Romero tira selfie na comemoração do primeiro gol sobre o Palmeiras, no Dérbi de 05/11/2017

Quem veio primeiro

Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos

--

06/11/2017

“A Justiça é invenção do homem!” — assim escreveu um sábio qualquer, com ares de grandeza. Ou, pelo menos, deveria tê-lo feito, nem que fosse somente para algum desocupado retomar o questionamento nesta segunda-feira, restando apenas a sobriedade e a reflexão após a euforia futebolística da véspera: haverá condições de existir Justiça além da humanidade? Poderia o tatu-bola desabrigado executar o despejo da jararaca invasora ou o garnizé exigir do quati a devolução dos ovos afanados (mais meia dúzia a título de danos morais)?

Ante o ridículo dos exemplos, o Leitor Apressado pensará se tratar de pergunta retórica e dirá que a resposta fácil é a negativa, mas aí é que está — me vejo obrigado a discordar do poeta-filósofo que disse, se é que disse mesmo, ser fruto da mente humana a “Justiça”, com inicial maiúscula. Porque, amigo, pasme: ela já estava perambulando por aí no instante em que o primeiro troglodita viu-se privado daquilo que havia conquistado com sangue, suor e tacape. A Injustiça feriu-lhe tanto o brio, entortou seu senso de retidão de tal maneira, que sua reação imediata foi a de combatê-la a fim de restituir a situação anterior. Só então o troglodita tornou-se ser humano; nem antes, nem depois. Impreciso, portanto, seria creditar ao Homo sapiens, a partir de uma resposta espontânea e necessária perante a iniquidade, a criação de qualquer coisa que seja — quando, pelo contrário, o homem é que foi inventado pela Justiça.

Outra vez, o Leitor Apressado, checando se não folheia por engano alguma revista de Direito ou Arqueologia (ou ainda de Direito Arqueológico), se manifesta e me indaga o que diabos isso tem a ver com o Corinthians e Palmeiras de ontem, ao que eu lhe retruco — tudo! Veja só: nem o vendedor de camisas de Itaquera conseguia acreditar sinceramente numa superioridade corintiana, mínima que fosse, vendo que o líder do campeonato sofria uma queda vertiginosa de desempenho, enquanto o segundo colocado enfileirava boas rodadas de invencibilidade, decorridos daí resultados aritméticos, mas também emocionais — sempre muito mais impactantes. Semana passada, apesar da tabela do torneio, o clima se dividia entre a exasperação alvinegra (beirando a loucura em vários momentos) e a confiança alviverde, que a torcida não deixou arrefecer pelo empate morno do jogo anterior. Errata: onde se lê “torcida”, inclua-se, ao lado dos palmeirenses, os demais esquadrões mais a mídia em peso, há tempos ávida por estampar nas manchetes que o campeonato continuava em aberto. Aos jornais, enfim, era chegada essa hora, e o Dérbi foi noticiado como uma decisão antecipada. A essa altura, um fervoroso mas precavido integrante da Fiel, embora jamais tenha deixado de hastear o bandeirão, nas suas bordas já redigia o testamento, pra ocasião de perderem um título imperdível.

“Não vi Basílio, mas vi Romero”

O que se viu dentro do campo, no entanto, foi metade esporte, metade terapia de regressão: o grupo que havia esquecido de que maneira chegara à ponta recuperou suas memórias (talvez mais como o amnésico que bate a cabeça pela segunda vez), vide as atuações de Arana e Rodriguinho, nunca tão boas desde vidas passadas, durante o primeiro turno. Para além dos jogadores-pacientes, o lúcido terapeuta Carille alterou com méritos a escalação titular e, somados todos os fatores, a equipe da casa não somente jogou bem, mas, verdade seja dita, jogou melhor do que o visitante — por sua vez, longe de ser um mau time, porém mais lento na defesa e menos eficiente no ataque, a despeito do brilho habitual de seu Moisés.

Qual então não foi a agressão ao meu mais básico senso de equidade, razoavelmente sob controle após o 3 a 2 corintiano, quando me inteirei da repercussão que esse resultado causou! Tudo bem, não se vá esperar sensatez de quem torce (aliás, de quem ama de modo geral); sei que a soberba do vencedor só se compara à revolta do derrotado, de modo que já nem as juras de morte a adversários me pegam desprevenido. Todavia, mesmo não contando com cartões de felicitação de uma parte à outra, sonhei que houvesse maior reconhecimento, acima de tudo, ao jogo de alto nível praticado por ambas as equipes e, por extensão, ao desfecho que esse alto nível rendeu à partida. Ingenuidade? Não, sede de Justiça! E, dentro de mim, o troglodita rugiu mais doído diante de golpes inesperados — um grande amigo meu, cabeça feita e pacifista à la Mandela, sentenciou que o lado vitorioso deveria se envergonhar: “ganhou roubado”. Da última vez que verifiquei, ele era ex-são-paulino, teoricamente sem motivos para a afronta. “Então por quê?”, balbuciava meu neandertal interior, agitando seu porrete.

Claro que a situação se resolveria pela exceção da verdade, caso o confronto houvesse sido, de fato, vencido sem merecimento e devido a falhas do juiz, a exemplo do último revés do Vasco diante do próprio Corinthians (o qual, entretanto, também foi prejudicado noutras partidas). Nada disso, repito, pode aplicar-se agora: se os animais não conhecem mesmo os conceitos de certo e errado, foi por uma incapacidade inerente que só o meu companheiro de torcida neste domingo, o peixinho de aquário Querêncio, no íntimo não admitiu terem os três pontos terminado com quem efetivamente jogou mais — o que faz toda a diferença, afinal. “Futebol não é justiça!”, já ouço o Leitor Apressado gritar, desta vez com razão. Mas nem por isso se deve deixar de lutar por uma coisa ou pela outra quando nossos instintos assim o exigirem; como o esforço por tudo aquilo que é justo, suspeito que também a busca pelo melhor jogo de bola seja das raras coisas que nos tornam menos trogloditas e mais humanos. Tanto suspeito que, sendo Homem e Futebol tão necessários entre si, desafio qualquer poeta ou filósofo, à luz do clássico paulistano de ontem, a me explicar quem veio primeiro.

--

--

Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos

Arquibaldo. Geminiano de nascença e corintiano por adoção, mas que recusa qualquer tratamento.