamos diante da consolidação de uma “nova ordem do futebol mundial”, bordão frequente nas últimas semanas e expressão fixa na boca de muito comentarista por aí, usada (e abusada) para explicar a predominância de equipes europeias nesta edição do evento. Comum demais na imprensa esportiva, trata-se de uma moléstia vulgarmente chamada “bestatística”, cujos sintomas são a erupção generalizada de dados tão excessivos como irrelevantes e a fobia de análises racionais — provando estatisticamente que, por si só, as estatísticas não provam coisa alguma. O quadro clínico dos pacientes infectados evoluiu para obsessão patológica pela semifinal exclusiva de seleções da Europa e cegueira quanto à hegemonia numérica desse continente, onde se situam a maioria dos países com tradição futebolística e mais do que o triplo de vagas na Copa, em comparação a nós sul-americanos, por exemplo. Em geral, prescrevo tratar a afecção ministrando doses cavalares de sensatez; em particular, deve-se reconhecer, sim, a competência dos times do Velho Mundo, mas sem esquecer que ali se concentram os clubes de futebol mais ricos do globo. São estes os mesmos que contratam os melhores profissionais — incluídos aí, claro, os jogadores — , bem como buscam aprimoramentos de treino e tática, num ciclo virtuoso que só incentiva o surgimento de talentos locais. Há nisso alguma grande novidade?

Defesa com o pé esquerdo de Akinfeev no pênalti de Aspas que colocou a Rússia nas quartas-de-final (Foto: David Ramos / FIFA via Getty)

Na contramão do senso comum, é fundamental sobretudo levar em conta que até Alemanha e Espanha, gigantes europeus, saíram do passeio na montanha-russa levando para casa matrioskas recheadas de decepção. De fato, são estes alguns dos resultados mais interessantes da competição, porque revelam, por trás da cortina de fumaça midiática, um fenômeno digno de atenção: percebendo que a França lhe passou a ilusão de ter viajado duas décadas no tempo, algum injuriado entre os deuses do futebol — relojoeiro como toda divindade que se preze — resolveu consertar o tique-taque da engrenagem. Noutras palavras (deixando de lado a péssima alegoria), o estilo de jogo adotado nas seleções de espanhóis e alemães, baseado em posse de bola na intermediária e troca de passes constantes feito ponteiros de um relógio, ultimamente tem perecido quando posto à prova dentro de campo; e, portanto, vem aos poucos sendo abandonado, mesmo pelos expoentes da estratégia — vide Barcelona, que investiu em velocidade nas temporadas recentes, e Guardiola, que pratica um jogo mais agressivo com seu Manchester City. A surpreendente desorganização do selecionado germânico, responsável por sua ainda mais surpreendente eliminação na primeira etapa do Mundial, e o inofensivo toque de bola da Espanha, precocemente domesticada pela anfitriã nas oitavas-de-final, fazem saltar aos olhos o sucesso de elencos com defesas fortes e contra-ataques rápidos, à feição dos finalistas tanto da Copa do Mundo quanto da Liga dos Campeões da Europa. Tudo isso faz pensar que o tiki-taka dos últimos anos se assemelha ao futebol total da Laranja Mecânica na década de 70 — um esquema tático revolucionário, mas que só pode ser levado a cabo por um time integralmente devotado e talentoso, capitaneado por grandes estrelas. E, afinal, quantas equipes na história fazem frente à qualidade técnica da Holanda de 1974, com seu Cruyff, ou da Espanha de 2010, com Xavi e Iniesta (reunidos a um certo Lionel Messi no Barça)?

Quanto ao gozador e meticuloso deus-relojoeiro do futebol, contando a passagem do tempo pelo advento de cada Copa do Mundo, quem sabe assim ele tenha desenhado, em seu relógio cósmico, a marca de 2018: uma filosofia de jogo e o craque argentino que, ao encarná-la, se tornou o melhor jogador de sua época — ambos, criador e criatura, passando o bastão, digo, a bola, para novos conceitos. Que vêm dos croatas, vitoriosos de três prorrogações, conciliando raça e finesse ao se lançarem, até o fim de suas forças, em busca do tento perdido (com o perdão do trocadilho). Que vêm dos belgas, cuja velocidade habilidosa conseguiu suplantar o poder de fogo de Tite e companhia. Já para nós, resta virar a ampulheta e continuar um trabalho proficiente mas ainda incompleto, que, agora sabemos, precisa recuperar igualmente o domínio do meio-campo e a identificação do futebolista brasileiro junto ao seu torcedor. De mais a mais, também Napoleão teve na Bélgica seu Waterloo, se não me falha a memória — essa faculdade que, confusa pelas coincidências e perdida no desfile de eras em sucessão, doravante deixa de fazer sentido. Com tanto déjà vu pintando por aí, seria o caso de rasgar livros de História e queimar dicionários de todos os idiomas? Não chegue a tanto, Leitor Apressado: lembrando a todos que sair à la francesa significa, na verdade, sagrar-se campeão, hoje 23 Napoleões, como se voltassem ao passado, conquistaram o mundo de novo. E, de novo, ninguém há de negar que vão acompanhados do espírito do tempo, acima de tudo.

Mbappé cobra escanteio na partida entre França e Peru (Foto: Michael Regan — FIFA/FIFA via Getty Images)

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Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos

Arquibaldo. Geminiano de nascença e corintiano por adoção, mas que recusa qualquer tratamento.