O choro é livre

Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos
5 min readNov 15, 2019

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15/11/2017

Era 2010. Eu, que torcia para um time que sabia tecnicamente inferior, apostava com secreto otimismo (porque é imperdoável ser abertamente otimista hoje em dia) que pudéssemos compensar aquela desvantagem na base da raça. Além do mais, nós tínhamos Ronaldo; nós tínhamos Roberto Carlos. Não adiantou: eles tinham Neymar. E antes que ele tivesse feito o primeiro gol do Santos e dado o passe pro segundo, a partida já levava a me contentar com uma derrota discreta na Vila Belmiro. Mas, mais que uma esperança àquele ponto tão pouco exigente, a minha dignidade de corintiano é que foi dibrada — sim, essa é a exata palavra, apesar dos protestos do corretor ortográfico; foi dibrada quando o então garoto teve a ousadia (e alegria) de aplicar um chapéu desconcertante no zagueiro Chicão, num lance fora de jogo. Uma pequena grande humilhação — plástica, irreverente, desnecessária — que ainda fintava a marcação das minhas memórias quando, alguns meses depois, o Renê Simões, técnico do Dragão goianiense à época, declarou sobre a indisciplina do atleta santista: “Estamos criando um monstro no futebol brasileiro”. Aquilo caiu como uma luva na minha mágoa de mau perdedor: lembro de, feito cachorro policial atrás de surfista do Eixão, ter ido correndo, quase babando, para manifestar todo o meu apoio à crítica do treinador. Aliás, como discordar do portador daquele bigode de tamanha autoridade, ao melhor estilo Belchior?

É o próprio compositor cearense, porém, quem fornece a munição pra me contradizer hoje; se “o passado é uma roupa que não nos serve mais”, considero que o ex-menino da Vila, daquele ano pra cá, me trouxe muito mais alegria do que decepção, mesmo com a hegemonia do Peixe no Paulistinha. Mais: acredito piamente que essa sensação deveria ser compartilhada pela torcida brasileira, em geral, e pela torcida de Santos, Barcelona e PSG, em particular. Na contramão disso tudo, vejo, embasbacado, quantas e quão grandes foram as pedras que os inquisidores habituais lhe atiraram, desta vez porque, semana passada, foi levado às lágrimas por um sensato desagravo de Tite, em coletiva de imprensa após a vitória sobre o Japão (na qual marcou um dos tentos do 3 a 1).

Imediatamente evoquei as palavras de um amigo meu, futurólogo amador e pessimista profissional, que profetizou irrecorrível, com pose de ministro do STF: “o Neymar vai pipocar na Copa do Mundo ano que vem”. Embora petrificado por um segundo, juntei meus cacos e, num esforço mental, procurei justificativa para semelhante prognóstico, tentando recordar nem que fosse uma só situação na qual o atacante, muito cedo atirado aos leões, digo, exposto à mídia (especialmente faminta em sua modalidade esportiva), tenha se esquivado da responsabilidade de quase sempre ser protagonista, a despeito da pouca idade e da grande pressão. Desnecessário dizer que foi um exercício em vão, e até hoje estou para entender a razão do comentário.

“Chapéu, caneta, gol, tudo!”

Mas desconfio: nosso nobre comentarista é do tipo que, para não ser tomado por ingênuo, ao acordar toda manhã veste a roupa da descrença — cuja expressão máxima, no Brasil, é descrer da Seleção Brasileira — , mas que se despe em casa à noite e volta a ser um garoto desamparado, buscando ardentemente um modelo de comportamento para aplaudir, um ídolo total de quem pregar o pôster, em tamanho real, atrás da porta. O Neymar poderia ser forte candidato à vaga, mas lhe falta o currículo imaculado: às vezes se torna indisciplinado, briga por cobrança de falta, posta foto indevida e até se emociona — “mostra fraqueza” — em entrevista… Pouco importa se é o futebolista mais genial de sua geração e, há muito tempo, referência técnica em seus clubes e na seleção, onde já desponta como o 4º maior artilheiro histórico; também não vem ao caso ele ser criticado pelas mesmas atitudes que são motivo de exaltação noutros jogadores folclóricos, sejam atuantes ou aposentados. Não; sujeitos como o dono da nossa previsão precisam de um personagem semidivino, que os tome pela mão e os autorize a tirar a máscara de eternos desiludidos. Entretanto, não se acha esse ídolo numa esquina qualquer, e, em tempos de Internet, onde se descobre facilmente até a cor favorita das celebridades pras roupas de baixo, creio que uma figura que agrade a gregos e troianos seja espécie em vias de extinção. Aproveitando a deixa, faço minha humilde sugestão às autoridades para que, em celebração a este aniversário da República, mande às favas a garoupa e lance uma cédula comemorativa com a efígie do Ayrton Senna, este sim nossa última unanimidade em matéria de idolatria (não por acaso, vindo de eras anteriores às redes sociais) — portanto, um exemplar muito mais raro do que o nobre peixe — confirmando a epifania do poeta Drummond: “O homem, chamar-lhe mito / não passa de anacoluto”.

Não defendo, com isso, que se fechem os olhos às falhas que o craque comete — a mim, pertencente a sua mesma geração, parece no mínimo curioso que ainda o chamem de Menino Neymar, como se fosse um tipo de Peter Pan dos gramados (no próximo erro que me apontarem em serviço, vou alegar ao meu chefe que sou muito novo para ser responsabilizado; o resultado eu conto a quem me prometer um novo emprego). Não se trata de exculpá-lo de tudo. Mas tivesse eu, na discussão com meu amigo, a presença de espírito necessária para não deixar impune aquela opinião impertinente, teria-lhe dito que, apesar de ser desejável que todos tenhamos várias virtudes, assim devemos julgar o cozinheiro pela comida; assim o escritor pela escrita; e assim o jogador de futebol pelo que ele apresenta dentro de campo. Deus me livre o padeiro ser avaliado pelos seus versos ou o cronista pelo seu guisado, muito embora brasileiros e espanhóis possam concordar — pela grita de cai-cai aqui e piscinero lá — em testar o camisa 10 como ator, quem sabe numa eventual regravação de Um Corpo que Cai. Bem menos artísticas são as atuações de atuais e ex-dirigentes de futebol que, num improvável misto de O Poderoso Chefão e O Homem que Não Estava Lá, nem sequer podem deixar o território pátrio sem correr risco de prisão — e aqui não dou nome aos bois por respeito aos ruminantes. Porém, confesso que foi apenas ao ler, por acaso, esse trágico noticiário que me lembrei onde deve residir nossa vigilância mais rigorosa e, quando for o caso, nossa crítica mais mordaz. Quanto ao Neymar, pela bola que vem jogando, acho que, ao fim e ao cabo, continuo concordando com você, Renê Simões: de fato, criamos um monstro! E, de resto, o choro é livre.

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Guilherme Macedo Prudente
Geraldinos e Arquibaldos

Arquibaldo. Geminiano de nascença e corintiano por adoção, mas que recusa qualquer tratamento.